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Published by rafaelsurianii, 2018-09-22 17:18:38

Street Queens 1-53

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STREET QUEENSLegenda
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STREET QUEENS
SURIANI

Textos de Draga da Quebrada e Vitor Grunvald
1a edição

São Paulo Legenda
 Rafael Suriani
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2018

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Corpo, cidade e formas de vida
a partir das Street Queens

por Vitor Grunvald

Muitas são as entradas que podemos utilizar para movimentos sociais de pessoas generificadas,
discutir as obras aqui apresentadas pelo artista sexualizadas e racializadas têm insistido no
Suriani. Gostaria de trabalhar duas delas, aquelas processo de corporificação da política através de
que remetem às palavras que nomeiam a série. uma negação do sujeito de direito abstrato
Começo com uma dupla pergunta: por que a rua é ocidental. A partir dessa perspectiva, o espaço
o lugar privilegiado pelo artista e quais as público como espaço democrático da política e do
consequências dessa escolha? encontro entre pares – aqueles pares que a noção
Antes de perscrutar algumas possíveis de cidadãos com direitos iguais perante a lei supõe
respostas, contudo, é importante tecer algumas – é, na melhor das hipóteses, ilusão.
considerações sobre a rua, a cidade, o espaço
público. Pelo menos no Brasil, via de regra, a rua Mas o mundo escapa por todos os lados! E, como
é pensada a partir de sua contraposição à casa bem lembra Michel de Certeau, “se, no discurso, a
(espaço familiar). A rua é o espaço incerto de cidade serve de baliza ou marco totalizador e
relações cambiantes e instáveis, pois nada quase místico para as estratégias socioeconômicas
garante, a princípio, que as regras que supomos e políticas, a vida urbana deixa sempre mais
reger esse lugar de relativa exterioridade sejam, remontar àquilo que o projeto urbanístico excluía.”
em realidade, seguidas. Negociação é, portanto, (De Certeau, 2012[1990], p.174)
uma prática comum nesse espaço que é tão Rafael Suriani, que estudou na Faculdade de
desejado quanto, de alguma forma, temido. Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Hannah Arendt (2016[1958]), ao discutir Paulo no início dos anos 2000, sempre teve a rua e
o conceito de espaço público, o chama de espaço o espaço público como horizonte de atuação
de aparição, aquele no qual, para utilizar uma artística. Ainda na graduação, utilizou, tanto
expressão de Paul B. Preciado (2014[2004]), individualmente quanto com o coletivo EMEX (Em
corpos falantes emergem uns para os outros Exposição), fotocópias e colagens que tomavam a
criando, entre eles, um tipo de relação que rua como tela e visavam incitar reflexões sobre a
podemos chamar de política. especulação imobiliária que há tempos não cessa
Esse espaço de aparição sempre se construiu e se de redesenhar a geografia urbana da capital
constrói a partir de um processo que Chantal paulistana.
Mouffe e Ernesto Laclau (1986) chamam de É bastante claro para Suriani que não são apenas
“exclusão constitutiva” por meio da qual qualquer arquiteturas e intervenções urbanas que fazem da
noção particular de inclusão é estabelecida. E as cidade um organismo vivo. É, efetivamente, a
cidades modernas e suas arquiteturas são também articulação de uma série de experiências e
práticas políticas de construção de um determinado relações que a dotam de sentido, significando e
tipo de espaço público e de controle das formas de determinando seus usos. Depois da experiência
articulação nele presentes ou possíveis. que teve em Nova Iorque onde trabalhou como
A partir da segunda metade do século XX, professor de inglês para brasileiros que aí residiam

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London Fox, LondreLse,g2e0n1d2a.

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ilegalmente, Suriani volta para São Paulo onde o centro de gravidade, de maneira mais geral,
povaréu orgânico que anima e modifica a poderíamos chamar de alteridade.Desde esse
experiência citadina em seus fluxos constantes se momento e até 2013, Suriani cola nas ruas
tornou potencial criativo que culminou em uma grandes pinturas sobre papel nos quais
série de investigações artísticas advindas de sua metamorfoseia figuras de pessoas e animais,
pesquisa com imigrantes bolivianos nos bairros construindo híbridos de humanos e não-humanos.
Armênia e Brás. O corpo e a imagem corporal, como suportes da
Em sua trajetória, a recorrente prática de identidade vivida, se tornam objetos de uma
utilizar a rua como lugar de uma reivindicação que transmutação através da qual a própria forma é
se pensa, ao mesmo tempo, política e artística, ele experimentada de maneira menos fixa e - por que
teve que lidar não apenas com aparatos estatais e não? - menos normativa do que costuma supor
mercadológicos de organização desse espaço, nossa intuição social.
mas, igualmente, com outros atores sociais que o Lembremos que o binário de gênero, isto
reivindicam para si. é, a existência de homens e mulheres a partir de
Com esses imbróglios, Suriani entendeu corporalidades tidas como naturais e
que a rua e suas paredes são territórios de disputa complementares, é, adverte-nos autoras como
e pertencimento. Em 2007, deslocou-se Judith Butler, fundante das noções que temos de
novamente. Dessa vez para Paris, cidade que viria humanidade. Dessa maneira, não é de se estranhar
a ser um marco importante na sua trajetória que a investigação sobre modos e formas de vida
pessoal e onde realizou, a partir do ano seguinte, levada à cabo por Suriani nessa série de trabalhos
um master em Art Contemporain et Nouveaux que mistura figuras humanas com gatos e aves se
Média na Université Paris VIII Vincennes-Saint- converta, com Street Queens, em uma pesquisa
Denis. que envolve também processos que manipulam,
É esse o instante que, talvez, seja o ponto no corpo, não apenas a espécie, mas, igualmente,
mítico de nascimento de um tipo de experimentação o gênero.
artística que culmina no livro que aqui vos é De fato, ambos já eram territórios abertos ao
apresentado. Ao conjunto de suas inquietações ensaio e à desconstrução nessas obras, pois são
ligadas à cidade se soma, então, problemas cujo vários os exemplos de borramento de pressupostos

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cisheterocentrados nessas corporalidades Estar em drag ou fazer drag é,
positivamente estranhas. Dorsos masculinos com costumeiramente, entendido como um caso
longas e finas pernas sustentadas em sapatos de particular - e, diria-se, de segunda ordem - de uma
salto alto e cabeças de ave, ensaiando delicadas construção subjetiva que já aconteceu,
coreografias. Cabeças felinas completadas por anteriormente, como processo geral do sujeito. Em
seios e braços que tocam outros seios. Formas outras palavras, seria uma pessoa já previamente
humano-animais que são corporalmente dada e constituída subjetivamente que, de forma
estendidas por leques e exibem poses fechativas e deliberada, brinca e exacerba os signos sociais de
afeminadas. gênero, então revelados como arbitrários, de forma
Street Queens é também marcada pelo a construir uma personagem.
corpo do próprio artista e do desejo que dele Mas se o caso particular for, na realidade, o caso
emana e que o situa no mundo. Quando me geral? Se, nesse processo de manipulação do
recebeu em seu ateliê em Vila Madalena para me gênero, for o gênero mesmo que se constrói? Se
fazer o convite para escrever este texto, Rafa nos perdermos entre pessoa e personagem a
lembrou, com brilhos nos olhos e sorriso nos ponto de não sabermos mais quem se traveste de
lábios, os idos anos da adolescência quando ia quem? Quantas vezes nos ensaiamos em frente a
para A Lôca, importante núcleo de sociabilidade espelhos ou sozinhos em nossos quartos e salas?
noturna LGBTQIA+ de São Paulo. E via, já na Ou ainda: será que a construção da
entrada, drag queens e suas deslumbrantes pessoa generificada que consideramos intuitiva,
montações impossíveis de se ignorar. natural e primeira não é um processo social de (re)
A admiração por essas figuras quase articulação que opera através dos mesmos
oníricas também foi impulsionada pelo mecanismos com que opera a construção do corpo
ressurgimento da atenção pública ao universo e da subjetividade drag? Quando Draga da
drag gerado pelo programa RuPaul’s Drag Race, Quebrada conta, nesse livro, que suas
realizado nos Estados Unidos, mas de alcance experimentações drag de gênero foram
internacional. Não é à toa que várias das fundamentais para sua descoberta como pessoa
personagens que participaram do programa não-cisgênera, travesti e/ou transexual, não é
aparecem retratadas na série. disso que está falando?
Se, no início do texto, me perguntei o por quê da Menos que certeza, sugiro aqui algumas
cidade, da rua e do espaço público como lugar dúvidas. Pois não se trata de criar um novo
privilegiado de ação, chegou a hora de retomar a conjunto de verdades. Trata-se, antes, de detonar
outra chave de leitura que escolhi para pensar algumas potencialidades virtuais que podem ser
essas obras: por que essas queens? intuídas e retiradas da série e do livro aqui
Parece-me que, em certo sentido, é apresentado. No final das contas, não seríamos
possível pensar a noção de normatividade corporal todas/os drags de nós próprias/os?
e a relação de alteridade como construção de si
pelo outro como os problemas de fundo que Bibliografia
animam o trabalho de Suriani..Das transformações ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de
corporais já tratei nas palavras acima. Mas o que Janeiro: Forense Universitária, 2016[1958].
falar dessa construção de si pelo outro e por que CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1.
acho que ela se manifesta na série aqui Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012[1994].
apresentada? MOUFFE, Chantal; LACLAU, Ernesto. Hegemony

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Corps villes et formes de vie a partir
des Street Queens

por Vitor Grunvald

Muitas são as entradas que podemos utilizar para perspectiva, o espaço público como espaço
discutir as obras aqui apresentadas pelo artista Suriani. democrático da política e do encontro entre pares –
Gostaria de trabalhar duas delas, aquelas que remetem aqueles pares que a noção de cidadãos com direitos
às palavras que nomeiam a série. Começo com uma iguais perante a lei supõe – é, na melhor das hipóteses,
dupla pergunta: por que a rua é o lugar privilegiado ilusão.
pelo artista e quais as consequências dessa escolha?
Antes de perscrutar algumas possíveis Mas o mundo escapa por todos os lados! E, como bem
respostas, contudo, é importante tecer algumas lembra Michel de Certeau, “se, no discurso, a cidade
considerações sobre a rua, a cidade, o espaço público. serve de baliza ou marco totalizador e quase místico
Pelo menos no Brasil, via de regra, a rua é pensada a para as estratégias socioeconômicas e políticas, a vida
partir de sua contraposição à casa (espaço familiar). A urbana deixa sempre mais remontar àquilo que o
rua é o espaço incerto de relações cambiantes e projeto urbanístico excluía.” (De Certeau, 2012[1990],
instáveis, pois nada garante, a princípio, que as regras p.174)
que supomos reger esse lugar de relativa exterioridade Rafael Suriani, que estudou na Faculdade de
sejam, em realidade, seguidas. Negociação é, portanto, Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
uma prática comum nesse espaço que é tão desejado no início dos anos 2000, sempre teve a rua e o espaço
quanto, de alguma forma, temido. público como horizonte de atuação artística. Ainda na
Hannah Arendt (2016[1958]), ao discutir o graduação, utilizou, tanto individualmente quanto com
conceito de espaço público, o chama de espaço de o coletivo EMEX (Em Exposição), fotocópias e colagens
aparição, aquele no qual, para utilizar uma expressão que tomavam a rua como tela e visavam incitar
de Paul B. Preciado (2014[2004]), corpos falantes reflexões sobre a especulação imobiliária que há
emergem uns para os outros criando, entre eles, um tempos não cessa de redesenhar a geografia urbana da
tipo de relação que podemos chamar de política. capital paulistana.
Esse espaço de aparição sempre se construiu e se É bastante claro para Suriani que não são apenas
constrói a partir de um processo que Chantal Mouffe e arquiteturas e intervenções urbanas que fazem da
Ernesto Laclau (1986) chamam de “exclusão cidade um organismo vivo. É, efetivamente, a
constitutiva” por meio da qual qualquer noção articulação de uma série de experiências e relações
particular de inclusão é estabelecida. E as cidades que a dotam de sentido, significando e determinando
modernas e suas arquiteturas são também práticas seus usos. Depois da experiência que teve em Nova
políticas de construção de um determinado tipo de Iorque onde trabalhou como professor de inglês para
espaço público e de controle das formas de articulação brasileiros que aí residiam ilegalmente, Suriani volta
nele presentes ou possíveis. para São Paulo onde o povaréu orgânico que anima e
A partir da segunda metade do século XX, movimentos modifica a experiência citadina em seus fluxos
sociais de pessoas generificadas, sexualizadas e constantes se tornou potencial criativo que culminou
racializadas têm insistido no processo de em uma série de investigações artísticas advindas de
corporificação da política através de uma negação do sua pesquisa com imigrantes bolivianos nos bairros
sujeito de direito abstrato ocidental. A partir dessa Armênia e Brás.

16

Courtney Act, Paris, 2015.

17

Em sua trajetória, a recorrente prática de utilizar a rua longas e finas pernas sustentadas em sapatos de salto
como lugar de uma reivindicação que se pensa, ao alto e cabeças de ave, ensaiando delicadas
mesmo tempo, política e artística, ele teve que lidar coreografias. Cabeças felinas completadas por seios e
não apenas com aparatos estatais e mercadológicos de braços que tocam outros seios. Formas humano-
organização desse espaço, mas, igualmente, com animais que são corporalmente estendidas por leques
outros atores sociais que o reivindicam para si. e exibem poses fechativas e afeminadas.
Com esses imbróglios, Suriani entendeu que a rua e Street Queens é também marcada pelo corpo do
suas paredes são territórios de disputa e próprio artista e do desejo que dele emana e que o
pertencimento. Em 2007, deslocou-se novamente. situa no mundo. Quando me recebeu em seu ateliê em
Dessa vez para Paris, cidade que viria a ser um marco Vila Madalena para me fazer o convite para escrever
importante na sua trajetória pessoal e onde realizou, a este texto, Rafa lembrou, com brilhos nos olhos e
partir do ano seguinte, um master em Art Contemporain sorriso nos lábios, os idos anos da adolescência
et Nouveaux Média na Université Paris VIII Vincennes- quando ia para A Lôca, importante núcleo de
Saint-Denis. sociabilidade noturna LGBTQIA+ de São Paulo. E via, já
É esse o instante que, talvez, seja o ponto mítico de na entrada, drag queens e suas deslumbrantes
nascimento de um tipo de experimentação artística que montações impossíveis de se ignorar.
culmina no livro que aqui vos é apresentado. Ao A admiração por essas figuras quase oníricas também
conjunto de suas inquietações ligadas à cidade se foi impulsionada pelo ressurgimento da atenção
soma, então, problemas cujo centro de gravidade, de pública ao universo drag gerado pelo programa
maneira mais geral, poderíamos chamar de alteridade. RuPaul’s Drag Race, realizado nos Estados Unidos, mas
Desde esse momento e até 2013, Suriani cola nas ruas de alcance internacional. Não é à toa que várias das
grandes pinturas sobre papel nos quais metamorfoseia personagens que participaram do programa aparecem
figuras de pessoas e animais, construindo híbridos de retratadas na série.
humanos e não-humanos. O corpo e a imagem Se, no início do texto, me perguntei o por quê da cidade,
corporal, como suportes da identidade vivida, se da rua e do espaço público como lugar privilegiado de
tornam objetos de uma transmutação através da qual a ação, chegou a hora de retomar a outra chave de
própria forma é experimentada de maneira menos fixa leitura que escolhi para pensar essas obras: por que
e - por que não? - menos normativa do que costuma essas queens?
supor nossa intuição social. Parece-me que, em certo sentido, é possível pensar a
Lembremos que o binário de gênero, isto é, a existência noção de normatividade corporal e a relação de
de homens e mulheres a partir de corporalidades tidas alteridade como construção de si pelo outro como os
como naturais e complementares, é, adverte-nos problemas de fundo que animam o trabalho de Suriani..
autoras como Judith Butler, fundante das noções que Das transformações corporais já tratei nas palavras
temos de humanidade. Dessa maneira, não é de se acima. Mas o que falar dessa construção de si pelo
estranhar que a investigação sobre modos e formas de outro e por que acho que ela se manifesta na série aqui
vida levada à cabo por Suriani nessa série de trabalhos apresentada?
que mistura figuras humanas com gatos e aves se Estar em drag ou fazer drag é, costumeiramente,
converta, com Street Queens, em uma pesquisa que entendido como um caso particular - e, diria-se, de
envolve também processos que manipulam, no corpo, segunda ordem - de uma construção subjetiva que já
não apenas a espécie, mas, igualmente, o gênero. aconteceu, anteriormente, como processo geral do
De fato, ambos já eram territórios abertos ao ensaio e à sujeito. Em outras palavras, seria uma pessoa já
desconstrução nessas obras, pois são vários os previamente dada e constituída subjetivamente que, de
exemplos de borramento de pressupostos forma deliberada, brinca e exacerba os signos sociais
cisheterocentrados nessas corporalidades de gênero, então revelados como arbitrários, de forma
positivamente estranhas. Dorsos masculinos com a construir uma personagem.

18

Mas se o caso particular for, na realidade, o caso geral? travesti e/ou transexual, não é disso que está falando?
Se, nesse processo de manipulação do gênero, for o Menos que certeza, sugiro aqui algumas dúvidas. Pois
gênero mesmo que se constrói? Se nos perdermos não se trata de criar um novo conjunto de verdades.
entre pessoa e personagem a ponto de não sabermos Trata-se, antes, de detonar algumas potencialidades
mais quem se traveste de quem? Quantas vezes nos virtuais que podem ser intuídas e retiradas da série e
ensaiamos em frente a espelhos ou sozinhos em do livro aqui apresentado. No final das contas, não
nossos quartos e salas? seríamos todas/os drags de nós próprias/os?
Ou ainda: será que a construção da pessoa
generificada que consideramos intuitiva, natural e Bibliografia
primeira não é um processo social de (re)articulação ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense
que opera através dos mesmos mecanismos com que Universitária, 2016[1958].
opera a construção do corpo e da subjetividade drag? CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer.
Quando Draga da Quebrada conta, nesse livro, que suas Petrópolis: Vozes, 2012[1994].
experimentações drag de gênero foram fundamentais MOUFFE, Chantal; LACLAU, Ernesto. Hegemony and Socialist
para sua descoberta como pessoa não-cisgênera, Strategy. Londres: Verso, 1986.
PRECIADO, Paul B.. Manifesto contrassexual. São Paulo: n-1
edições, 2014[2004].

Shea Coulee, Paris, 2017.

19

«Toda Drag é meio cronista, elas comentam sobre o mundo em que
elas estão inseridas em suas performances. Mesmo as que não
fazem isso conscientemente, o acabam fazendo.»

Malonna

Ginger Minj Paris, 2015 et Bebe Zahara Bonet, Araçatuba, 2016.

20

«Toutes drag queens sont un peu chroniqueuses. Dans leur performances,
elles commentent le monde dans lesquel elles sont inclues. Même celles

qui n’en ont pas conscience, le font.»
Malonna

Marie Jo Dassin, Paris, 2017 et Silvety Montilla, Araçatuba, 2016.

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22

Ikaro Kadoshi, Paris, 2016.

23

24

Milan, Paris, 2015.

25

DRAG, uma questão politica

Draga da Quebrada

A sexualidade e a identidade de gênero não são discussões recentes. Com o advento das tecnologias e
o ápice das redes sociais, essas discussões se tornaram mais presentes e fizeram com que os membros
da comunidade LGBTQIA+ não mais ficassem restritos ao gueto e pudessem lutar por direitos encontrando
seus irmãos e irmãs de luta de forma mais eficiente.

Uma coisa não se nega, DRAG QUEENS e DRAG KINGS são seres “enigmáticos” que sempre estiveram e
sempre estarão presentes na comunidade LGBTQIA+. DRAG permite que pensemos sobre gêneros e
sexualidade, o que nos leva a questionar o caráter real dessas dimensões e refletir sobre as construções
sociais do masculino e feminino dentro desse sistema exclusivamente binário e heteronormativo. A
pessoa que faz da arte DRAG uma força política dentro da comunidade mostra sua importância quando
exerce sua influência na subjetividade das pessoas como ação de empoderamento para aqueles que
fogem à norma cisheteronormativa imposta arbitrariamente. Além disso, a DRAG traz essas discussões
para o senso comum e reivindica espaços que são negados aos corpos não classificados como “normais”.

Artistas que fazem DRAG QUEEN/KING esfacelam a ideia antiquada de gênero como algo sistematicamente
fixo e inabalável (CHIDIAC; OLTRAMARI, 2004). Suas performances remetem-nos a símbolos de liberdade
e apropriação de si, ultrapassando, inclusive, os limites do que é considerado humano. DRAG QUEENS e
KINGS podem ter chifres, barba, espartilhos ou viver no século XIV. O tempo de vivência DRAG não é
cronológico (CRONOS), mas kairológico (KAIRÓS - não-linear e que não se pode determinar ou medir),
pois DRAG como arte ultrapassa não só os limites de gênero, mas os limites do tempo.

Para aprofundar a questão da performance DRAG como política, entrevistei 5 artistas da cena paulistana
atual. São elas Maldita Hammer, Malonna (drag do André Silva que se monta há 12 anos), Abba Cashier
(DRAG do inglês Mitchel Cutmore), Pamella Saphic (criada por Fernando Aquino em 2015) e Irmã Mary
Poppers (criação do psiquiatra Bernardo Banducci Rahe). Seus depoimentos pontuarão reflexões ao
longo das páginas deste livro.

Para Malonna, a drag modula o espaço onde entra. Não há como as relações não se organizarem a partir
daquela presença. Toda pessoa que adentra um recinto faz com que as outras tenham que modular as
relações entre elas e essa tensão faz a política acontecer. Ele fala que quando nós nos organizamos,
quando promovemos a civilidade, estamos fazendo política. Para Pamella Saphic, a DRAG tem um poder
de representatividade impressionante, é como se você tivesse um megafone. A importância da DRAG
como instância política é justamente no sentido de “dar a cara a tapa”, para que o dia de amanhã seja
melhor para quem está vindo.

26

Pabllo Vitar, São Paulo, 2018.

27

Drag, une question politique 

par Draga da Quebrada

La sexualité et l’identité de genre ne sont pas des sujets de discussion récents. Avec l’avancement des technologies
et l’explosion des réseaux sociaux, ces questions sont devenues plus présentes et ont permis aux membres de la
communauté LGBTQIA+ de sortir des ghettos et de lutter pour leurs droits avec leurs compagnons de bataille de
façon plus efficace.

Les drag queens et les drag kings ont toujours été indéniablement présents dans la communauté LGBTQIA+. Leur
existence nous permet de réfléchir sur les genres et les sexualités. Ils questionnent les constructions sociales du
masculin et du féminin dans un système exclusivement binaire et hétéronormé. La personne qui fait de l’art drag une
force politique dans la communauté, fait preuve de son importance quand il exerce une influence dans la subjectivité
des gens. C’est une action d’émancipation pour ceux qui échappent à la norme cis-hétéronormée qui leur est
imposée de façon arbitraire. Par ailleurs, les drags amènent ces débats au sein du grand public en revendiquant des
espaces interdits aux corps considérés anormaux.

Les artistes qui font du drag effacent l’idée obsolète du genre comme étant figé et inchangeable (CHIDIAC;
OLTRAMARI, 2004). Leurs performances font référence à des symboles de liberté et d’émancipation, et surpassent
même les limites de ce qui est considéré comme humain. Les drag queens et drag kings peuvent porter des cornes,
de la barbe, des corsets et peuvent vivre au XIXème siècle. Le temps du vécu drag n’est pas chronologique (Chronos),
mais Kairologique (Kairòs - non linéaire, indéterminé, non mesurable), car drag va au delà des limites du genre et du
temps.

Pour approfondir la question de la performance drag comme politique, j’ai interviewé 5 artistes de la scène actuelle
de São Paulo. Maldita Hammer, Malonna (l’alter ego drag d’ André Silva qui existe depuis 12 ans) , Abba Cashier
(l’alter ego de l’anglais Mitchell Cutmore), Pamella Saphic (créée par Fernando Aquino) et Irmã Mary Poppers
(création du psychiatre Bernardo Banducci Rahe) . Leurs témoignages contribueront à notre réflexion dans ce livre.

Pour Malonna, une drag queen articule l’espace dans lequel elle entre. Les relations se réorganisent à partir de sa
présence. Toute personne, quand elle entre dans un endroit, active une réorganisation des relations et une tension
qui crée de la politique. Selon elle, quand nous nous organisons, nous faisons de la politique. Pour Pamella Saphic,
les drag queens ont un pouvoir impressionnant de représentativité. C’est comme si vous aviez un mégaphone. Drag
est important d’un point de vue politique. Nous sommes dans l’avant garde du militantisme, pour que l’avenir soit
meilleur pour les générations futures.

28

Conchita Wurst, Paris, 2014.

29

Pearl, e Raja, Paris, 2016.

30

Malonna, Paris, 2016.

31

Dr. Frank N, Further, Adore Delano, Jujubee, Jujubee, Bianca del Rio | Paris, 2014.

32

Adore Delano, Lady Bunny, Kelly Caramelo, Adore Delano, Chad Michaels, Hedwig | Paris, 2014 - 2016.

33

Ikaro Kadoshi, Adore Delano | Paris, 2014/2016.
Farah Moan | Paris 2017.

34

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Aja | Paris, 2017.
Sharon Needles | Paris, 2015.

36

Legenda

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Laganja Estranja , Amanda Lepore | Paris, 2014.

38

Raven, Penny Tration | Paris, 2014.

39

Conchita Wurst, Paris, 2014.
Conchita Wurst, tinta acrilica e colagem sobre tela/acrylique et collage sur toile, 2014.

40

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41

Rupaul Charles, Paris, Araçatuba, Paris, 2016.

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43

Willam e Violet Chachki, | Paris, 2016.

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45

Manila Luzon, Sahara | Paris, 2015. Legenda

46

Legenda

47

Sharon Needles | New York, 2015.

48

Legenda

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Draga da Quebrada

Draga é criação minha, Duda Leão, eu mesma e sim, um agente transformador da realidade que
quem vos falo. Sou uma pessoa transexual, que me cerca, ao questionar em minhas performances
especificamente se auto-identifica como travesti. a arbitrariedade da existência cissexista imposta à
Comecei fazendo DRAG como pessoa cisgênera e comunidade LGBTQIA+.
a arte foi a possibilidade de me descobrir. Jesus
(2012), define que a pessoa cisgênera é aquela Além de experimentar o poder transformador da
que se identifica com o gênero que lhe foi atribuído arte como terapia, pude, na experimentação do
socialmente, o que definitivamente não é o meu meu corpo, ir de encontro à identidade que sempre
caso. esteve presente em minha vida e reprimida
duramente, ora por mim, ora pelos outros. Ao me
Como pessoa trans marcada pelo julgamento descobrir travesti, através dessa exploração do
social, minha saúde psicológica sempre esteve feminino que sempre me foi negada, fazer DRAG
comprometida. Foi por meio da criação da persona se tornou muito mais desafiador. O que antes era
DRAGA DA QUEBRADA, que eu pude desafiar os apenas uma experimentação que me levou a me
limites do meu corpo e me aventurar no glamuroso montar, agora é o indício de que eu posso fazer
e marginal mundo DRAG. Antes, minha raiva e com a minha persona o que eu quiser, a DRAGA DA
frustração com a normatividade era engolida a QUEBRADA pode ser tudo, menos uma DRAG
seco, agora ela era engolida com gin e cuspida comum.
para fora. Hoje, eu não me permito mais ser vítima,

Draga da Quebrada

Draga est ma création. Je suis une personne transformateur de la réalité qui m’entoure. Je
transexuelle et je m’identifie comme un “travesti”. questionne dans mes performances la dimension
Quand j’ai commencé à faire du drag en tant que arbitraire de l’existence cissexiste imposée à la
personne cisgenre, cet art m’a permis de me communauté LGBTQIA+.
découvrir. Sont considérées cisgenres les
personnes qui s’identifient avec le genre qui leur En plus d’expérimenter le pouvoir transformateur
ont été attribué à la naissance. Cela n’est pas mon de l’art comme thérapie, j’ai pu explorer mon corps
cas. et aller à la rencontre de mon identité. Tout au long
de ma vie, celle-ci a été présente mais réprimée
En tant que personne trans marquée par le par moi et par les autres. Quand je me suis
jugement social, ma santé psychologique a découverte “travesti” par cette expérimentation du
toujours été menacée. Par le biais de la création de féminin qui m’a toujours été niée, faire du drag est
ma “persona” Draga da Quebrada, j’ai pu contester devenu plus difficile. Au début, il s’agissait d’une
les limites de mon corps et m’aventurer dans le expérience de travestissement. Maintenant, tout
monde glamour et underground du drag. Avant, cela est plutôt le signe que je peux faire tout ce
j’avalais avec haine et frustration les couleuvres de que je veux avec ma persona. Draga da Quebrada
la normativité. Maintenant j’avale le tout avec du peut être tout, sauf une drag basique.
gin et je le recrache. Aujourd’hui, je ne me permets
plus d’être une victime, mais un agent

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