Falsa folha de rosto com o nome do livro
Branca
Folha de rosto com o nome do livro com o nome do autor Estado - mês - ano
Ficha catalográfica
Apresentacao
6A vontade era antiga. Queria juntar num só lugar os trabalhos que tinham, para mim, algum significado especial. Por isso ou por aquilo, textos que me traziam alguma lembrança boa, interessante ou me faziam viajar no tempo e reviver um momento. Até mesmo o resultado de uma inesperada inspiração vinda sei lá de onde. Por exemplo: a crônica que escrevi reportando uma infância imaginária que, poderia, sim, ter sido a minha ou a sua. Ou então, o texto que rascunhei quando, consternado, vi a desolação de um grande amigo por perder sua esposa querida. Também quando passei para o papel, permitindo-me exageros e invencionices, toda a confusão que acabara de assistir numa conturbada reunião de condomínio. São imagens ou situações que até hoje, depois de alguns anos, ainda transitam vivas em minha memória. Claro que seria complicado e desnecessário, a cada texto, justificar como foi o seu nascimento ou o porquê de sua escolha para fazer parte deste RESGATE.
7 Finalmente chegou o dia. Abri o baú – melhor seria dizer: vasculhei minha biblioteca –, resgatei alguns trabalhos e os reuni nesta coletânea que lhes trago. Pensando bem, na verdade, acho que essa compilação foi de mim para mim mesmo. Uma satisfação pessoal. Não saberia dizer se são os melhores, os mais legais ou os que mais gosto. Mas, enfim, são esses os eleitos. Já que estamos falando em resgates, vou surfar um pouco mais nessa onda e buscar um trechinho que faz parte da apresentação de meu livro “De conversa em conversa”, de 2016, no que diz respeito ao perfil daquele trabalho e que, a meu ver, cabe aqui também. “As histórias são, basicamente, ficcionais. Algumas baseadas em fatos reais nas quais a realidade e a ficção se confundem, sempre com a intenção de despertar a curiosidade do leitor, torná-las mais interessantes e, se possível, até surpreendentes”. Acho válido alertar que algumas narrativas fazem citações as quais os menores de 50 (talvez 60), certamente, não saberão do que estou falando. “Vão viajar na maionese” – não é assim que se diz? O texto “Saudades” é o maior exemplo. Mas, que posso fazer se nasci no século passado? São minhas vivências, minhas memórias, impossíveis de serem esquecidas. Peço aos leitores da minha geração que se encarreguem de, quando necessário, prestar os devidos esclarecimentos aos mais jovens. Você, que faz parte do meu seletíssimo grupo de fiéis leitores (penso que já são uns 12 ou 13) e que torce
8 pelo meu ingresso na ABL, provavelmente já conhece muitas dessas narrativas. Todas ou algumas. A propósito, com a sua permissão, embora assumidamente antipático, vaidoso, atrevido e presunçoso, não posso perder essa oportunidade para dizer: acho, sinceramente, que vale a pena ler de novo. Pronto, falei. Não resisti. Muito obrigado, Carlos Melo - Novembro/2023
RESGATE/Carlos Melo/Sumário 1. A prece 2. A tralha 3. As saudades de Luiza 4. Olhando o retrovisor 5. O palhaço Formiga 6. Jogando a felicidade no lixo 7. Três amigos 8. O poder da criação 9. Solar Renascer 10. A velha turma do científico 11. Crepúsculo 12. Diário de vovó Maria 13. Reunião de condomínio 14. Estamos aqui 15. Deixa a vida me levar 16. Odilon e Araci 17. Love história 18. A difícil arte de conviver 19. A vida continua 20. A paquera 21. Esse ano não vai ser igual àquele que passou 22. O show do ano 23. Saudades 24. Vamos ao teatro? 25. Infância última coisa a ser feita
A Prece - 1 -
11 Ele devia ter uns trinta e cinco anos, mas a aparência era de cinquenta ou mais. Sujo, magro, maltrapilho, descalço, cabelos e barba por fazer, unhas longas e imundas. Enfim, um trapo humano. Com o sol na cara, acabara de acordar e surgia do meio de um monte de papelões e de alguns panos sujos e malcheirosos. À sua volta, outros iguais a ele, no mesmo estado lastimável, também despertavam lentamente. Alguns, sentados na calçada, apoiavam os braços sobre os joelhos, olhando para o nada, como a criar coragem para levantar e começar mais um dia sem qualquer perspectiva. Ele mal lembrava o próprio nome. Não esquecera o Bernardo, porém, o Santoro de Oliveira já havia ficado pelo caminho. Talvez junto com os documentos que perdera há séculos, sabe-se lá onde e como. Perdera tudo ou quase tudo. No entanto, a lucidez e a fé ainda lhe restavam. Com elas guardava a esperança de que um dia aquela situação se reverteria a seu favor. Nessa esperança encontrava forças para sobreviver. Mas, estava difícil, muito difícil.
12Levantou-se, arrumou o local, catou uns dois ou três papelões – talvez, à noite, fosse precisar deles para dormir –, recolheu a pequena trouxa que servia de travesseiro e que jamais abandonava e, sem olhar para trás, iniciou sua caminhada diária sem pressa e sem rumo. Perambulou sem destino, mendigando pelas ruas e nada de diferente aconteceu. Foi um dia igualzinho ao de ontem, ao de anteontem e a todos os outros dias de sua vida nos últimos tempos. A tarde já findava e o sol já se punha. Bernardo, depois de muito caminhar, resolveu sentar-se um pouco e descansar na areia da praia. A noite caía e a lua, com sua luz prateada, iluminava poética e lindamente o mar imenso à sua frente. As pessoas, os seres humanos de verdade – sim, porque ele já nem mesmo um ser humano se considerava – recolhiam-se com dignidade aos seus lares. A praia e as ruas esvaziavam- -se cada vez mais. À medida que o tempo passava, só os esquecidos e os fracassados iguais a ele sobravam, procurando, cada um ao seu modo, um canto para se aquecer, dormir, esquecer a vida e passar mais uma noite ao relento. Ele, porém, continuava ali. Estava muito cansado. Não da longa caminhada, mas da própria vida. Revirou a trouxa e recolheu um paletó velho e imundo como ele. Enfiou-se na peça, tentando proteger-se da friagem que vinha com o cair da noite e se desligou do mundo. A partir daquele momento, não saberia dizer se havia ou não mais alguém à sua volta. Ele queria,
13 ele precisava ficar sozinho. Só admitia a companhia do mar e da lua? Não, claro que não. Faltava alguém e era justamente esse alguém que ele buscava. Ele precisava conversar com Deus e aquele era o momento. “Meu Deus, por que tu me esqueceste? O que eu te fiz? Onde foi que eu errei? Por que eu? Tu não és meu pai? Um pai não pode tratar um filho como estás me tratando. Meu pai, me enxerga. Eu já não aguento mais. Ajuda-me. Dá-me a tua mão. Por favor, mostra-me um caminho. Deus, por que eu? Tu não permitiste que eu conhecesse o meu pai nesta vida, mas não me importei, afinal, eu tinha a ti. Depois, levaste minha mãe. Ah! Aí eu fiquei muito zangado contigo. Tu sabias que ela era meu maior tesouro. A pessoa que mais amava depois de ti, a única coisa que eu prezava de verdade. Fiquei perdido, sem rumo, sem norte. Chorei muito, tu sabes, mas me recuperei. Encontrei pessoas que me ajudaram e me deram a mão. Eu sei que foste tu que as colocaste no meu caminho. Mas, e depois? Cresci aos trancos e barrancos. Estudei um pouco. Só um pouquinho. Precisava trabalhar para sobreviver. Então encontrei uma companheira. Lembra como te agradeci? Estava muito feliz. Vivia um
14bom momento. Ela prometeu estar comigo na saúde, na doença, na riqueza e na pobreza. Achei que tudo ia dar certo a partir dali. No entanto, estava enganado. Minha felicidade durou pouco. As coisas aconteceram feito um turbilhão, levando-me junto como uma folha caída de uma árvore que não tem forças para se defender do vento. Minha mulher se foi, me abandonou. Logo depois, perdi o emprego. Os amigos também se foram e nada mais deu certo. O tempo passava e minha vida seguia lenta como passos de tartaruga. Nada de bom me acontecia. A vida me deu uma rasteira. Caí e até hoje não consegui me levantar. Meu Deus, por que eu? Por que fui o escolhido? Por que fizeste de mim esse farrapo de gente, um excluído, um perdedor, que sofre humilhações a cada instante, sem direito de ter nada, absolutamente nada nessa vida? Por que eu? Até minha dignidade me tiraste. Que desânimo, Senhor! Podes imaginar como é deprimente, como me sinto um rato, um nada, quando tenho que revirar as latas de lixo em busca do que comer? E até nessas horas sou escorraçado pelas pessoas como se fosse um cachorro qualquer, um vira-latas sem dono. Quanta humilhação, Senhor! Por favor, me responda, por que eu?
15 Nessas horas – e em muitas outras, também – sabe qual é minha vontade? É morrer e acabar de vez com esse sofrimento. Mas, aí eu penso em minha mãe – aquela que tu levaste, lembra? Foi ela quem me ensinou a rezar e vivia me dizendo, quando eu era criança, que a tua vontade deve prevalecer sempre, em qualquer circunstância – ‘Seja feita a Vossa vontade, assim na Terra como no Céu’. Então, imagino que essa deve ser a tua vontade: ver-me assim, desse jeito, como se eu não existisse. É... Porque ninguém me vê. Eu sou um nada. Eu não existo. Será possível que essa seja, de fato, a tua vontade, Senhor? Vivo me perguntando: por que eu? Apesar dessa vida difícil que levo – se é que isso pode ser chamado de vida -, tu sabes que todas as noites, quase sempre cansado e com fome, não deixo de me lembrar de ti e, então, rezo. Rezo a Ave Maria, a única prece que me lembro dentre tantas ensinadas por minha mãe. Eu me lembro de ti, mas parece que tu te esqueceste de mim. Sei que foste tu que criaste esse mar admirável, que não tenho ideia de onde começa nem onde termina. Sei também que criaste essa lua maravilhosa. Homem nenhum conseguiria fazer isso, eu sei. Só tu serias capaz de nos dar o sol, os rios, o céu, as florestas, as chuvas, enfim, tudo, tudo. Se tu és capaz de tanta coisa, se tu és capaz de tudo, por que não me ajudas a sair desse fundo de poço? Por quê? Eu sei que não
16sou o único. Eu olho para os lados e vejo, sim, pessoas angustiadas e desesperançadas iguais a mim, mas por que eu tenho que ser igual a elas? Por quê? Outro dia, envergonhado, fui pedir um copo d’água numa casa. A senhora me atendeu com carinho – coisa rara de acontecer – e me deu a água. Depois, olhou-me penalizada e disse: “Meu filho, estou vendo que você é jovem. Não desanime. Não se acostume a essa vida miserável, indigna e medíocre. Lute sempre, tenha esperança e, sobretudo, muita fé em Deus”. Oh! Pai querido! Desculpe... Desculpe... Pensando bem, acho que estou falando demais. Se me encontro nessa situação é porque tu queres que seja assim. Certamente, eu mereço, e, como tu nunca erras, deves ter tuas razões. Esquece. Esquece tudo que eu falei. Blasfemei contra ti e isso não pode acontecer. Perdoe-me. Sou mesmo um miserável e não sei mesmo o que falo. Às vezes penso que não te mereço. É verdade que não tenho onde morar, nem onde dormir, nem ao menos o que comer, mas tenho uma coisa muito mais importante que tudo isso: uma fé enorme em ti. Ah!... Isso eu não perdi. Por causa dessa fé, tenho certeza de que, quando chegar o momento certo e for da tua vontade, minha vida vai melhorar. No entanto, também se tu não quiseres, se achares que não mereço, tudo bem. Não vou morrer por cau
17 sa disso. Vou entender e vou me conformar. Só queria te pedir um favor, só uma coisinha: não permitas, não deixes nunca, aconteça o que acontecer, que eu perca a fé em ti. Se tu me ajudares a não perder a fé, as coisas serão bem mais fáceis para mim, podes ter certeza. Mais uma vez, desculpa as bobagens que falei. Não tenho a tua grandeza, sou um pobre pecador. Tu sabes o que fazes e eu é que não sei o que digo. Perdoe minha revolta, esse desabafo insano. Agora vou deitar-me ali, embaixo daquele banco. Quem sabe, se tu quiseres, amanhã alguma coisa boa pode me acontecer. Tenho fé que dias melhores virão. O Senhor sabe que só preciso de uma oportunidade. Só isso. Como dizem por aí ‘a fé remove montanhas’, e a minha fé em ti, certamente, vai conseguir mudar o rumo dessa minha vida, para que eu possa tornar-me um cidadão digno. Não quero riqueza, não quero muito. Somente dignidade, e vou conseguir, porque confio em ti. Sei que um dia isso vai acontecer. Quem sabe amanhã? Vamos ver. Seja feita a tua vontade. O que tiver que ser, será. Tua bênção, meu Pai.” ------------------
- 2 - A tralha
19 O Natal se aproximava e Beatriz já havia decidido o que fazer com seu décimo terceiro salário. Nada de viajar, trocar o carro ou guardar na poupança. A grana, esse ano, seria toda empregada em melhorias no seu apê. Havia sido um ano de muito trabalho e ela merecia, sim, mais conforto no seu refúgio, dizia isso a quem quisesse ouvir, em bom tom e com todas as letras. De fato, o imóvel estava meio caído e a decoração, segundo ela, precisando urgentemente de uma modernizada. A pintura das paredes e as cortinas, em péssimo estado, haviam perdido a validade havia séculos. Ia aproveitar suas férias para a sonhada repaginada doméstica. Decisão tomada, mãos à obra. A bronca maior era com um antigo relógio de parede, tipo carrilhão, que havia herdado da mãe, que, por sua vez, ganhara da avó como presente de casamento. Daí, a razão da enorme estima que nutria pelo trambolho. Em todas as lembranças de infância e juventude, no velho casarão da rua do Catete, a imagem do
20relógio estava presente. Quando a velha adoeceu, já com a idade avançada, reuniu os três filhos e disse- -lhes que, como tinha certeza de que seu fim estava próximo, queria deixar algo para que eles a tivessem sempre nas suas lembranças. Determinou, então, que a jarra de cristal murano que comprara em Veneza por ocasião da inesquecível viagem de bodas de prata, seria de Lúcia. O abajur de pé que estava na sala ficaria para o Vitinho. Lembrou que a cúpula grená com motivos orientais havia sido trazida do Japão pelo falecido marido, quando, certa vez, lá esteve a trabalho. Finalmente, o relógio de parede seria de Beatriz. Beatriz, apesar de saber de todo o histórico do relógio, achava que havia chegado a hora. “Não aguento mais olhar para esse relógio. Já deu. Há anos escuto essas badaladas de hora em hora. Ninguém merece. Chega”. Não é demais ser dito que ele até estava bem conservado. Havia pouco mais de um ano que tinha voltado de uma revisão geral. Mas, mesmo assim, a dona resolveu decretar sua aposentadoria. Beatriz estava mesmo disposta a dar uma modificada no seu lar. Mandou pintar as paredes de novas cores, comprou cortinas, sofá e uma mesa de jantar redonda cheia de estilo. Para a parede onde estava o relógio, adquiriu um quadro que se encantou quando foi passar um fim de semana em Miguel Pereira. Embora penalizada, era preciso se desfazer do velho relógio. Não tinha outro jeito.
21 A parede estava pintada e o quadro comprado. Era chegada a hora de dar um destino à velha peça, que, se falasse, teria mil histórias para contar. Era também uma boa oportunidade para praticar a generosidade e o desapego. Sem perder tempo, pegou o interfone e ligou para a portaria. – Seu Luiz, aqui é a Dona Beatriz, do 302. O senhor, por acaso, quer um relógio de parede usado, novinho? Está em ótimo estado e funcionando perfeitamente. É que estou fazendo uma arrumação aqui em casa e ele está sobrando. – Quero não, Dona Beatriz, obrigado. O que mais eu tenho na minha casa são relógios. Imagina a senhora que temos uns quatro ou cinco. É demais, não é mesmo? Desculpe, eu lhe agradeço, mas não quero não. – Tudo bem, seu Luiz. Não tem problema. Vou ver outra pessoa. Assim, como uma via crucis, Beatriz consultou o porteiro da noite, o rapaz da limpeza, o entregador de pizza e até o técnico da NET. Sempre com aquela conversa mole, tentando convencer as pessoas de como seria importante para elas ter o relógio de parede em suas casas. Nada. Ninguém se interessava. Valério, o taxista que a levava para todos os lugares, até se entusiasmou num primeiro momento. Mas, quando viu o objeto pendurado na parede, fez cara de decepcionado, desculpou-se e desistiu meio sem graça.
22Beatriz, então, lembrou-se da sua irmã Lucia. Ela havia acabado de se mudar para um apartamento novo e, provavelmente, ficaria feliz de ver o velho relógio em sua casa. – Lucia, tudo bem? Ainda não tive tempo de ir aí conhecer sua casa nova. Estou super curiosa. Olha só... Queria saber se você quer aquele relógio carrilhão que era da mamãe. É que estou fazendo uma reforma aqui em casa e ele está sem lugar. Talvez aí você possa acomodá-lo numa paredinha qualquer. Você se lembra dele, né? É um charme. Essas peças antigas estão mega em moda e supervalorizadas. Só não fico com ele porque não tenho lugar mesmo. – Beatriz, não estou acreditando no que estou ouvindo. Você quer se desfazer daquele relógio que nossa mãe lhe deu no leito de morte? Você sabe perfeitamente o carinho que ela tinha por ele e sabe também que ele acompanha nossa família desde que nascemos. Aliás, antes de nascermos. Mamãe ganhou de presente de nossa avó no dia em que se casou, lembra-se? Imagina como mamãe deve estar inquieta lá no São João Batista. Que decepção, minha irmã. E o pior, para deixar Beatriz ainda mais arrasada, é que essas palavras foram ditas em meio à voz embargada e soluços chorosos. Ela desligou o telefone irada com Lucia e arrependida de ter feito a besteira de ligar para a irmã. Se arrependimento matasse, com certeza estaria morta.
23 Apesar de estar sentindo um pouco de culpa por tudo que havia ouvido de Lucia, Beatriz lembrou-se de Dona Ricarda, do 201. “As pessoas idosas gostam de peças antigas. Certamente ela vai se interessar”, pensou. – Alô, Dona Ricarda. Aqui é Beatriz, do 302. A senhora vai bem? Não lhe tenho visto nos últimos dias. Sabe... Estou lhe ligando para saber se a senhora se interessaria por um relógio tipo carrilhão, de parede. Ele é bem bonito, daqueles grandes, antigos e está em excelente estado e funcionando 100%. Estou fazendo umas reformas aqui em casa e sem lugar para ele. – Beatriz, querida. Você não tem ideia. As paredes da minha casa têm tanta coisa pendurada que não tem lugar nem para um alfinete. Gostaria muito, mas não tenho lugar, mesmo. É uma pena. Mas, de qualquer forma, muito obrigada. Beatriz não acreditava no que estava acontecendo. Achava que iria se desfazer do velho relógio num piscar de olhos. Na verdade, não tirava da cabeça as barbaridades que Lucia lhe havia falado ao telefone. Será que o espírito de sua mãe estaria mesmo interferindo na desova da tralha? Resolveu, então, visitar Vitinho. Já fazia um tempo que não via os sobrinhos. Reencontraria o irmão e as crianças e, aproveitava, para oferecer o relógio. A tarde foi muitíssimo agradável. Os meninos estavam saudáveis, crescidos e espertos. O lanche, uma
24delícia. Já perto de ir embora, tocou no assunto. – Vitinho... estava olhando aquela parede ali. Acho que nela ficaria bem aquele relógio que era de mamãe, lembra? Você o quer para você? A mulher de Vitinho, que já se ocupava em desfazer a mesa do lanche, nem esperou o marido responder: – De jeito nenhum. Estou doida para dar um fim naquele abajur horroroso que está ali. Não aguento mais olhar para essa peça de museu. Chega de coisa velha aqui em casa. Obrigada, cunhada, mas não tenho a menor simpatia por aquele seu relógio. Lamento. E assim, para desespero da pobre Beatriz, os dias correram e nada aconteceu. O dia amanheceu chuvoso. Era seu último dia de férias. Beatriz, numa derradeira cartada, ligou para a síndica: – Dona Arlinda, é a Beatriz do 302. Será que a senhora me autoriza a colocar um relógio tipo carrilhão, antigo, naquela parede vazia atrás da portaria? Não vai atrapalhar nada. Só por uns dias. – Claro que não, Dona Beatriz. A senhora é uma advogada e sabe muito bem que a nossa Convenção não permite essas coisas. Imagina aquele relógio badalando de hora em hora. Ninguém ia aguentar. Iria até atrapalhar o serviço do porteiro. Sinto muito. Desolada e injuriada com Dona Arlinda, desligou o interfone. Deu uma olhada na janela. A chuva caía
25 copiosamente, sem dar trégua. Trovões, relâmpagos. Chovia a cântaros. A TV mostrava, através de boletins extraordinários, as ruas alagadas. Beatriz estava sem saber o que fazer. A tarde findava. Chovera o dia todo. As pessoas assistiam perplexas de suas janelas, as ruas alagadas e carros sendo arrastados pela correnteza. Beatriz, com alguma dificuldade, retirou o relógio da parede. Desceu com a tralha até a portaria. Também com dificuldade, caminhou abraçada com o relógio e deu uns poucos passos em direção ao meio da rua. Desequilibrava-se em alguns momentos com a força das águas e se esforçava para manter-se de pé. Num determinado momento parou. Fez uma breve oração desculpando-se com a mãe pelo ato que estava prestes a praticar. Só então soltou o relógio e deixou que a correnteza o levasse. Lá se foi ele, cambaleante, levado pelas águas rua abaixo, provavelmente constrangido e lamentando o fim indigno que sua dona lhe reservara. Nenhuma consideração pelos muitos anos de bons serviços prestados àquela família. Pronto... O fato estava consumado e o problema de Beatriz resolvido. Não vale a pena nem pensar na reação de Lucia quando souber o desfecho dessa história. Beatriz que se prepare. Com certeza, vem chumbo grosso. ---------------------
As saudades deLuiza - 3 -
27 A ternura do olhar é a mesma, apesar dos mais de setenta anos passados. Luiza repousou o olhar nos jardins floridos da frente da varanda do pensionato e deixou o pensamento voar para o passado. Se viu quase menina, adolescente de tranças longas, que mal havia abandonado as bonecas da infância. Deixava os brinquedos para brincar com o coração. Vivia agora pelos cantos da casa suspirando por Osvaldo, o filho do novo administrador da fazenda. Foi só bater os olhos no Vadinho que as pernas tremeram e o coração disparou. E o jovem correspondeu plenamente à flechada de Luiza. Daí para frente, suas vidas mudaram: nada no mundo era mais importante do que estar um ao lado do outro. Os encontros precisavam ser às escondidas. “Deus me livre” que alguém soubesse. O calor de seus jovens corações acendeu o fogo de seus corpos e o que não devia acontecer, aconteceu. Luiza, na flor de seus dezesseis anos, ia ser abençoada pela maternidade. Uma bênção que vinha, a bem da verdade, um pouco fora de hora e, sabiam
28eles que aquela notícia, embora os fizesse imensamente felizes, iria lhes trazer inúmeros contratempos. Os pais de Luiza, para abafar o que seria, na época, um verdadeiro escândalo, decidiram que era necessário tomar, com urgência, algumas providências. O pai, fazendeiro austero e respeitado por seu gênio explosivo, não precisou de muito tempo para tomar as decisões. O administrador e sua família, incluindo Vadinho, claro, foram escorraçados no meio da noite ao tempo em que ouviam os impropérios irados do patrão que maldizia a hora em que os havia contratado. Quanto à Luiza, coitada, para evitar a vergonha e para que não ficasse mal falada no lugar, foi mandada para casa de parentes na Europa, execrada pelo pai “por ter se comportado tal e qual uma vagabunda qualquer”. Luiza, acolhida sem nenhum prazer pelos parentes, se tornou mãe de um menino que era a cara de Vadinho. Deu ao filho o nome do pai: Osvaldo Júnior. O tempo passou. Luiza estudou, trabalhou, sofreu, chorou. Se desesperou, se conformou, acertou, errou, mas nada a fazia esquecer Vadinho. Fez amizades, sentiu saudades. Conheceu outros rapazes, paquerou, namorou, noivou, até transou. Mas acabava sempre sozinha, porque não esquecia Vadinho. Parecia praga de madrinha ou coisa feita: os anos passavam, ela tentava de todas as maneiras esquecer aquele amor adolescente e não conseguia. Por vezes tinha a impressão de que, no seu íntimo, não desejava verdadeiramente se livrar daquele sentimento. Era como
29 se o cultivasse com carinho especial para que ele jamais a abandonasse. A lembrança de Vadinho lhe trazia uma paz infinita e acalmava o seu coração. Além disso, a semelhança do Júnior com o pai não deixava que ela esquecesse o amado distante. Era a triste lembrança daquele amor não vivido que alimentava e alegrava os seus dias. Enquanto Juninho crescia, Luiza envelhecia. Um dia ela teve que voltar. Com a morte dos pais e sendo única herdeira, voltou para resolver o problema da venda da fazenda decadente. Já com alguns problemas de saúde, decidiu ficar e viver por aqui. Na sua trajetória de vida, Luiza teve que suportar uma outra perda. Juninho, seu filho querido, desde os tempos de adolescente, influenciado por amigos, começou a frequentar palestras e reuniões de uma seita oriental, cujos principais líderes estão sediados no Tibet. Entusiasmou-se e, tempos depois, já adulto, quis conhecer as raízes da seita que escolhera e aprofundar seus conhecimentos. Foi, gostou e ficou. Hoje é um monge que se dedica a ajudar os mais pobres, num trabalho de muita entrega e abnegação. Vez por outra, bem de vez em quando mesmo, manda alguma notícia para a mãe. Isso já faz muito tempo. Luiza tenta conviver com a tristeza da ausência do Juninho, mas, entre uma e outra lágrima, se esforça para entender e se conformar. Hoje ela vive num pensionato para idosos. É uma velhinha de cabeça branca, quieta, que sorri e fala pouco. Tem uma vida tranquila, sem preocupações, mas com inúmeras recordações. Sempre, nos finais de tarde, Luiza gosta de sentar-se na poltrona da varanda