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Um papo honesto e bem humorado sobre os primeiros anos de maternidade.

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Published by Camila Santos, 2015-07-30 10:19:11

Tudo Sobre Minha Mãe

Um papo honesto e bem humorado sobre os primeiros anos de maternidade.

Keywords: maternidade,vida fora do brasil,mãe de primeira viagem,mães

Tudo Sobre
Minha Mãe

Camila Furtado


Copyright © 2015 Camila Furtado
Todos os direitos reservados
ISBN-13: 978-1512009941
ISBN-10: 1512009946

Para Holger, Maria e Gael.


2!

Sumário

Que livro é esse? 5

Força na peruca 9

A promessa 11
Peço desculpas a todas as minhas amigas que
tiveram filhos antes de mim 15
Gratidão 19
A minha paranoia 23
O valor das coisas 27
Hoje não vai ter história 31
Sono, cansaço e um amor sem fim 35

Dia das Mães sincero 37
A diferença entre uma mãe checa e uma mãe
brasileira 39
Você acha que eu devo engravidar? 43
Minha vida sem sono 47
Amor sem fim 51

3!

A vida como ela é 55

O primeiro bullying 57
Conversa de parquinho 61
Um vira-latas chamado Branquinho 65
Amizades que os filhos nos trazem 71
Amor de pai 75
Um amiguinho sem mãe 79
Vai dar tudo certo 85

A bolha 87
Opinião de mãe não se discute 93
A corrida 97
Cartas para Maria 101
Viajando sozinha 105
Os trens 109
E agora, quem sou eu? 113
Agradecimentos 119

!4

Que livro é esse?

Ser mãe ficou mais complicado graças à avalanche de
dicas e informações que recebemos de todos os lados.
Com tanto conteúdo editado circulando por aí é fácil
ficar com a impressão de que todo mundo está tirando
a maternidade de letra. Se não pintarem umas amigas
sinceras falando a real, é bem possível que acredite que
todas as crianças mamam bem, dormem a noite inteira
e se comportam direitinho e que filho não dá trabalho,
só prazer e satisfação.

É por isso que bom mesmo é esquecer esse blablablá de
maternidade idealizada e ter uma pessoa com quem
você possa se abrir, ser honesta e – principalmente –
humana. Que libertador é poder falar da felicidade que
é ser mãe, dos momentos de doçura que a gente vive
perto dos nossos filhos pequenos, mas também da
saudade da época em que podia tirar férias de verdade,
ou voltar de uma festa às 6 da manhã, sem medo de ser
feliz. Ou da vontade de investir mais tempo na carreira,
ou de como tantas vezes nos sentimos sem resposta
para os desafios e perguntas que aparecem.

Se quiser ter uma conversa com alguém que abriu o
coração, este livro é para você. Os textos são uma
seleção do que publiquei no blog
www.tudosobreminhamae.com entre 2012 e 2014,

5!

período em que meus filhos tinham entre 1 e 5 anos de
idade.

Foi uma época em que, apesar de toda a gratidão que eu
sentia por ter meus pequenos saudáveis e felizes
comigo, eu estava muito cansada e passando por uma
crise de identidade pior do que quando eu escutava
heavy metal na adolescência.

São textos despretensiosos, que não querem defender
uma linha pedagógica nem convencer ninguém a agir
assim ou assado. A vontade é só mostrar que esses
sentimentos quase bipolares que a maternidade desperta
em nós não são assim tão incomuns. É normal ser
normal. Ninguém vem pronto, a gente vai aprendendo
a ser mãe sendo.

Aqui você vai encontrar crônicas sobre o cotidiano
materno, desabafos pessoais e histórias de mães e
crianças que encontrei pelo caminho. Alguns textos são
bem humorados, outros mais introspectivos. Em
comum apenas minha visão honesta sobre as dores e as
delícias dos meus primeiros anos como mãe.

6!

Um pouco de mim

Sou carioca, passei a infância e a adolescência no Rio de
Janeiro e muito da vida adulta em São Paulo. Morei em
Barcelona e estou há 10 anos na Alemanha. Troquei
Barcelona por Berlim por causa do meu marido, que é
alemão. Meus filhos, Maria, hoje com 6 anos, e Gael,
com 4, nasceram em Colônia, onde residimos
atualmente. Até o nascimento da minha primogênita fiz
uma carreira bacana na área de cooperação
internacional. Depois larguei o emprego, fiz um MBA,
desisti da carreira e passei 5 anos em casa como mãe em
tempo integral – não muito bem nessa ordem. Há 3
anos me redescobri na vida de blogueira e – uau, que
surpresa! – escritora. Hoje trabalho em uma start-up de
internet.
Não temos família por aqui, nem babá, nem empregada.
Eu e meu marido tentamos dar conta do pacote
completo. Para você ter uma ideia mais clara de como é
minha vida, há duas semanas consegui arrumar meu
guarda-roupas Era um projeto pessoal que eu tinha há
uns 4 anos. Estou feliz. 


!7

8!

Força na peruca

9!

1! 0

A promessa

Maria, 4 anos
Gael, 2 anos

Coloquei as crianças para dormir e dei graças a Deus.
Hoje eles estavam loucos. Deram muito trabalho.
Brigaram, não gostaram da comida, bagunçaram tudo
que eu tinha acabado de arrumar, fizeram drama para ir
dormir.

AHHHHHHHHHH, que saco! Qualquer dia desses
preciso escrever um texto sobre como é possível fazer
tudo para que seus filhos sejam felizes e mesmo assim
haver dias em que eles só reclamam, fazem você de gato
e sapato e dá vontade de sumir do mapa.

O mau humor é interrompido por uma mensagem da
minha irmã, que está grávida de 9 meses, no celular.
Chegou a hora. No outro lado do mundo minha
sobrinha vai nascer. Na mensagem, minha irmã diz que
está com contrações fortes e regulares, que está se
sentindo diferente.

“Estou tão feliz”, ela escreve na mensagem, “Sou tão
abençoada”. Eu consigo reconhecer a emoção nas
palavras dela. Me comovo pensando no que minha irmã
está vivendo, imaginando tudo o que vai sentir nas
próximas horas. Que emoção que é pensar que, se
conseguir dormir, vou acordar amanhã com uma foto

!11

da minha sobrinha no celular. Fico imaginando o que
minha irmã vai me contar ao telefone. Provavelmente
vamos chorar juntas, assim como choramos quando
liguei para avisar que a Maria e o Gael tinham nascido.

Me lembro perfeitamente do dia em que meus filhos
nasceram. Nada se compara a essa felicidade. É o
melhor dia da nossa vida inteira. A adrenalina do
nascimento. Vai dar tudo certo? Como será que o bebê
é? Cabeludo? Que cor de olhos tem, que cor de
cabelos? É perfeito? Tem saúde? E então tudo dá certo,
você agradece a Deus pela sorte e percebe que a vida é
de fato um milagre. Que o amor que você sente naquele
momento dá sentido a tudo que possa vir pela frente.

São momentos tão bonitos. Você pega o neném,
encosta no seu peito, sente o cheiro de recém-nascido.
Fecha os olhos. Sente a emoção. Se apaixona
perdidamente. No seu colo aquela pessoinha inocente,
tão dependente de você. O olhar de quem não sabe
onde está. Tudo bem – você pensa – vou te proteger.
Você encosta o rostinho no seu rosto, beija a testa,
sente o cheiro de novo e promete: vou te proteger. Vou
te amar.

Penso outra vez no dia exaustivo que tive hoje, em o
quanto essa rotina com criança pequena é dura às vezes.
Penso em como estou mal cuidada, na absoluta falta de
tempo para mim, em como as crianças me
enlouquecem de vez em quando... Mas de repente tudo

!12

que há 10 minutos era muito grande fica pequeno
diante da notícia do nascimento da minha sobrinha. E
então me lembro de onde eu tiro forças quando está
pesado demais. É que nada no mundo é mais forte do
que essa promessa interior que a mãe faz no dia em que
o filho nasce. Vou te proteger. Vou te amar. Mesmo nos
dias mais difíceis.

!13

1! 4

Peço desculpas a todas as minhas
amigas que tiveram filhos antes de
mim

Maria, 4 anos
Gael, 2 anos

Quando não temos filhos, o que mais escutamos das
nossas amigas que já têm ou até mesmo dos nossos pais
é: "Você não tem filho, você não sabe." É a mais pura
verdade. Não dá para entender apenas imaginando, nem
com todo bom senso do mundo. É o tipo da coisa que
só dá para entender, de verdade, quando acontece com
você.

E eu, como todos os desavisados que saem por aí
tirando conclusões, dando conselhos ou simplesmente
pensando e falando coisas absurdas, cometi várias
injustiças com minhas amigas que viraram mãe antes de
mim.

Uma das minhas melhores amigas casou cedo e logo
depois virou mãe, assim, meio no susto, sem planejar.
Era o auge das nossas vidas. Carreiras deslanchando,
gente nova, festas, viagens. E eu simplesmente não
entendia por que pelo menos uma vez por semana ela
não podia sair com a gente como sempre fez. Eu dizia:
"Vai, pega uma babá, pede para sua mãe, é só uma
noite." É claro que não me passava pela cabeça que se

1! 5

minha pobre amiga (mãe de primeira viagem, que nunca
parou de trabalhar) tivesse à disposição uma babá
confiável ou uma mãe solícita, talvez a prioridade não
fosse sair comigo. Talvez ela preferisse fazer alguma
coisa mais imprescindível para a continuação da vida
dela, como, por exemplo, dormir, tomar um banho
demorado, transar com o marido ou simplesmente não
fazer absolutamente nada.

Não me passava pela cabeça que ser mãe de filhos
pequenos e ao mesmo tempo querer ser você é uma
proposta bem ambiciosa caso não se esteja
terceirizando a maternidade. Eu não sabia que, para
conseguir trabalhar e ao mesmo tempo cuidar do bebê
que tinha em casa, minha amiga abdicava de muitas
coisas básicas sob o ponto de vista de quem não tem
filhos. E quando digo básica, é básica mesmo: comida,
diversão e arte.

Em outra ocasião, uma amiga que morava na Suécia
com marido e dois filhos pequenos estava de passagem
por São Paulo e me ligou em cima da hora, querendo
me ver. Ela argumentou, torcendo para que eu
concordasse: "Só tenho hoje, sei que está em cima, mas
consegue dar um jeito? Quero muito te ver, consegui
deixar meus filhos com a minha mãe.” Ela tinha me
pegado saindo do trabalho. Eu estava cansada e
embarcaria para uma viagem de trabalho no dia
seguinte bem cedo. Queria muito encontrá-la também,
mas não via como. Por que ela não me avisou antes?

!16

Não podia ter se planejado? "Desculpe, não posso.
Nem arrumei a mala e viajo às 5 da manhã”, finalizei
com pena, mas convicta.

O que também não conseguia perceber é que poderia
ter ido ver minha amiga, e depois, se fosse o caso, varar
a noite fazendo a mala para, no dia seguinte, chegar ao
meu hotel confortável, encarar um dia de trabalho com
sono (e/ou ressaca) e depois dormir. Um sono pesado,
de horas ininterruptas por todas as noites que eu
quisesse, até que o primeiro bebê parasse em meu colo.
Lembro da decepção na voz da minha amiga, e da
minha total incapacidade de entender a razão.

Quando não temos filhos não temos a menor noção. E
com essa afirmação não quero massacrar quem não tem
filho, que, claro, não pode saber. Quero apenas,
formalmente, pedir desculpas às minhas amigas.
Desculpa, gente, eu não sabia.

Não sabia a quantidade de coisas que vocês faziam ao
mesmo tempo, não sabia que era possível planejar
tudinho e – por alguma razão banal como uma febre –
tudo seria cancelado. Não sabia o que era cansaço e
vontade de dormir, não sabia o que era não ter nem 5
minutos de paz para ir ao banheiro. Não sabia o que era
estar em um lugar com o coração em outro. Não sabia,
principalmente, que depois que se vira mãe, a gente da
maneira como a gente existia, não existe mais. E que
tudo tem que ser reinventado, inclusive as amizades.

!17

1! 8

Gratidão

Maria, 4 anos
Gael, 2 anos

Finalmente tinha chegado o dia. Depois de semanas
com o braço engessado, minha filha poderia, enfim, ir
para a escola de bicicleta. Maria não aguentava mais ver
todo mundo desfilando sobre duas rodas pelo bairro
sem poder participar. Era tortura demais para ela, que,
do alto dos seus 4 aninhos, estava super orgulhosa de
ter sido uma das primeiras da turma a aprender a pilotar
a magrela. Tinha esperado tanto pelo verão... E pimba:
braço quebrado.

Eu estava atrasada para levar as crianças para a escola,
mas, quando vi, a ideia já tinha saído da minha boca:
"Vamos de bicicleta hoje, Maria? Só não sei se o pneu tá
cheio..." Claro que eu tinha esquecido da porcaria do
pneu, que com certeza devia estar vazio depois de
semanas sem uso... Descemos para o bicicletário eu, ela,
o caçula e a bomba de encher pneu.

Como imaginava, os pneus estavam murchos. A Maria
prontamente assumiu sua personalidade ultra-
colaborativa, um privilégio dos momentos em que ela
está muito feliz ou agradecida. Enquanto eu bombeava
o ar minha filha segurava o pneu da bicicleta, me
atualizando sobre o resultado do meu esforço: “Vai,
mamãe, está enchendo, isso, muito bem!".

!19

De fato o pneu enchia, mas toda vez que eu tirava o
bico da mangueira para tentar fechar a válvula ele
esvaziava de novo em questão de segundos. Tentei
umas 30 vezes. Eu simplesmente não conseguia
entender por que não funcionava.

Dentro de mim crescia um misto de irritação e pena.
Por que fui inventar de ir de bicicleta? Já estava atrasada
para caramba. Queria mesmo era largar bicicleta,
bomba, pneu e sair correndo para deixá-los na escola.
Eu continuava tentando só para deixar bem claro para a
Maria que meu empenho era em vão, e também porque
ainda não tinha me ocorrido uma argumentação que
fosse capaz de apaziguar tamanha decepção. A Maria,
contudo, não perdia a esperança e a cada esvaziada de
pneu tentava me animar: "Vamos lá, mamãe, a gente vai
conseguir!”.

No momento em que desisti e peguei a tampinha para
fechar o bico da válvula do pneu e encerrar de vez a
situação me dei conta do que estava acontecendo. Na
correria, eu tinha tirado não só a tampa da válvula, mas
também um palitinho que fica ali e permite a entrada e
saída de ar. Pronto, com o palitinho em seu devido
lugar, em um minuto o pneu estava cheio.

A Maria e o irmãozinho (em solidariedade) pularam de
alegria. Agradeci a todos os meus santos por ter
conseguido encher o pneu. Que alegria vê-la pedalando
livre, sem gesso, com um sorriso de orelha a orelha.

2! 0

Na escola, na hora de se despedir, ela tirou o capacete,
me deu um abraço forte e disse: "Obrigada, mamãe, eu
sabia que você não ia desistir."

Confrontada com a gratidão e a felicidade da minha
filha, me senti constrangida, pequena. Eu tinha me
estressado alucinadamente em questão de minutos e,
por falta de habilidade para enfrentar a situação com
serenidade, quase matei – secretamente – seu
pensamento positivo. Balbuciei um "Obrigada a você,
filha" que ela não entendeu direito, mas tampouco
pediu explicação.

O obrigada era por ela acreditar em mim, por vencer a
minha irritação e por sair voando como uma borboleta
e encher minha vida de pureza e mágica. É nessas
horas, em meio aos percalços do cotidiano, que me
lembro do óbvio: amor de filho é a coisa mais linda que
existe. E, em gratidão a tanto amor, eu deveria encher
centenas de pneus de bicicleta sorrindo.


!21

2! 2

A minha paranoia

Maria, 4 anos
Gael, 2 ano

Toda mãe tem paranóias em relação aos filhos. Normal.
Uma das minhas tem a ver com a escada de incêndio do
meu prédio, que, como é comum na Alemanha, fica do
lado de fora. Morro de medo de que alguém suba por
essa escada, entre pela janela e roube meus filhos
enquanto eu estiver dormindo. Fico tão tensa que toda
hora invento uma “desculpa” para mim mesma para
levar as crianças para o meu quarto, o que a essa altura
do campeonato, não está sendo mais legal para
ninguém.

Já analisei cuidadosamente a irracionalidade dessa
situação. Para começar, moro num país bastante seguro.
Sim, às vezes acontecem assaltos a casas, mas
geralmente os ladrões fazem isso quando sabem que as
pessoas estão em férias – é mais estilo ladrão de galinha.
Depois, moramos a 300 metros de uma delegacia! Mas
tudo bem, vamos supor que o bandido esteja
determinado a correr todos os riscos e escalar a escada
de incêndio em frente à delegacia e entrar na minha
casa. Bom, aí ele tem que ser meio homem-aranha,
porque a escada de incêndio não dá diretamente na
janela, fica a aproximadamente um metro dela. Também
teria que usar um cortador especial de vidro, já que as
janelas são de um vidro muito espesso, difícil de

2! 3

quebrar, para proteger do frio. Tudo isso teria que
acontecer em um silêncio sepulcral para que eu não
escutasse nem um pio na babá eletrônica, com a qual
durmo praticamente abraçada. Sinceramente, existem
alvos mais fáceis.

Mas pensar nisso tudo nunca me ajudou muito. Esse é
um medo que desenvolvi logo depois que minha
primogênita nasceu. Veio do nada, se instalou em mim
e piora muito quando estou em casa sozinha com as
crianças. E juro que não sou medrosa, nem muito
superprotetora. Mas tenho essa verdadeira paranoia de
só conseguir relaxar de verdade se as crianças estiverem
ao alcance da minha vista. Na primeira tosse que vem
do quarto delas pulo da cama com o coração
palpitando, pego o filho que está tossindo, pego o filho
que não está tossindo e, pronto, coloco os dois na
minha cama. Passo o resto da noite me sentindo mais
segura, porém apertada entre um marido que dorme
como uma pedra e duas crianças que disputam quem
vai conseguir entrelaçar mais braços e pernas com a
mamãe.

Ontem, antes de deitar, fui dar a última checada básica
neles, fechei a janela – bem fechada – e cobri os dois.
Eles dormiam como anjos. Fui para o meu quarto
pensando no quanto estava cansada e que tudo que eu
queria era dormir uma noite como antigamente, inteira,
ininterrupta, sem nenhuma criança na minha cama.

!24

No dia seguinte, acordei às 6h30 com o pequeno me
chamando do berço. Nem sinal de criança na minha
cama. Depois de 4 anos dormindo praticamente com
um olho aberto e outro fechado, aquela tinha sido uma
dormida digna de uma pessoa normal, com sua vida
sob controle. Fiquei orgulhosa de mim mesma. Cada
um tem seus medos, suas paranóias, e temos que ser
compreensivos com nós mesmos. É tanta
responsabilidade virar mãe que é impossível passar por
esse processo sem dar uma pirada mesmo. Por outro
lado, estou percebendo que se não souber me dominar
e de alguma forma racional administrar meus medos,
vou tornar a minha vida e a dos meus filhos um
inferno. Afinal, convenhamos, o que não falta nesse
mundo é motivo para mãe ter medo, né? E olha que são
uns medos bem mais razoáveis do que o medo do
“bandido-aranha”.


2! 5

2! 6

O valor das coisas

Maria, 4 anos
Gael, 2 anos

Era aniversário de 2 anos do meu filho. Em vez de
comprar um presente, resolvemos ser os primeiros a
chegar numa loja de brinquedos e deixá-lo decidir por
uma coisa que gostasse. No caminho para a loja, a mais
velha usava todo seu poder de argumentação para nos
convencer de que ela também tinha direito a escolher
algo, ainda que não fosse seu aniversário. Eu contra-
argumentava sem muita convicção: "Vamos ver, Maria...
é aniversário do seu irmão, você já ganhou o seu,
lembra?" Mas a carinha de indignação com uma pitada
de tristeza sinalizava que o debate estava só começando.

Na loja de brinquedos, a negociação foi ficando cada
vez mais ardilosa. Eu sabia que ia perder. Então que
pelo menos fosse por um brinquedo que valesse a pena.
Maria começou apostando alto: casa de bonecas,
fantasia completa de vampirinha, neném que fala, anda
e faz xixi... Até que veio com uma Barbie Face. Desde
que passou férias no Rio de Janeiro ela queria uma
Barbie Face igual à da prima. Pelo menos era um desejo
de longa data. E a Barbie Face estava em promoção. O
que são 12 euros diante de um rostinho feliz? "Além do
mais, ela vai brincar para caramba com a Barbie Face" –
finalizei, argumentando ao meu marido, e a mim
mesma, na fila do caixa.

2! 7

Ledo engano. Minha filha brincou uma única vez com a
Barbie Face. Faz 2 meses que a boneca acumula pó
junto a uma montanha de brinquedos esquecidos. Hoje,
quando olhei para aquela cabeça loira, não pude deixar
de pensar numa frase que escutei de uma amiga há
algumas semanas: "Presente, aqui em casa, só em datas
especiais.”

Na ocasião, o assunto era outro e minha amiga está
longe de ser dessas mães que ficam cagando regras,
então nem falamos muito sobre isso. Mas a Barbie tinha
sido a gota d'água. Alguma coisa precisava mudar.
Afinal, em um mundo em que cada vez mais pessoas se
dão conta de que consomem coisas que não precisam,
tem algo muito errado na montanha de brinquedos do
quarto da Maria. Mandei um email para a minha amiga.
"Graziela, como assim, brinquedos só em datas
especiais?”

Ela contou que ela e o marido foram criados assim,
então era natural. A regra vale desde que as filhas
nasceram, e como sempre foi assim elas não ficam
questionando. É assim e ponto. "É para aprender a dar
valor às coisas" – resumiu com simplicidade. "Quando
pequena, eu sabia que para ter alguma coisa, tinha que
querer muito e esperar. Mas quando eu finalmente
ganhava, era a maior alegria. Enquanto isso eu brincava
com a Barbie e com a Moranguinho, que, apesar de
baixinha, era a irmã da Barbie, e nem por isso fiquei
complexada", explicou.

!28

Ela admitiu que às vezes fica com o coração partido.
Como, por exemplo, quando deixou a filha escolher
uma caneta brilhante porque tinha sido corajosa durante
uma vacina de gripe. Com os olhinhos fixados na
vitrine, a filha olhava as canetas e não sabia qual cor
escolher. Pensava muito para não errar. Num ímpeto,
minha amiga quase disse para a filha levar todas as
canetas, uma de cada cor – dane-se! –, só para vê-la
feliz. Mas se aguentou. A filha dá o maior valor para a
a caneta, guarda até no seu cofrinho.

Depois de ler o email dela, fico me perguntando se foi
esse tipo de educação que fez a Graziela virar uma
mulher batalhadora, que não tem medo de trabalho e
vai atrás do que quer. Para completar a educação
anticonsumista, pró-vida sustentável e pé no chão,
quando as meninas ganham um brinquedo novo têm
que escolher um brinquedo velho com o qual não
brincam mais para doar para uma criança pobre. A
pequena ainda não entende, mas minha amiga conta
que a mais velha se sente superimportante com seu ato
de generosidade.

Talvez você seja como a minha amiga e eu não esteja
falando novidade alguma, mas sempre fui meio gastona.
E a maior manteiga derretida. Então, me abre cabeça
quando escuto de uma amiga que poderia dar tudo para
os filhos que, não, ela não vai liberar geral, que as
meninas terão que aprender a dar valor às coisas.

2! 9

E, sinceramente, a Maria é mais feliz desde que ganhou
a Barbie Face? Não. Sabe o que a Maria quer de
verdade? Que a gente converse, que eu leia para ela, que
a gente vá ao parque, que a gente asse um bolo juntas,
que a gente desenhe, que eu faça a vozinha da
Moranguinho enquanto ela encena a Barbie.

Sei que esse meu jeito mão aberta não está contando
pontos para o futuro dos meus filhos. Mas para mim é
difícil ser diferente. Sou assim porque meus pais eram
assim. Eles tiveram uma infância simples e, quando
viraram pais, não resistiram ao ímpeto de dar para os
filhos tudo que eles não puderam ter. Além disso,
quando meus pais se separaram nós éramos ainda muito
novos, e desconfio que muita coisa foi decidida com
uma certa culpa rondando no ar.

O fato é que me vejo hoje, por razões diferentes,
repetindo o modelo mão aberta dos meus pais. A gente
é muito do que viveu em casa.

Mas tem uma coisa muito mais bacana que aprendi com
meu pai e com a minha mãe: nós sempre podemos
evoluir. Meus pais nunca estacionaram no tempo,
sempre tentaram expandir seus horizontes, aprender
novas formas de pensar, estavam e estão até hoje
constantemente tentando virar pais e pessoas melhores.

Maria, se prepare: Barbie Face no more!


!30

Hoje não vai ter história

Maria, 4 anos
Gael, 2 anos

Quase todas as noites conto uma história para a minha
filha antes de dormir. Adoro ver a carinha de interesse
dela. As preferidas são sobre a minha infância. Ontem,
por exemplo, contei para ela uma história clássica da
minha família. O dia em que eu e minha irmã
mostramos uma cenoura para nosso irmão mais novo,
dizendo que tínhamos cortado o dito cujo dele. Ele
tinha uns 3 anos e não teve a brilhante ideia de conferir
se estava tudo ali, dentro da calça. Maria ama essa
história.

Quando estou meio sem paciência, contudo, fico mais
nos contos de fadas, porque não é necessária muita
imaginação. É só atentar aos detalhes, seguir o script e
quando você viu a vovozinha já está saindo da barriga
do lobo.

Hoje eu não queria contar história de jeito nenhum.
Tive um dia ruim, nada demais. "Vou ficar aqui do seu
lado, te faço carinho, mas hoje não dá, Maria. Mamãe
quer ficar quietinha." Minha filha até tentou
argumentar, mas fui tão resoluta, falei com tanta certeza
que nenhuma história ia sair da minha boca, que acho
que ela sentiu que não ia rolar mesmo e se conformou
rápido.

!31

Senti alívio por ela ter aceitado tão rápido. Mas logo o
alívio foi saindo de cena e abrindo espaço para o
remorso. Olhei minha filha indo dormir sem história.
Pegou o travesseiro, se aconchegou na cama calada.
Estava conformada, mas tinha um ar triste, a decepção
era clara. Meu Deus do Céu! Não posso me perdoar por
um dia não querer contar história?

"Sim", penso comigo mesma, "você pode se perdoar."
Mas, em vez de deixar o assunto para lá e me acertar
com a minha decisão, entro numa complexa discussão
interna sobre o fato de eu não ter lido para a minha
filha. Fico matutando se é justo eu cortar a história dela.
Fico me perguntando se existem mães – maravilhosas,
claro – que querem de verdade contar histórias todos os
dias. E me questiono sobre o tipo de vida delas. Penso
no medo de me arrepender no futuro. Me pergunto até
se é mesmo o caso de eu ficar pensando nisso tudo. E
olha que não sou uma pessoa indecisa. Mas ser mãe me
desafia o tempo todo. Quando acho que sei o que estou
fazendo acontece qualquer coisa e pronto: já não sei
mais.

Pois então, para você eu vou contar uma história. Era
uma vez uma menina chamada Camila. Ela queria muito
ser mãe. Ela tinha certeza de que ia ser uma boa mãe.
Afinal, quase tudo que ela queria mesmo fazer na vida
tinha dado certo. Mas aí ela virou mãe e se deu conta de
que nada do que ela tinha feito antes era tão difícil
como isso. Existiam milhões de caminhos possíveis e

3! 2

não havia nenhum mapa. E, diferentemente da maneira
como agia no passado, aqui ela não queria mais se jogar
e ver no que dava. Queria acertar. Ela sabia que ela, eles
e a vida deles seriam definidos por aqueles caminhos. É
por isso que todos os dias tentava fazer o melhor, até
quando o melhor era "Desculpe, mas hoje eu não vou
ler para você.”
Ainda não sei o fim da história. Vou continuar amanhã.
Mas posso te garantir que estou fazendo de tudo para o
final ser feliz.


3! 3

3! 4

Sono, cansaço e um amor
sem fim


!35

3! 6

Dia das Mães sincero

Maria, 4 anos
Gael, 2 anos

Ainda não tenho muita experiência com esse negócio
de Dia das Mães. Meus filhos são pequenos. Faz pouco
tempo que a mais velha entendeu o que é essa data. O
mais novo não entende nada. A coisa mais legal que eu
já ganhei de Dia das Mães foi presente do meu pai! Era
o primeiro Dia das Mães meu e da minha irmã: ele
estava animadíssimo por ter virado avô, caprichou e deu
uma correntinha de ouro com um pingente de coração
para cada filha. Uso até hoje, foi o maior momento
amor.

Mas normalmente essa data tem meu marido super se
esforçando para fazer alguma coisa fofa-criativa. Tem
também um almoço num lugar bacana, o que é ótimo
porque não preciso cozinhar, e algum presente feito
pelas próprias crianças na escolinha. Este ano o mais
novo trouxe para casa um porta-retratos de madeira em
formato de caracol, que aparentemente ele mesmo
pintou. Quando cheguei à escolinha ele estava
segurando o caracol, todo orgulhoso. Meu coração
pulou de alegria e eu perguntei: “É para a mamãe,
Gael?” Ele respondeu sorrindo: “Não, é
Ael.” (tradução: Não, é do Gael) Entrou no carro
abraçando o caracol e no meio do caminho tive que
parar o carro no acostamento e tirar a bola da antena do

!37

caracol da boca dele antes que ele a engolisse. A mais
velha também fez um presente na escolinha, mas ainda
não sei o que é. Escondeu em algum lugar para me dar
só no Dia das Mães. Mas faz uns dias que ela pergunta:
“E aí, mamãe, animada com o Dia das Mães? Olha,
mamãe, fica tranquila, é só você dormir mais duas vezes
e chega o Dia das Mães. Então, animada???”

Não sei, Mariazinha, amor. Não sei se estou muito
animada. Estou é muito cansada hoje, isso sim. Faz
semanas que você e seu irmão se revezam em doenças
infantis, e hoje à tarde a gente ficou sabendo que seu
melhor amigo, com quem você passou a manhã inteira
grudada, está com o corpo todo cheio de pintinhas
vermelhas. Então, sinceramente, não sei se eu tô
suuuuuper animada. Mas eu acho o seguinte: esse
negócio de ser mãe é difícil pra caramba, e
provavelmente quando vocês forem adolescentes vai
ficar mais difícil ainda. Além disso, desde que vocês
nasceram tenho a sensação de que sou capaz de, a
qualquer momento, me jogar na frente de um trem para
vocês ficarem bem e serem felizes. Então eu acho bem
justo que exista um Dia das Mães, nem que seja para
ganhar um caracol de madeira com uma antena
quebrada de um menino de 2 anos que quando fala
“mamãe” olha para mim como se eu fosse a Miss
Universo. E, acredite, neste momento eu nunca estive
mais longe de ser a Miss Universo.

!38

A diferença entre uma mãe checa e
uma mãe brasileira

Maria, 4 anos
Gael, 2 anos

Era uma feijoada para poucos na casa de um amiga
brasileira. Entre os convidados havia um casal com uma
bebê de 6 meses. Ele alemão, ela checa. Admiro esse
pessoal que pendura os filhos nas costas e sai levando
pra tudo quanto é lugar. Aqui na Europa, como a gente
não tem babá e muitas vezes nem família para ajudar,
ou você leva seus filhos com você ou para de viver. No
meu caso, praticamente parei de viver. Eu era (sou?)
meio cagona, um pouco estressada, e com bebês
pequenos sempre preferi o aconchego do lar.

A menininha parecia felicíssima. Gordinha,
bochechuda, com um par de olhos azuis capaz de cegar
quem olhasse demais, pulava do colo da mãe para o do
pai sem reclamar nadinha. Soltava até uns gritinhos de
felicidade de vez em quando.

Sentamos para comer a feijoada. De um lado eu tinha
minha filha devidamente concentrada na feijoada. Do
outro a mãe checa, Tatiana. A bebê estava no chão,
dentro do bebê-conforto, sem dar um pio. Enquanto eu
olhava para Tatiana e tentava encontrar as olheiras que
evidenciassem seu cansaço, ela me contava tranquila

!39

que a filha dormia e mamava que era um beleza. Era só
deixá-la alimentada e com um brinquedinho que depois
de uns 15 minutos dormia sozinha a noite inteira. “Uau,
que sorte!”, pensei. Apesar de eu não estar mais nessa
fase, esses relatos ainda me impressionam.

Naquela época eu era capaz de chorar quando alguém
me contava que o filho dormia a noite inteira. Hoje em
dia acho que a metade mente, uma grande parte ainda
não sabe que esse negócio de dormir a noite inteira é
fase e ainda vem bomba por aí, e uma pequena cota tem
sorte mesmo. Não que eu ache que todo mundo tem
em casa uma sirene ambulante, que só dorme no peito e
acorda 20 mil vezes por noite como tinha sido comigo,
mas também não acredito que os filhos de todo mundo
dormem, menos os meus. Enfim, vamos à feijoada.

Papo vem, papo vai e bem timidamente a bebezinha
começa a reclamar. “Ela está com fome”, explica
Tatiana, que devia estar com fome também porque
continuava a comer sua feijoada na maior tranquilidade.
A menina reclama mais um pouquinho. A mãe pega no
colo. E continua conversando. Ela reclama um pouco
mais alto. “Acho que ela está com fome mesmo, está
assim mexendo com a boquinha, né?” argumentei, já
um pouco sem graça. “Com certeza é fome, ela mama
nesse horário”, finaliza a checa com mais uma garfada
de farofa. “Então vai, mulher, sai correndo, tira esses
peitos para fora, não está vendo que a menina está
faminta?” penso, mas pela paz na Europa fico calada.

!40

A anfitriã se levanta da mesa e se oferece para segurar a
menina enquanto Tatiana termina sua feijoada. Ela
aceita sem pensar duas vezes. Depois de muita boa
vontade, muito chocalho e coisa e tal a anfitriã devolve
a menina para mãe:“Acho que agora só você dá jeito.”
Enquanto a mãe checa levanta calmamente e vai
amamentar a filha no quarto dos anfitriões, eu imagino
que, se fosse eu naquela situação, com certeza já estaria
há muito tempo seminua, comendo feijoada com um
bebê pendurado no peito. Será que um pouco mais de
disciplina não teria feito a minha vida e a da minha filha
mais fáceis?

Depois de um tempo Tatiana volta à sala sem a filha.
“Dormiu?”, pergunto, curiosa. “Não, está brincando
com o brinquedinho, daqui a pouco ela dorme”, e volta
a participar animada da conversa. Quase uma hora
depois a menininha ainda não tinha dormido. O que se
escutava era um choro cada vez mais forte vindo do
quarto dos anfitriões. Eu e outra brasileira, também
visivelmente incomodada, não conseguíamos nem mais
prestar atenção na conversa. Sabe quando tem alguém
falando na sua frente, mas é como se a pessoa apenas
mexesse os lábios, sem som? Pois é, era assim que eu
me sentia. Eu estava em transe, quase levantando para
pegar a chequinha no colo e lhe dar uma bela de uma
ninada, daquelas que deixa qualquer criança mal
acostumada.

Nosso desconforto foi aumentando, até que a outra

4! 1

brasileira, que nem é mãe, soltou: “Olha, você me
desculpa, mas a sua filha não está brincando, não. Ela
está chorando.” Tatiana, já levemente irritada com os
palpites e olhares, explica que a filha não está chorando,
está brincando com o brinquedinho, mas levanta para ir
dar uma olhada na menina.
Volta mais de 1 hora depois. Meio descabelada, com um
botão da blusa desabotoado e aparentemente meio
raivosa, ela chama o marido e proclama: “Vamos
embora. Ela não quer dormir aqui!”
Pois é... Talvez as diferenças entre uma mãe checa e
uma mãe brasileira não sejam assim tão grandes como
eu pensava no começo da feijoada.


4! 2

Você acha que eu devo engravidar?

Maria 4 anos
Gael 2 anos

Querida Ana,

Nos últimos tempos, toda vez que a gente se encontra
você vem com esse papo. É o grande dilema da sua
vida, afinal, no ano que vem você faz 38 anos e ainda
não conseguiu decidir. Olha, eu entendo totalmente, é
mesmo uma opção difícil. Você e o Mark amam sair à
noite e viajar, você é uma executiva em ascensão. Vocês
têm vários amigos sem filhos. Seria uma grande
mudança.

Eu nunca quis convencer você a ter filhos. Não preciso
que você siga o meu caminho para legitimar a minha
escolha. Esta carta não é para isso. Aqui na Europa não
querer ser mãe não é mais tabu. É uma opção pessoal.
Acho bem injusta essa pressão toda e todos os clichês
repetidos por quem já é mãe para quem não é.

Sempre tento ser realista quando você me pede para
explicar o que é ser mãe. Ainda não sei como é ter
filhos mais velhos, mas posso te dizer como é minha
vida agora, com crianças pequenas. Somos nós que
cuidamos deles sem muita ajuda. Eles vão para a
escolinha, a gente vai trabalhar. Assim como todo
mundo aqui. E seria assim para você também.

4! 3

Eu sou eu no tempo mínimo que me sobra entre
trabalhar e ser a mãe deles. Tenho uma lista imensa de
coisas que gostaria de fazer e que muito provavelmente
não vou conseguir. Me revezo entre ficar com meus
filhos e querer fazer minhas coisas e fazer minhas coisas
e querer estar com meus filhos. Não é fácil, como você
já deve ter percebido pela minha ausência e cara de
cansaço constante.

Mas hoje é seu aniversário e você me pediu uma razão
para ter filhos. Então, vamos lá, posso te dar mil razões.
Elas são muito subjetivas, mas são reais.

Hoje, por exemplo, quando cheguei em casa depois da
sua festa, as crianças vieram correndo me abraçar. O
sorriso no rosto deles é a coisa mais linda que eu já vi
na vida. Nem as cinco semanas que passei naquela praia
deserta paradisíaca na Tailândia tiveram um impacto
maior em mim do que uma risada de cinco segundos
dessas crianças.

Outra razão? O pé do Gael. Todas as noites, quando
coloco ele no berço, faço carinho no pezinho gordinho
dele. Se eu não tivesse tido filhos, nunca teria um
pezinho gordinho desses pra mim, nem receberia
carinho de uma mãozinha igualmente gordinha, sabe?
Ele deita a cabeça no meu ombro e me abraça como se
não houvesse nada melhor no mundo e me sinto a
pessoa mais especial que existe.

!44

A Maria hoje acordou mais cedo que todo mundo, e
pela primeira vez, sem perguntar a ninguém, colocou a
mesa do café da manhã. Quando eu levantei da cama,
bêbada de sono, meu coração se encheu de alegria ao
ver aquela mesa posta, com os pratos e talheres
trocados, sem toalha nem guardanapo, mas com uma
menina orgulhosa esperando ansiosa ao lado dela a
minha aprovação.

Ontem a gente fez guerra de travesseiros com a família
inteira. As crianças quase não se aguentavam de tanto
rir. Era como se o mundo, o tempo e tudo lá fora
tivesse parado, e em algum momento me dei conta de
que estava com a barriga doendo de tanto gargalhar.

A Maria aprendeu a andar de bicicleta na semana
passada. Eu já estava quase desistindo, achando que não
ia dar certo, mas de repente percebi que ela conseguiu
se equilibrar e deixei-a ir sozinha. Lembrei exatamente
do dia em que meu pai correu atrás de mim segurando a
bicicleta e me soltou dizendo: “Vai, filha!” Ver a Maria
andando de bicicleta sozinha me encheu de um orgulho
tão avassalador que eu gritava para os desconhecidos
que passavam na rua: “Ela conseguiu! Ela conseguiu!”
Pensar que meu pai sentiu a mesma coisa quando me
viu andar de bicicleta pela primeira vez me emociona
tanto que tenho vontade de ligar para ele agora só pra
dizer obrigada.

E por aí vai, Ana. São coisas simples o que tenho para

4! 5

contar. Com certeza em alguns anos, com eles mais
velhos, serão outras coisas, mas é tudo assim, nessa
linha. Não existe uma razão absoluta para ser mãe. São
essas pequenas razões que enchem a vida de alegria, que
fazem o peito querer explodir de tanto amor. E é legal
sentir amor. Muito amor. Amor capaz de mover
montanhas.

Independentemente de todas as coisas que tive que
abrir mão na vida por eles, tudo que consigo sentir
quando penso nos meus filhos é gratidão. Sou muito
grata a Deus por ter me permitido ser mãe. Sei que
algumas mulheres quiseram e não foram. Sei que outras
não quiseram. Mas eu quis, eu sou, e só por isso já valeu
a pena viver.

Eu não queria passar pela vida sem sentir isso. E sei
que, não importa o que aconteça, uma coisa é certa:
amor de filho é a melhor coisa que existe. Pra quem é
mãe, claro. Pra quem não é, deve ser mesmo aquela
praia deserta na Tailândia, o que, convenhamos,
também não é nada mau.


4! 6

Minha vida sem sono

Maria 4 anos
Gael 2 anos

Nunca fui muito dorminhoca. Na minha outra vida,
tudo o que eu precisava era de 8 horas de sono. Eu não
era do tipo que nos fins de semana se prolonga na cama
até dormir 10 ou 12 horas. Também não era chegada a
um cochilo à tarde. Dormir em demasia nunca foi o
meu negócio e talvez, por hereditariedade, também não
seja o negócio dos meus filhos. Eles pertencem a uma
espécie rara de crianças, que em latim* se chama nunca
cansaris, correris, brincaris, durmiris o menos possivis.

Como eles têm 4 e 2 anos, juntando os anos de vida
deles com o final da gravidez da primogênita, calculo
que faz quase uns 5 anos que não durmo direito.
Razões para acordar à noite é o que não falta: nariz
entupido, monstro, escola nova, frio, calor, safadeza
mesmo. Dormi tão mal nesses últimos anos que esqueci
como é viver a vida sem estar com sono e cansada. Me
acostumei a levantar todos os dias carregando um saco
de pedras nas costas, como se aquilo fosse o meu
normal.

Nos últimos meses, contudo, tenho começado a ver
uma luz no final do túnel. Sim, com as crianças maiores,
há esperança para mim. Cada vez mais tenho dormido
noites inteiras. Algumas vezes já cheguei até naquelas 8

4! 7

horas da outra vida!

Nesse final de semana tive uma dessas noites
estupendas. Meu marido, grande companheiro nas
noites insones das crianças, me deixou dormir no
quarto de visitas até 8h45. Como eu tinha ido cedo para
cama, dormi quase 10 horas ininterruptas. Mas, calma,
não para por aí: nas noites anteriores meus filhos me
deram um descanso e tive umas noites bem razoáveis.
Então, essas 10 horas não foram para compensar o mal
dormido: foram tipo horas-bônus!

E foi assim, nesse estado quase flutuante, que levantei
para viver meu dia. Enxerguei minha vida sob uma nova
perspectiva: sem sono. E, caramba, como é bom viver
sem sono!

Sem sentir sono você acorda de manhã e beija seu
marido com ternura, promete para o seu filho que vai
brincar duas horas de trenzinho sem parar, sai pra
correr e se dá conta de que está em muito melhor
forma do que imaginava. Descansada, você abre a sua
caixa de emails com 180 mensagens não respondidas e
não dá a esse fato a conotação de minitragédia. E esse
céu nublado aqui da Alemanha, então? É impossível,
depois de dormir 10 horas, não apreciar a beleza do
dégradé dos tons de cinza. Até os seus problemas mais
sérios ganham uma interpretação mais leve na vida sem
sentir sono.

!48

Com a mente e o corpo devidamente recuperados,
consegui olhar para a minha vida com muito mais bom
humor, paciência, disposição, criatividade e tolerância.
Era como se eu tivesse acordado e posto óculos de
lentes cor de rosa.

Alguns dizem que, depois de ser mãe, a gente nunca
mais consegue dormir como dormia antes de os filhos
nascerem. Um dia voltaremos a dormir sem sermos
despertadas à noite, mas o sono nunca mais será tão
despreocupado como na vida pré-filhos. Provavelmente
esse é mesmo nosso destino. Mas durante aquelas fases
mais punks, quando eles são pequenos e a gente às
vezes passa meses sem dormir uma noite inteira, é bom
não esquecer que muita coisa pode estar ganhando
dimensões exageradas por causa do cansaço.

Uma frase atribuída ao Dalai Lama diz tudo: “Dormir é
a melhor meditação.” Quando li isso entendi muito bem
por que nos últimos anos minha mente parecia tão
desalinhada, tão confusa. Por que tive pensamentos tão
atípicos para a minha pessoa. Não foi só porque virei
mãe e estava em busca de uma nova identidade. Era
porque estava mal dormida pra caramba. Mas, e agora,
será que com as crianças dormindo melhor minha
cabeça volta ao normal?

*Nota: quem cresceu assistindo o Mussum na televisão é fluente nessa
versão de latim.


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