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50 Há quem diga se tratar de um ser do sexo masculino guardião das matas, já outros acreditam ser do sexo feminino. Talvez o motivo de tanta confusão com o sexo da lenda Caipora seja pelo fato da maioria das pessoas descrevêla como um ser peludo. Fato que não se leva a conclusão alguma, pois muitas mulheres precisam fazer depilação constante pelo volume excessivo de pelos e sem contar que uma das atrações do circo é a mulher barbada, assim como um ícone da arte mundial tinha bigode, Frida Kahlo. A Caipora não tem essa vaidade de manter a pele lisinha como o bumbum de um bebê e seu porte físico a faz parecer ainda mais com homem: anã, troncuda como um fisiculturista, vermelha como a uma pimenta e de orelhas pontiagudas. A verdade é que ela realmente é bem mais ‘’macha’’ que muito homem. Assim como muitos de seus amigos do folclore brasileiro, a Caipora também teve seu nome mencionado em várias obras literárias e uma frequente aparição na TV. Na versão criada pelo ‘’Castelo Rá-tim-bum’’, aparecia sempre que alguém assoviava e só ia embora quando alguém adivinhava a palavra secreta que ela mesma fazia questão de escolher. Em algumas regiões e em diferentes relatos ela, em sua versão masculina, se assemelha muito ao Curupira, o que lhe concede o parentesco de primos de primeiro grau. Realmente semelhanças não lhes faltam, pois o nome soa parecido, ambos gostam de fumar e são guardiões da floresta. Uma diferença pode ser seu modo de locomoção: o dorso do seu fiel escudeiro o porco do mato e sua arma é uma lança bastante afiada. Ela é feita de pau de madeira nobre e possui uma pedra pontiaguda na ponta amarrada por um resistente cipó. Em outros relatos lhe tiram uma perna e dizem possuir semelhanças com o peralta Saci. Há também os que dizem que é da cor verde e muitas das vezes tem seus pés virados para trás como o Curupira. Os caçadores que teimam em caçar em dias não permitidos pela Caipora, amarram um fumo de rolo ao tronco de uma árvore e dizem: “Toma Caipora, e me deixa ir embora”. Para ela é proibido caçar às sextas-feiras, dias santos e domingos. Nesses dias ela fica mais forte e cruel do que de costume. Nos dias permitidos por ela é proibida a caça de fêmeas gestantes. Outra forma que os índios acreditam ser uma maneira de repelir a presença dela é andar com um braseiro nas noites escuras, pois acreditam que ela não gosta nem um pouco de claridade. Em Tupi-guarani seu nome quer dizer habitante do mato e, por realmente ser e amar seu habitat, ela defende com unhas e dentes a fauna e a flora daqueles que ousam colocá-las em perigo. Afugenta as presas em perigo, espanca cães farejadores e desorienta os caçadores simulando ruídos animais no meio da mata. Além de possuir total controle sobre os animais, em casos de mortes não tão grave deles, a Caipora possui o poder de ressuscitá-los. Corre a boca pequena que, além de possuir tantos atributos, ela é um espécime canibal. Muitos alegam ter amigos que foram mortos e depois comidos por ela. Isso mesmo, comido no sentido literal da palavra. CAIPORA
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52 Jaci tomando conhecimento da morte da moça Tupi-guarani por sua causa, decidiu transformá-la na estrela das águas, a Vitória-Régia. Uma planta de folha enorme sobre as águas, cujo florescer acompanha os hábitos de seu amado, desabrochando nas noites claras em um espetáculo exuberante de beleza e aromas. Numa noite como outra qualquer, em busca de seu amado Jaci, ao passar por um enorme lago ela o avistou refletido nas águas como se o próprio deus tivesse descido ao seu encontro. Em fração de segundos, num momento alucinógeno, a indiazinha não pensou duas vezes e pulou de encontro ao que acreditava ser seu amor prometido e proibido. Ao tomar consciência de si, já era tarde. Naiá lembrou que não sabia nadar e acabou se afogando. A Lua satélite natural da Terra era conhecida como o deus Jaci, o amado de Naiá. O galanteador iluminava os rostos das índias mais belas e quando se escondia atrás dos montes, levava-as para o céu como suas estrelas. Era isso que a virgem indiazinha queria e precisava, um amor avassalador. Seus pais, o Pajé, anciãos, índias mais experientes e tantos outros a alertavam que aquela paixão não passava de uma loucura. Caso Jaci a escolhesse como uma de suas pretendentes, ela não seria mais de carne e osso, mas quem sabe uma integrante da constelação Cruzeiro do Sul vista tão facilmente no hemisfério que compõe seu nome. Não fazia ideia qual consequência sofreria ao se tornar uma estrela, só sabia que estava apaixonada. Perambulava a noite toda esperando seu amado e na maioria das vezes esquecia até de comer. Se desligava do mundo e de tão magra que estava ficando, dava para se contar as costelas. Ah o amor! Tanto índio bom partido, grandalhão, provedor, guerreiro e caçador nato que poderia se casar e ainda dar a ela uma oca triplex, mas a indiazinha Naiá estava apaixonada por Jaci. Se bem que ela não gostava nem um pouco daquelas tanguinhas démodé que os jovens índios acostumavam a usar. Aquilo mal cobria as partes e olha lá. A única coisa que despertava o interesse da jovem pelos índios de sua tribo eram as pinturas corporais que valorizavam a musculatura deles, mas nem assim era o suficiente para despertar uma fagulha sequer da chama da paixão. Queria algo maior, uma labareda de amor e isso ela acreditava ter por Jaci.
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55 Magella Moreira é Engenheiro de Produção e Mestre em Administração por formação, mas a vida o fez escritor por paixão e vocação. Desde a mais tenra idade é um leitor assíduo, com participação em vários concursos literários. Em seu primeiro livro “Nota de Falecimento”, ele descreve o que foi sua infância junto à doméstica de sua casa. No segundo “aLto” ajuda fala da importância de Deus no tratamento da depressão e no terceiro, “Olimpo Tupiniquim”, narra os principais mitos do lendário brasileiro com o intuito de manter viva essa cultura. O jovem escritor mineiro é membro da Academia Itaunense de Letras, onde ocupa a cadeira de número 12 e tem como patrono o baiano Jorge Amado. @magellamoreira Palavras de cor. Com esta linguagem artística, Rogério Pedro escreve sua trajetória em telas, cenografia, pintura mural e ilustrações publicitárias e editoriais. Suas obras alcançaram notoriedade no mercado nacional e internacional participando de importantes projetos pelo Brasil, Vienna, Buenos Aires, Miami, Fort Lauderdale, Nova Iorque, França, Espanha, Suiça, Alemanha e Dubai. Já fez trabalhos para clientes como Adobe, Red Bull, Uber, Kellogg’s, Canal GNT, Rede Globo, Instituto Ayrton Senna e parcerias com artistas consagrados da música como Carlinhos Brown, Margareth Menezes e Sandra de Sá. @rogeriopedroart www.rogeriopedro.art.br Foto: Daniel Henrique Foto: Kassius Trindade
56 Meus olhos estavam enevoados e logo notei que um movimento errado, me custaria a vida. Do alto da copa daquela frondosa árvore, estávamos eu e Murucututu. Parecia que eu acabava de me despertar e aquela grande coruja, velava meu sono. Notei que assim que seu canto iniciava, novamente eu começava a bocejar. Rapidamente pendurado em um cipó, desci sobre a mata orvalhada para evitar adormecer novamente e o pior viesse a acontecer. A queda de onde estava, com certeza, seria fatal. Guaraci lá do alto do céu, jogava raios sobre a terra que me aqueciam a pele e me confortavam, fazendo com que o medo de estar sozinho em meio a mata, fosse se esvaindo junto a noite que se despedia. Ele acabava de assumir seu posto como guardião do dia dando adeus a Jaci que quase que transparente, se despedia. Logo que pisei na terra molhada, escutei estrondos de uma clareira sendo aberta e frutos de Guaraná sendo espalhados a grandes distâncias. Os urros eram fortes e ainda de longe e com bastante sorte, consegui escapar da ira de Mapinguari. Não queria me tornar comida de lenda em minha primeira expedição a floresta. Minha boca estava seca como que ressaqueada e como a sede gritava, decidi buscar água para beber. Por sorte e não muito longe de onde estava, passava o Rio Amazonas. Era largo e comprido a perder de vista. Cheguei até ele, percebi que estava formando uma pororoca bastante barulhenta e revolta. Por um instante pensei se tratar realmente do encontro de águas, mas para minha surpresa, era uma briga por disputa de território. De um lado estava Boitatá, do outro Boiúna e ao centro afastado das investidas das serpentes, estava o Caboclo D’água, sendo o mediador da briga, na proa de um catamarã recém naufragado por ele mesmo. Decidi que ali não era lugar para se beber água. Sabia que se eu seguisse o curso do rio, poderia andar quilômetros, que ele ainda estaria ali. Decidi continuar minha caminhada. Animais silvestres por todos os lados e nenhum deles me atacou. A caminhada acompanhava o barulho das águas, pois sabia que não aguentaria muito tempo sem beber uma gota sequer. Só precisava me distanciar da confusão presenciada e logo saciaria minha sede. À medida em que caminhei, distância essa que não consigo precisar o tamanho, um canto suave adentrava meus ouvidos e um perfume agradável de flores, cujas espécies eram por mim desconhecidas, se misturavam aos acordes da música e inebriavam meu ser, induzindo-me a aproximar mais e mais. Sobre uma enorme Vitória-Régia florida e exalando o melhor perfume já sentido, estava Iara sentada com a cauda pendendo para dentro d’água enquanto tentava encantar o Boto Cor de Rosa que ainda não tinha assumido a sua forma animal. O galanteador de ribeirinhas caminhava para as águas não pelo fato de estar sendo hipnotizado pela sereia, mas porque sua transmutação aconteceria em breve e não poderia mais estar em terra firme. Doce ilusão
57 da linda metade mulher e metade peixe. O rapazote era imune a feitiços de seres lendários como ele e quase sou eu quem me torno presa fácil para ela. Por sorte, uma ventania começou à minha volta e acabei sendo engolido por um pequeno redemoinho. De dentro dele dava pra ver o Saci Pererê em plena gargalhada num dia bom de sua existência. Não só de peraltice ele vivia, mas ajudar também era seu forte e eu, com certeza, estava com sorte. Entre rodopios e confusão mental pelo forte cheiro do fumo do cachimbo do menino de uma perna só, fui expelido do meio de seu mini furacão em meio a plantação de Mandioca. Ao sair do meio do plantio e recuperado da tontura sentida durante a carona inusitada, deparei-me às margens de uma trilha larga onde olhos nervosos me fitavam. Pela primeira vez me senti ameaçado de verdade, pois não via como escapar. De uma galha baixa da árvore, Corpo Seco deu um salto e veio atacarme. Seu bafo quente alcançou as minhas narinas e já esperando que o pior acontecesse, mais uma vez o perigo se foi. Com uma paulada certeira, a criatura caiu de lado em pedaços e seu carrasco, Velho do Saco, juntou tudo em seu enorme embornal e sem se despedir continuou viagem para levá-lo a ilha de onde saiu. Nada mais naquele fático dia poderia acontecer, pelo menos era o que eu queria acreditar. Retomei meu caminho rente a uma certa distância das margens do rio, pois tão breve precisaria beber a tão sonhada água. Enquanto caminhava, pude ver espécies diferentes de primatas, aves de diferentes cores e até mesmo uma onça que nada fez ao me ver. Parecia mesmo que o maior perigo era o desconhecido, o sobrenatural. O dia ia avançando e finalmente consegui parar em um lugar tranquilo para matar a minha sede, mas sozinho eu não estava. As margens do rio estava um menino negro, de cabelo encaracolado, dando água ao seu animal de estimação. Era um cavalo Baio e para a minha surpresa, o menino era o próprio Negrinho do Pastoreio. A criança não me causava medo algum e por isso decidi ter uma breve conversa com ele. Precisava sair dali e com certeza de que o menino conseguiria me ajudar. Eu tinha razão. De carona no lombo de seu cavalo, o menino me levou junto dele até onde havia combinado uma inusitada corrida entre os participantes: ele, Boi-Bumbá, Mula Sem Cabeça, Caipora no lombo de seu porco do mato e a Cuca em cima de sua vassoura voadora. A largada seria dada pelo Lobisomem e a bandeirada que decidiria o ganhador era segurada pelo Curupira. Estes seres mesmo que por muitas vezes possuíssem requinte de maldade, entre si eram amigos. Como a Mula era uma das únicas que não carregaria nada em seu lombo, decidiu me dar uma carona até o final da corrida. Não teria como eu não participar, já que o portal para minha volta para casa ficava depois da chegada. Dali em diante seguiria viagem, ainda que curta, no colo de Curupira até o portal mágico. Ele, com os pés virados para trás, dificultaria o trabalho de qualquer um que tentasse nos impedir de chegar onde queríamos.
58 A largada foi dada. Durante um bom tempo assumimos a liderança. Aos poucos fomos disputando o pódio com meu amigo Negrinho e entre as cabeças estávamos eu e a Mula, Negrinho do Pastoreio e Boi-Bumbá. Os retardatários não conseguiam nos alcançar pelo motivo de excesso de peso. O porco do mato estava roliço e a bruxa Cuca de tanto comer criancinhas, estava bastante gorda. Enquanto corríamos, a Mula Sem Cabeça deixou que uma de suas labaredas tocasse em uma galha seca e sem querer, o fogo começo a pegar. Como não se passava de uma brincadeira, decidimos parar e apagar o fogo nós mesmos. Enquanto a corrida continuava, eu e ela apagávamos o fogo usando cuias cheias d’água. O fogo foi controlado e logo vimos que a culpa não era totalmente nossa, pois era uma área que estava sendo desmatada por grileiros e por isso estava bastante seca. Como a lei da selva é o que prevalece, de onde estávamos, vimos Capelobo se vingando daqueles homens. Ver a cena dele quebrar ossos e sugar cérebros, foi o mais forte que vivenciei naquele dia. Eram homens correndo para todos os lados, mas nem mesmo uma meia dúzia conseguiria se salvar. A criatura era muito rápida. Já que Capelobo não era um ser do clã daqueles que estavam participando da corrida, Mula Sem Cabeça decidiu que me tiraria dali com vida e o mais depressa possível. Por incrível que pareça, quando chegamos ao final do trajeto da corrida, a Cuca havia ganhado, mas não levou o prêmio. Como estava na última posição durante toda a disputa e só ganhou na reta final, os seres mitológicos decidiram anular a corrida por acreditar que ela havia roubado usando magia em sua vassoura. Não havia briga entre eles, mas apenas uma pequena discussão. Como a última palavra era de Curupira, estava decidida a anulação. Não estavam preocupados, tinham a eternidade para uma nova disputa, porém novas regras seriam criadas. Estavam só nos esperando chegar para que Curupira me levasse até o portal. Não fez esforço algum ao me carregar no colo e para meu espanto, alcançou velocidades altíssimas enquanto corria pelas matas. Cheguei a acreditar que bateríamos em uma árvore pois de tão rápidos que estávamos as folhas caiam em demasia das árvores. Sem fôlego, mas bastante feliz, agradeci a minha amiga lenda assim que chagamos ao enorme portal iluminado em formato de cocar. De tudo que vi durante aquele dia, com certeza o portal era a coisa mais linda. Penas enormes e coloridas, de pássaros inimagináveis, compunham aquela passagem e ao centro um lindo redemoinho iluminado. Só nos restava agora um adeus e sabe-se lá quando nos veríamos novamente. Afobado, apertado, espantado, atônito e como se a Pisadeira tivesse passado a noite toda sobre o meu corpo, acordei daquilo que pra muitos poderia ser considerado um pesadelo, mas que pra mim seria classificado como um sonho lendário. Foi uma experiência tão real, que nem parecia ser parte de uma noite de sono. Depois de tudo isso, só me faltava aparecer o Bicho-Papão no meu quarto, mas antes que acontecesse, acendi a luz e voltei a dormir o sono dos justos.
59 A importância do livro Olimpo Tupiniquim é justamente a importância da referência, da referência de identidade. Todos os povos do mundo, as grandes civilizações, têm também o seu Olimpo da memória lúdica construída pelos povos desses lugares. No Brasil também nós temos uma diversidade muito grande e temos um folclore composto de influências das matrizes que formam a sociedade brasileira, o povo brasileiro. Então é muito importante e muito interessante também, porque você auxilia a criança a ir mais fundo na sua própria imaginação e o universo da imaginação é importantíssimo. É nesse universo que a gente aprende a dimensionar, redimensionar, meditar, aprende a calcular e construir. Imaginar é construir. Imaginar é observar e refletir em imagem aquela observação. Então tudo isso está no campo que tem a ver com esse lado lúdico, onde o folclore habita. Margareth Menezes Cantora, compositora e atriz Foto: @amarelourca Foto: Divulgação - Estúdio Gato Louco Fico muito, mas muito, muito feliz em ver um trabalho como o “Olimpo Tupiniquim”. O país se revela, o país se mostra, o país se aprende, o país se ensina através da sua cultura. A cultura, a educação que fazem a história, as estórias como no “Olimpo Tupiniquim” e essas estórias as vezes até se confundem com a história, mas o mais interessante e o mais importante ensinando cultura. Fazendo cultura com as crianças. Eu sempre pensei muito, questionei muito esses cantos de ninar como Bicho-Papão sai de cima do telhado e achava um lance meio estranho. Viajava um pouco nisso, mas agora vendo por esse lado, vendo no “Olimpo Tupiniquim” com a estória contada e suas ilustrações, as crianças podem ter e ver um trabalho bonito, cuidado com toda dedicação. O folclore é cultura, a cultura é o folclore. Os dois se confundem altamente graças a Deus. A cultura e o nosso folclore um é o outro e o outro é um. Através do nosso folclore a gente conhece nossa gente, mostra nossa gente, a gente ensina, aprende. Aprende o nosso folclore com a nossa cultura. Obrigado a vocês dois por estarem dando essa oportunidade ao futuro. Sandra de Sá Cantora e compositora
60 Este livro foi composto em Myriad Pro, Nove, Anisette Std, Macho, e impresso em papel Couche Fosco 150g / m2 em dezembro de 2020.
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