Manual do
Professor
Daniel Rodrigues Aurélio
Copyright © 2018 do texto: Daniel Rodrigues Aurélio
Copyright © 2018 da edição: Farol Literário
Projeto Gráfico e Diagramação: BARN Editorial
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AP - Arquivo Pessoal
DV - Divulgação
CS - Claudia Scatamacchia
Texto em conformidade com o Novo Acordo
Ortográfico da Língua Portuguesa.
1ª edição
Farol Literário
Estrada Municipal Iva 136, nº 218 - sala 1 - Bairro da Mina
Itupeva - SP - CEP: 013295-000
www.farolliterario.com.br
Sumário
41. Como Ler este Manual.................................................................
62. A presentação da Obra.................................................................
83. Sinopse do Livro...........................................................................
104. Sobre o Autor............................................................................
135. Quando Nasceram os Pensadores Gregos (Linha do Tempo)..
146. Contexto Histórico e Gênero Literário.....................................
177. Em Sala de Aula......................................................................
188. Sobre o Autor do Manual..........................................................
1 Como Ler Este Manual
Em consonância com os conhecimentos, as habilidades, as
competências e os conteúdos previstos nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (pcns) e na Base Nacional Comum
Curricular (bncc),1 este Manual do Professor tem como
objetivo auxiliar no processo de ensino-aprendizagem e na
construção de uma didática potente, sensível e criativa a partir do bom uso
da literatura e de seus diversos desdobramentos, fundamentais para uma
Educação de qualidade, ética, democrática, cidadã, crítica, reflexiva: estilos
de escrita e movimentos literários; formas narrativas; contexto histórico;
leitura e interpretação de texto; temas transversais e possibilidades de pro-
jetos integradores com outros campos disciplinares e de conhecimento.
Este Manual oferece, para os professores do Ensino Fundamental – Anos
Finais, recursos de contextualização, informação, orientação e mesmo siste-
matização didático-pedagógica, com sugestões de exercícios (múltipla esco-
lha e dissertativos) e de roteiros para aulas.
Em razão de suas características singulares, a literatura tende a ampliar
horizontes reflexivos, imaginários, relacionais e dialógicos. Outras disciplinas
se beneficiam diretamente do prazer de ler. Existe, aliás, uma especialização
cada vez mais valorizada pela pedagogia, a chamada Educação Literária. De
acordo com a educadora e autora de livros infantojuvenis Januária Cristina
Alves, mestre em Comunicação Social pela eca/usp,
a Educação Literária tem como objetivo principal formar o que chamamos de
“leitor competente”, aquele leitor que não só decodifica o texto, mas compreende
suas múltiplas funções, atribuindo-lhe um sentido e, mais, relacionando-o com as
experiências vividas e o compartilhando socialmente.2
dvLIVRO Coautora do livro Para ler e ver com os olhos livres (Nova Fronteira, 2013,
com Flávia Aidar), Januária Alves nos alerta que a “Educação Literária
Para Ler e Ver começa a partir do momento em que a criança atribui significado às expe-
Com Olhos riências vividas”. Daí a importância da mediação qualificada e da escuta
Livres atenta dos professores, para dar conta das complexas articulações entre
imaginário e experiência, palavra e vivência, sonho e concretude; conexões
Flávia Aidar exaustivamente pesquisadas pela teoria do conhecimento, pela neurociência
Januária e pela psicopedagogia – o ensino da literatura contribui para abrir estas
veredas. Todo esse movimento deve estar em correspondência com o que
Cristina Alves.
(Nova Fronteira, 1. O endereço na internet para consulta da bncc é http://basenacionalcomum.mec.gov.br/.Acesso
em: 10 jun. 2018.
2013).
2. Entrevista concedida para Thais Paiva, revista Carta Educação, 16. ago. 2016 (cf. “A Educação
Literária e a formação dos leitores”). Disponível em: http://www.cartaeducacao.com.br/
reportagens/a-educacao-literaria-e-a-formacao-de-leitores/. Acesso em: 10 jun. 2018.
4
rege a bncc que, de acordo com o portal do mec, “é o documento de caráter
normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens
essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e
modalidades da Educação”.
Alguns termos encontrados no texto oficial do mec, como “caráter nor-
mativo”, “conjunto” e “aprendizagens essenciais” não devem significar que a
prática docente é mera reprodução padronizada; as diretrizes da bncc são,
acima de tudo, alicerces, pontos de partida que devem ser observados para a
elaboração de aulas dinâmicas e estimulantes, conforme ocorre com as pesqui-
sas e experiências mais avançadas a respeito da relação entre Educação e lite-
ratura – por sinal, influências decisivas na construção da própria bncc.
Estrutura dos capítulos
Neste manual, a seção Apresentação da obra traz um breve resumo da obra
e de seu contexto para orientação geral do professor, destacando os principais
temas trabalhados no livro e a recomendação de Ano/Série na qual a obra em
questão pode ser trabalhada em sala de aula – as informações contidas estão
amparadas pela bncc e por especialistas em literatura infantil e infantojuve-
nil. Dentro desse capítulo serão apresentadas as habilidades, competências e
conteúdos de acordo com a tabela da bncc. Em seguida, em Sinopse do livro,
abordamos especificamente o enredo (desenvolvimento, conteúdo, forma
narrativa), com trechos selecionados para apreciação e compreensão, assim
como as perspectivas de diálogo interdisciplinar.
As informações a respeito de quem escreveu o livro estão em Sobre o
autor e, sempre que necessário, sobre quem fez a adaptação. O professor
também vai encontrar uma Linha do tempo dinâmica com os principais acon-
tecimentos dos tempos do autor ou do tema da obra. A seção Contexto his-
tórico e gênero literário procura apresentar a qual tradição, momento ou
movimento literário se filiam a obra e o autor, bem como fatos e reflexões do
período, que podem ou não ter peso na sua elaboração (texto e contexto).
Para finalizar, na seção Em sala de aula existe uma aproximação com a
lógica das sequências didáticas, com propostas e esquemas para que o pro-
fessor possa utilizar a obra com a turma, inclusive no sentido de fazê-la con-
vergir com outras disciplinas. Como propostas de exercícios, oferecemos
quatro atividades sobre o livro: duas questões de múltipla escolha e outras
duas dissertativas. Ao longo do Manual também foram incluídas uma série
de dicas de livros, filmes, curiosidades sobre o autor e características da obra,
para alargar o universo de saberes e aperfeiçoar o processo de formação lite-
rária e acadêmica.
Boa leitura!
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2 Apresentação da Obra
FICHA TÉCNICA
TÍTULO: A Ilíada e a Guerra de Troia
AUTOR: Homero
ADAPTAÇÃO: Silvana Salerno
EDITORA: Farol Literário
PÁGINAS: 104
H istória adaptada e contextua-
lizada por Silvana Salerno,1 RECOMENDAÇÃO
A Ilíada e a Guerra de Troia
apresenta o clássico poema Este livro é recomendado
épico atribuído ao grego para estudantes do 6º e 7º
anos do Ensino Funda-
Homero. Para facilitar a leitura e a compreen- mental – Anos Finais, com
são da dimensão literária, mitológica, simbó- variações conforme as
lica, histórica e filosófica de um livro que demandas e especificida-
influenciou decisivamente o pensamento oci- des da escola, da turma e
dental, Silvana optou pela escrita em prosa, da grade curricular. O
mantendo a divisão dos capítulos em 24 cantos tema do livro pode, inclu-
– a versão conhecida da obra possui mais de 15 sive, retornar em outras
mil versos. Assim, a adaptadora, a um só tempo, etapas de ensino-aprendi-
manteve-se fiel à obra e soube traduzi-la para os zagem. Todavia, foi levado
alunos, no sentido da mediação qualificada e da em consideração o nível de
organização didática. compreensão exigido pelo
O livro que aqui apresentamos também conta texto e pelos conteúdos,
com mapas; apresenta os deuses, deusas, semideu- sobretudo em Língua
sas e heróis do enredo; descreve as características Portuguesa, História, e
da Grécia Antiga e fornece todos os subsídios teó- Artes que aparecem no
ricos e informativos para estudantes e professores. livro, sempre em relação
Enfatiza a relevância de Homero como a figura com as diretrizes da Base
capaz de unificar cultural e linguisticamente os Nacional Comum Curricu-
povos que viviam no território da Grécia. Para além lar (BNCC).
1. Veja mais sobre Silvana Salerno na seção Sobre o Autor.
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do excelente trabalho de reconto, a obra possui um conteúdo em harmonia com
a bncc e com as diretrizes do ensino da Língua e da Literatura, com desdobra-
mentos interdisciplinares. As ilustrações são de Cláudia Scatamacchia, formada
em Comunicação Visual pela faap, com vários livros infantis e infantojuvenis no
currículo, responsável pelo estilo seguro, elegante, lúdico e compreensivo.
TEMAS TRABALHADOS
• Autoconhecimento, sentimentos e emoções
• Encontros com a diferença
• O mundo natural e social
• Diálogos com a história e filosofia
• Aventura, mistério e fantasia
• Outros temas (moral, poética, mitologia).
fonte: mec, 2018.
Competências Específicas
Conforme a classificação da Base Nacional Comum Curricular (bncc/mec), o livro A Ilíada e a
Guerra de Troia, de autoria atribuída a Homero, com adaptação e contextualização de Sil-
vana Salerno, atende às seguintes competências específicas de Língua Portuguesa para o
Ensino Fundamental:
1. C ompreender a língua como fenômeno cultural, histórico, social, variável,
heterogêneo e sensível aos contextos de uso, reconhecendo-a como meio de
construção de identidades de seus usuários e da comunidade a que pertencem.
2. A propriar-se da linguagem escrita, reconhecendo-a como forma de interação nos
diferentes campos de atuação da vida social e utilizando-a para ampliar suas
possibilidades de participar da cultura letrada, de construir conhecimentos (inclusive
escolares) e de se envolver com maior autonomia e protagonismo na vida social.
3. Ler, escutar e produzir textos orais, escritos e multissemióticos que circulam em
diferentes campos de atuação e mídias, com compreensão, autonomia, fluência e
criticidade, de modo a se expressar e partilhar informações, experiências, ideias
e sentimentos, e continuar aprendendo.
4. C ompreender o fenômeno da variação linguística, demonstrando atitude respeitosa
diante de variedades linguísticas e rejeitando preconceitos linguísticos.
5. Empregar, nas interações sociais, a variedade e o estilo de linguagem adequados à
situação comunicativa, ao(s) interlocutor(es) e ao gênero do discurso/gênero textual.
8. Selecionar textos e livros para leitura integral, de acordo com objetivos, interesses e
projetos pessoais (estudo, formação pessoal, entretenimento, pesquisa, trabalho etc.).
9. Envolver-se em práticas de leitura literária que possibilitem o desenvolvimento do
senso estético para fruição, valorizando a literatura e outras manifestações
artístico-culturais como formas de acesso às dimensões lúdicas, de imaginário e
encantamento, reconhecendo o potencial transformador e humanizador da
experiência com a literatura.
fonte: bncc/mec, 2017, p.85.
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3 Sinopse do livro
Originalmente escrito na linguagem que ficou definida como
“grego homérico” (uma combinação do grego antigo com o
dialeto jônico e o subdialeto eólico), de forte influência na
construção histórico-linguística da Grécia, A Ilíada com-
põe, ao lado da Odisseia, o par de poemas épicos que consa-
graram Homero, a quem os versos são atribuídos. A adaptação de Silvana
Salerno é realizada na forma de prosa, mas se mantém fiel ao enredo e a
divisão de cantos. A versão, por assim dizer, clássica do poema, possui 15.693
versos – ou “lines” (linhas) para os anglo-saxões –, divididos em 24 cantos,
que funcionam como capítulos dentro da trama e que, para pesquisadores,
gramáticos e bibliógrafos representam cada uma das letras do alfabeto grego.
Grandiosa em termos quantitativos e qualitativos, a obra cujas primei-
ras referências datam de viii a.C. inaugura, para muitos especialistas, a nar-
rativa literária ocidental. Homero pertenceria ao universo poético de tradição
oral; por essa razão, é tão difícil cravar que fora ele, de fato, o autor dos versos
que descrevem os últimos cinquenta dias do último ano da Guerra de Troia.
Em função da própria descrição homérica, tal conflito é a um só tempo um
evento da Grécia Antiga (cujos fatos e fontes são perseguidos por historiado-
res) e pertencente ao universo simbólico e mitológico (por conta da presença
cs
de deuses, deusas e semideusas, bem como de heróis com poderes sobre-hu-
manos). Talvez resida mesmo nessa dualidade, que se entrecruza ao longo dos
cantos, todo o magnetismo da obra. E Silvana Salerno procura manter esse
fascínio em uma forma de linguagem acessível e bem construída, oferecendo
informações e contextualizações sempre que necessário.
DIÁLOGO TRECHO DO LIVRO
INTERDISCIPLINAR
O SONHO DE AGAMENON
• Língua Portuguesa
“Chegou a noite e todos foram dormir, menos Zeus, que pen-
• História sava no melhor modo de vingar Aquiles contra os gregos. De todas
as ideias que teve, a que lhe pareceu melhor foi o de enviar o Sonho
• Artes maléfico a Agamenon.
O Sonho partiu do Olimpo para o acampamento grego. Encon-
trando o comandante adormecido em sua tenda, disse-lhe:
— Grande Agamenon, foi Zeus quem me enviou; ele se preo-
cupa com você. Mandou dizer que os gregos podem entrar em Troia,
pois os deuses fizeram um acordo e não protegem mais os troianos.
Guarde esse conselho em sua alma e não o esqueça ao acordar.
Quando despertou, Agamenon ainda ouvia a voz divina. Empu-
nhou a espada cravejada de prata e o cetro divino que herdara do
pai e ordenou aos arautos que convocassem imediatamente os gre-
gos. A deusa Aurora anunciava a luz do dia.
Reunindo os gregos, Agamenon contou-lhes o sonho que
tivera. O sábio Nestor, rei de Pilo, falou em seguida:
— Se qualquer outro tivesse relatado esse sonho, diríamos
que é um mentiroso. Mas o homem que ouviu estas palavras van-
gloria-se de ser o mais nobre dos gregos. Vamos à luta!
Em pouco tempo, numerosos guerreiros se reuniam na praia,
prontos para marchar para a cidade. Porém, com a ausência de Aqui-
les e seu exército, os gregos se mostraram desesperançosos. Agame-
non percebeu que estava sendo enganado e dirigiu-se aos guerreiros:
— Caros heróis, a serviço do deus Ares, o sonho que tive foi
um desatino! A mensagem de Zeus é enganosa. Há tempos ele já
me havia dito que destruiríamos a fortaleza de Troia…Somos mais
numerosos que os troianos, mas eles receberam reforços de mui-
tos territórios aliados, e é isso que me impede de arrasar essa
cidade. Nove anos já se passaram; a madeira de nossos barcos apo-
dreceu; nossas mulheres e filhos estão nos esperando em casa, e
não vemos solução para este combate. Vamos seguir o conselho
que vou dar agora: fujamos com nossos navios para a terra de nos-
sos pais, pois nunca renderemos Troia, a cidade de largas ruas.”
homero. “canto 2”, a ilíada e a guerra de troia, adaptação de silvana salerno, farol literário, p. 26-28.
9
wc/ sh4 Sobre o autor
Asimples menção ao nome de Homero, a quem se confere os
créditos dos poemas épicos Ilíada e Odisseia, dois dos alicer-
ces do pensamento grego, é o suficiente para abrir um debate
acalorado sobre sua existência história. E mais: se ele, de fato,
existiu, teria sido o único autor dos magníficos versos difun-
didos pela tradição oral, posteriormente registrados em folhas de papiro e
depois ainda no formato livro tal como conhecemos? Há uma corrente de
pesquisadores que creem que tais textos são compilações de narrativas de
um determinado espaço – a região que hoje compreende o noroeste da Tur-
quia – e em um tempo indefinido, mas muito posterior aos anos nos quais
Homero teria vivido.
No entanto, a despeito dessas
incertezas e disputas em marcha
entre historiadores, arqueólogos e
teóricos da literatura, o consenso
é de que a simbologia em torno de
Homero faz dele um divisor de
águas na história da Grécia e do
mundo ocidental – aliás, dentro
da cronologia da Grécia Antiga,
existem os períodos pré-homé-
rico e homérico.1 Tal assinatura,
portanto, representa o esplen-
dor de uma época e também
da narrativa épica e poética.
O grande historiador
Heródoto foi um dos res-
ponsáveis por estabelecer
como ano provável de nasci-
mento de Homero: 850 a.C,
em Esmirna, na antiga
Jônia, na Ásia Menor, atual
território da Turquia, mas
à época política e cultural-
mente ligado ao mundo
grego. Outra versão é de
1. Ver tabela de períodos
históricos da Grécia Antiga
em Contexto histórico e
gênero literário.
que ele seria proveniente de alguma ilha do Mar Egeu entre os séculos xix a.C. wc wc wc
e viii a.C. Todavia, quase dez regiões reivindicam ser a terra natal do poeta.
Isso dá uma medida de o quanto o texto, o legado, é maior do que qualquer Heródoto,
outro dado factual. Aristóteles
e Zenão
De acordo com Silvana Salerno, Homero fora um “poeta cego” que, por
volta de 830 a.C., cantava seus versos pela Grécia. Ainda de acordo com ela,
em texto introdutório que compõe o seu livro de adaptação, “alguns historia-
dores até afirmam que Homero não existiu e que a Ilíada e a Odisseia são
obras de autores diferentes. Mas o filósofo Aristóteles, que viveu na Grécia
entre 384 a.C. ou 322 a.C., não concordava com isso. Para ele, a Ilíada era o
poema da juventude de Homero e a Odisseia era o poema da idade madura,
que dava continuidade à história”. Engana-se quem pensa que o embate
sobre a existência ou não do poeta épico, ou se teria sido ele o (único) autor
desses clássicos, seja recente. Heródoto tinha como base para sua argumen-
tação em favor da existência de Homero os chamados Hinos Homéricos,
igualmente atribuídos ao poeta, com todos os elementos éticos e valorativos
da condição humana preconizada pelos gregos antigos. Gramáticos alexan-
drinos do porte de Zenão e Helânico não acreditavam que um homem teria
escrito todos os versos, pois parecem ter a diferença de um século entre um
e outro; já Aristarco até consegue ver aproximações entre as grandes obras
conferidas a Homero, mas notava acréscimos de outros poemas. Dessa forma,
desde Heródoto a questão está em aberto.
No século xxi, a dúvida ainda persiste. Em entrevista para a revista
Mundo Estranho, a arqueóloga da usp Elaine Veloso Hirata afirma: “Dados
exatos sobre quem era Homero, onde vivia, em que data compôs os dois poe-
mas são questões em aberto. Talvez tenham sido dois os autores e as obras até
podem não ter sido compostas na Grécia”.2 A tese da “dupla ou múltipla”
autoria – e lembremos que a questão autoral não era pensada nos termos de
hoje – é corroborada por um artigo na Scientific American, cujo texto informa
que “a existência de um indivíduo chamado Homero que escreveu a Ilíada é
improvável”. Brian Rose, professor de Estudos Clássicos e um dos curadores
do Museu da Universidade da Pensilvânia, defende que a Ilíada compila diver-
sas narrativas orais em forma de cantos poéticos: “A Ilíada é um amálgama de
várias histórias que parecem se concentrar em conflitos em uma área especí-
fica do noroeste da Turquia”.3
2. Ver “Quem foi Homero?”, revista Mundo estranho, 2011. Disponível em: https://super.abril.com.
br/mundo-estranho/quem-foi-homero/. Acesso em 5 de ago 2018.
3. Ver Joel N. Shurkin e Inside Science News Services. Scientific American Brasil. Disponível em:
http://www2.uol.com.br/sciam/noticias/geneticistas_estimam_data_de_publicacao_da_iliada.html.
Acesso em 5 de ago 2018.
11
LIVROdv Enfim, ele existiu ou não? E se existiu, escreveu ou não escreveu, ou
csmelhor, cantou ou não cantou o longo poema? Os pesquisadores nos campos
O mundo de apda historiografia, da literatura, da filologia e da arqueologia realizam um
Homero trabalho de imenso valor, mas talvez isso seja menos relevante do que o sig-
nificado do nome Homero para a concepção de identidade cultural e social
(Companhia grega. Sua figura histórico-mítica confere sentido de unidade e expressivi-
das Letras, dade, apresenta e representa uma tradição, um modelo, uma ética e uma
2002, 176 p.), estética. Homero não é “apenas” um potencial autor ou uma assinatura para
poemas coligidos; ele é um símbolo, um ponto de referência, capaz de ilumi-
Pierre nar o pensamento ocidental e desvendar a natureza humana.
Vidal-Naquet.
Quem é Silvana Salerno?
Quem foi
Homero? Ou Adaptadora e contextualizadora
melhor, existiu da obra A Ilíada e a Guerra de Troia,
Silvana Salerno é formada em Jor-
mesmo um nalismo pela Escola de Comunica-
Homero? Como ção e Artes da usp, onde também
cursou Letras (fflch). Estudou
um autor do Sociologia. Escritora com mais de
qual pouco se 20 livros publicados, um deles no
sabe a respeito exterior, recebeu o prêmio O
pode ter sido Melhor Reconto da Fundação
Nacional do Livro Infantil e Juvenil
tão decisivo (fnlij) por Viagem pelo Brasil em 52
para a histórias (2007) e várias de suas
obras têm o selo Altamente Reco-
literatura e mendável ou fazem parte do
pensamento Acervo da fnlij.
ocidentais? O
que é realidade Dois livros seus foram adotados
e o que é ficção pelo pnbe e três participaram do
nesses relatos? catálogo da Feira Internacional do
Livro Infantil e Juvenil de Bolonha, na Itália, o evento mais importante desse seg-
São estas mento no mercado editorial – é lá que costumam ser anunciados os vencedores
algumas das do prêmio Hans Christian Andersen. Adaptou para o público infantojuvenil e juve-
perguntas que nil clássicos da literatura como Alice no País das Maravilhas, Os três mosqueteiros,
mobilizam o A Odisseia, O segredo das minas de prata, Germinal, Ilusões perdidas, Guerra e paz e
Os miseráveis (finalista do Prêmio Jabuti, 2015).
livro de
Vidal-Naquet,
que procura
apresentar os
princípios
literários,
históricos e
filosóficos que
conferem
sentido e
grandeza aos
poemas épicos
(epopeias)
Ilíada e
Odisseia. O
assunto é
denso, mas o
texto é leve e
objetivo.
12
1626
5 Quando nasceram os
pensadores gregos
Safo a.C. Homero (existência em debate)
Anaximandro Tales de Mileto
Anaxímenes 850 Temistocleia
630 Pitágoras
Xenófones Heráclito de Éfeso
Parmênides 625 Ésquilo
Anaxágoras Sófocles
610/609 Eurípides
Heródoto Protágoras
Sócrates 600 Aspásia
Tucídides. 585 Aristófanes
Demócrito. Zenão de Eleia
Hipócrates 571/570 Aristóteles
Epícuro
Platão 570 Arquimedes
Antífanes 540
Euclides Epiteto
Zenão de Cítio 530 Plotino
Plutarco 525/524
Ptolomeu
500
Hipatia
497/496
485
480
470/469
470
460
447
428/427
425
408
384
360
341
333
287
d.C.
45
50
160
223
351/370
13
6 Contexto histórico e gênero literário
CURIOSIDADE Adespeito de se acreditar na existência e auto-
ria de Homero, seguindo a perspectiva aristo-
HEXÂMETRO DATÍLICO télica, ou na tese de que os versos da Ilíada (e
Presente na Ilíada, o herâmetro também da Odisseia) foram compostos a par-
datílico (ou dactílico) é uma forma de tir de uma miríade de narrativas orais trans-
métrica poética e rítmica, utilizada mitidas na região atualmente localizada no noroeste da Tur-
no poema épico e heroico de tradição
greco-romana e latina – além das
obras de Homero, o hexâmetro quia; e em que pese as inserções míticas, simbólicas e
datílico na Enêida, do poeta romano fantásticas (vamos, pois, evitar o termo “exageradas”, para
Virgílio. Ela difere um pouco daquilo
que tradicionalmente entendemos escapar do juízo de valor) nos acontecimentos transcorridos
como poesia, com rimas por no penúltimo ou último ano de uma batalha da qual poucas
exemplo, pois são versos falados/ fontes possuímos (durante a Guerra de Troia), a verdade é
cantados, compostos por sílabas que do ponto de vista social, cultural, linguístico, político e
longas e breves, com marcante filosófico o poema épico Ilíada é tido como uma obra seminal
presença da musicalidade – não para a história da literatura ocidental e da cultura grega,
por acaso, datílico vem do grego inclusive dando início a um período histórico na Grécia
“dactitulos” (dedos), que, como
sabemos, não possuem um tamanho
uniforme, intercalando ossos
(falanges) maiores e menores. Por Antiga (veja o box Cronologia da Grécia Antiga).
hexâmetro entende-se a composição A concepção e “publicação” do poema costumam ser
de “seis pés métricos” por verso.
datadas do século viii a.C. – alguns chegam até a determinar
uma data mais exata, 792 a.C. No século vi a.C., uma versão escrita foi impressa
em Atenas. Em termos de construção identitária, de códigos e valores ético-
-morais, da “tradição cultural” e organização linguística, e até da filosofia polí-
tica, a Iliada é fundamental para a consolidação da História da Grécia e de sua
“época de ouro” e dos poetas, historiadores, geográficas, dramaturgos e filóso-
fos que vieram depois.
De modo sumário, a Ilíada conta a história do nono ou décimo ano da
Guerra de Troia, conflito entre gregos e troianos, que teria se iniciado com o
rapto de Helena. Esposa do rei de Esparta, Menelau, por Páris, filho do Rei
NA SÉTIMA ARTE dv
FILME
TROIA (troy, 2004, 2h43min.)
Apesar das críticas a essa adaptação livre dirigida por Wolfgang
Petersen, o épico de guerra baseado na Ilíada, de Homero, é
uma boa alternativa para o professor entrar em contato com a
história de forma divertida, com muitas cenas de ação. O longa-
-metragem é estrelado por Brad Pitt, Orlando Bloom, Eric Bana
e Diane Krueger. Seu eventual aproveitamento em sala de aula
deve ser analisado com cautela, até porque a classificação indi-
cativa é 14 anos.
Príamo, de Troia. O poema épico tem como alguns de seus protagonistas
Aquiles, Agamenon e Heitor. Há uma divisão na história entre deuses, semi-
deus e mortais, todos eles devidamente descritos nos textos de contextualiza-
ção de Silvana Salerno. O nome Ilíada vem de “Ílion”, nome grego para Troia.
LIVRO
cs
dv
É importante ressaltar que tanto as figuras históricas quanto as mito- As origens do
lógicas possuem a mesma importância para a cultura grega, pois são mode- pensamento
los, são representativas de aspectos da condição humana. Os deuses e semi- grego (Difel,
deuses estão tanto do lado dos gregos quanto dos troianos. Como existe 2002, 144 p.),
toda essa amplitude heroico-mitológica cantada nos versos, muitos descon- Jean-Pierre
fiam também de uma Guerra de Troia factual, historicamente validada. Vernant.
Porém, no século xix, dois arqueólogos, um alemão e outro inglês, descobri- Filósofo,
ram na região geograficamente descrita na Ilíada vestígios de um combate antropólogo,
militar ocorrido no século xii a.C. A Guerra de Troia teria ocorrido, pois, historiador e
entre xiii a.C. e xii a.C., mas ainda assim está para muitos no plano da ensaísta
ficção. O historiador grego Tulcídides acreditava na ocorrência do conflito, francês
mas obviamente desconfiava dos números hiperbólicos do poema homé- falecido em
rico. Associa-se ainda a guerra ao fluxo migratório e a outros fatores rela- 2007, Jean-
tivos às fronteiras. -Pierre Vernant
foi professor do
prestigiado
Collége de
France e
recebeu a
Medalha de
Ouro da CNRS,
ambas
consideradas
as mais altas
distinções
acadêmicas do
concorrido
mundo
acadêmico
francês.
Também deu
aulas na USP
na década de
1970. Vernant
era um
especialista em
Grécia Antiga e
mitologia grega
e neste livro
nos apresenta
as bases do
pensamento
dos gregos e,
por
consequência,
de um dos
alicerces da
filosofia
ocidental.
15
LIVRO Dessa forma, a Guerra de Troia possui uma dupla dimensão: histó-
rica e mitológica. Elas se entrecruzam para conferir um efeito simbólico na
narrativa identitária dos povos que viviam naquele local. Homero, ou o con-
junto de narradores/cantadores da Ilíada, conseguiu aproximar o real e o
imaginário de uma forma potente e inesquecível.
dv
cs
Mitologia grega Do poema épico ao reconto em prosa
(L&PM, 2009,
128 p.), Pierre Tanto a Ilíada quanto a Odisseia pertencem ao gênero épico – épico, aliás, é
Grimal. uma palavra de origem grega, “epikos”, utilizada para descrever acontecimen-
Autor de um tos heroicos, sejam eles factuais ou fictícios. Em ambos os textos citados, trata-
famoso mos de poemas épicos, de epopeias, com histórias extensas, narrativas, demar-
dicionário de cadas pelo canto, com a métrica do hexâmetro datílico, mas que começou a
variar no curso do tempo, ao chegar a outros povos e novos contextos históri-
mitologia grega co-literários. Nesses poemas residem uma mescla entre o físico e o sobrenatu-
e romana, ral, o humano e o mítico, com elementos dramáticos e gloriosos, destacando
Grimal façanhas e ações repletas de honras, castigos, lições sobre a humanidade.
apresenta
Para os historiadores da literatura, os poemas com assinatura de Homero
neste livro as e Eneida, de Virgílio, são os três pontos de partida desse gênero. Porém, há
bases e as aqueles que colocam antes deles a Epopeia de Gilgamesh, de autoria anônima,
narrado na Mesopotâmia, na antiga civilização suméria, em algum momento
versões acerca entre os séculos xx a.C. e x a.C. Outros épicos famosos são O trabalho e os dias
da mitologia (Hesíodo), Os lusíadas (Luís de Camões), A divina comédia (Dante Alighieri) e
grega, com até mesmo os poemas de Mensagem, de Fernando Pessoa.
seus deuses e Por opção didático-pedagógica, e para que todos tivessem um contato
deusas, figuras mais lúdico com a história da Ilíada, Silvana Salerno escreveu os 24 cantos
em forma de prosa. E isso, além de proporcionar um prazer de leitura, con-
heroicas e tribui para que os professores possam articular aulas sobre poema e prosa,
anti-heroicas, diferenças e aproximações. Silvana está atenta também às informações
sobre mitologia grega e história da Grécia Antiga.
que revelam
muito sobre
a condição
humana. O livro
mostra que
entre os
principais
narradores
dessas
histórias que
compõem um
vasto “universo
simbólico”
estão Ésquilo
e Homero.
Leitura didática
e informativa.
CRONOLOGIA DA GRÉCIA ANTIGA
• Período Pré-Homérico: 2.000 a 1.100 a.C. (aprox.)
• Período Homérico: 1.100 a 800 a.C. (aprox.)
• Período Arcaico: 800 a 500 a.C. (aprox.)
• Período Clássico: 500-338 a.C. (aprox.)
• Período Helenístico: 338-146 a.C. (aprox.)
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7 Em Sala de Aula
Proposta de Aula 1
A partir do pressuposto de que os alunos leram a obra e os textos adicionais, o pro-
fessor deve iniciar a aula contextualizando historicamente o autor da obra e o período
da história narrada, colocando em debate as questões da real autoria e das fronteiras
entre história e ficção, informação e imaginação. O estudo da Literatura pressupõe
esse diálogo, de modo que o professor deve ter a escuta atenta e sensível para as
questões levantadas. Embora o reconto esteja em formato de prosa, a questão do
poema épico segue forte na discussão, na medida em que suas características temá-
ticas e de enredo estão presentes, mesmo que não estejam com métricas e versos.
Proposta de Aula 2
Como mediador qualificado, o professor pode estabelecer uma leitura do texto com os
alunos, selecionando capítulos, nos quais os alunos emitem suas opiniões, seus ques-
tionamentos. Não se trata de uma mera e protocolar leitura, mas sim de uma imersão
nos sentidos histórico, mitológico, simbólico, literário e geográfico (e mesmo filosó-
fico) do poema épico adaptado por Silvana Salerno. O professor pode, inclusive, trazer
alguns versos originais da Ilíada e fazer um estudo comparado com a técnica adotada
pela recontadora Silvana, ampliando os horizontes e possibilidades de leitura, inter-
pretação de texto e escrita.
Propostas de exercícios
1. Qual é o gênero (ou forma) de escrita utilizado, respectivamente,
na Ilíada e na adaptação desta mesma obra por Silvana Salerno:
a. poema épico e prosa narrativa
b. cantiga e prosa narrativa
c. poema épico e ensaio
d. novela e poema heroico
2. Como Aquiles é classificado na epopeia da Guerra de Troia:
a. deus da mitologia grega
b. defensor dos troianos
c. líder mortal de Atenas
d. guerreiro e semideus
3. Escolha um dos personagens da Ilíada e faça um texto descritivo,
apontando suas principais características e o que ele pode nos ensinar
sobre a natureza humana.
Resposta pessoal. A pesquisa pode ser realizada em livros, revistas, na internet,
em documentários etc. O professor deve estar à disposição para dirimir dúvidas.
4. Guardadas as proporções e os respectivos contextos históricos, é possível
encontrar pontos em comum entre o poema épico, os versos da literatura de
cordel e as rimas do rap? Justifique sua resposta. Resposta pessoal.
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8 Sobre o autor deste manual
Daniel Rodrigues Aurélio nasceu na cidade de São Paulo,
no dia 29 de junho de 1980, ano do lançamento de um
clássico da literatura infantil brasileira: O menino malu-
quinho, de Ziraldo. Passou a infância e a adolescência no
Jardim Santo Elias, à época situado no distrito de Piri-
tuba, na periferia paulistana. Estudou em escolas públicas da região e, esti-
mulado pelos professores, mantinha as suas cadernetas repletas de anotações
dos livros que tomava emprestado na biblioteca da emef (na época, empg)
Rui Bloem e na Biblioteca Municipal Brito Broca, espaços cativos em sua
memória afetiva. Lia de Pedro Bandeira a Ruth Rocha, da coleção Vaga-Lume
às fábulas de Esopo e La Fontaine.
Formou-se técnico em Processamento de Dados pela etec Basilides de
Godoy em 1997, mas jamais abandonou seu interesse pela escrita e por boas
histórias. No ano seguinte, publicou um romance infantojuvenil com carac-
terísticas autobiográficas: Foi o que restou mesmo..., no qual narrava memórias
e invencionices de sua adolescência. Desde então, mergulhou de vez no uni-
verso dos livros, em todas as etapas de sua cadeia produtiva: foi atendente de
livraria, resenhista, redator, editor. É graduado em Sociologia e Política pela
Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (fespsp, 2002), com
monografia sobre a literatura infantojuvenil e o discurso de cidadania durante
a Abertura Política, texto posteriormente revisado, ampliado e publicado em
livro, intitulado Transgressão e adaptação: discurso de cidadania e literatura
infantojuvenil na Abertura Política (2013). Analisou em sua pesquisa centenas
de livros infantis e infantojuvenis.
Em 2014 obteve o título de Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (puc-sp). Tornou-se mba em Book
Publishing pela Faculdade de Letras do Instituto Singularidades/Casa Edu-
cação no ano de 2017. Também é especialista em Globalização e Cultura
(2007) e em Sociopsicologia (2012), ambos pela Escola Pós-Graduada de
Ciências Sociais da fespsp. Possui certificados de cursos de Atualização em
Filosofia (2013) e Conhecimento, Saber e Ciência (2016) pelo departamento
de ead da Fundação Getúlio Vargas (fgv). Trabalha com consultoria edito-
rial e acadêmica, é editor de textos e colabora para diversas revistas de Edu-
cação e conhecimento. É autor de 35 livros e, acima de tudo isso, de tantos
livros publicados e títulos obtidos, é pai do Gabriel, nascido em 2013 – um
“menino maluquinho” apaixonado por livros.
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