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Published by Larissa Murad, 2017-07-16 11:13:04

Sacode o rabo Jacaré: a indústria cultural e a experiência popular na formação social brasileira

TCC Júlia Araújo

Keywords: Formação do Brasil,Indústria Cultural,Cultura Popular,Maranhão,Música popular

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL

Julia Iara de Alencar Araújo

Sacode o rabo, Jacaré:
A Indústria Cultural e a experiência popular na formação social brasileira

Rio de Janeiro
2016

JULIA IARA DE ALENCAR ARAÚJO

Sacode o rabo, Jacaré:
A Indústria Cultural e a experiência popular na formação social brasileira

Trabalho a ser apresentado à Escola de
Serviço Social da Universidade Federal do
Rio de Janeiro como requisito para obtenção
de grau no curso de Serviço Social, pelo
Programa Nacional de Educação na Reforma
Agrária (PRONERA).

Orientador: Prof. Marildo Menegat
Rio de Janeiro
2016

JULIA IARA DE ALENCAR ARAÚJO

SACODE O RABO, JACARÉ:

A Indústria Cultural e a experiência popular na formação social brasileira.

Trabalho a ser apresentado à Escola de
Serviço Social da Universidade Federal do
Rio de Janeiro como requisito para obtenção
de grau no curso de Serviço Social, pelo
Programa Nacional de Educação na Reforma
Agrária (PRONERA).

Rio de Janeiro, 02 de dezembro de 2016.

BANCA EXAMINADORA
_______________________________

Profª. Maristela Dal Moro
UFRJ

________________________________
Prof. Javier Blank
UFF

________________________________
Prof. Marildo Menegat
UFRJ

AGRADECIMENTOS

Toda pessoa se faz
por aquilo que sabe do mundo

e de si mesmo,
do seu lugar, e de si mesmo.

Da sua arte,
das suas criações

e de si mesmo..
Começo agradecendo minha família, porque muito antes de mim, eles souberam do mundo e
souberam que precisam transformá-lo, souberam de uma escolha pela luta. Os caminhos dos meus pais
me levaram aos primeiros passos do meu próprio caminho. Vocês estão sempre comigo Meu Chico e
Dona Lena. Obrigada pai e mãe, por tudo e cada dia de amor e cuidado. Vitória, a pequena irmãzinha
que se aventura nas minhas aventuras. O que seria de mim sem a sua paciência? Obrigada pelas
citações ditadas, pelas horas de textos lidos em voz alta e debates que provavelmente tomaram muito
do seu tempo e do seu saco. Vó Lídia! A senhora também, que sempre me incentivou aos estudos de
tantas maneiras. À Rayssa Helena, por toda poesia e amor de muitas e muitas luas de distâncias, mas
também pelas magias de estar sempre, e de algum jeito, por perto. Maria Gorete! À bruxa madrinha,
que sempre me deu livros, música e conselhos atrevidos de rebeldia. Você sabe do seu papel decisivo
neste momento. Ele começou há 23 três anos e ganhou um novo corpo naquele telefonema-de-
mudar-respostas – desses feitiços que só as bruxas sabem fazer. À Larissa, cuja dedicação mal
encontra palavras pra que eu lhe agradeça – obrigada por sempre responder tão prontamente
às angustias, às dúvidas, à pressa. Dandára: cada pedaço de pensamento, amor e angústia
sempre encontrou seu ombro, sua gaiatice e sua seriedade cheia de ternuras de dandarar.
Obrigada por tudo e por cada momento (a monografia é só um detalhe). Lizandra, menina
bonita do laço de fita! Pela tua dedicação, pelo dia de vírgulas, concordância, críticas e de
carinho construtivo: mais que “obrigada”. Scheilla, meu agradecimento significa, sobretudo,
amizade – pelo incentivo e pelas puxadas de orelha, amáveis, mas precisas: obrigada. Luana
(e Valentin)! Porque sim, porque sempre. Porque amor. Porque tudo. Obrigada nega, por me
ajudar a combater aquela ansiedade básica. Marildo, cada palavra sua se ultrapassa e se revela
outras mil (perguntas e mistérios), quase sempre são palavras de virar-do-avesso, obrigada,

muitos “obrigadas” num só. Culturentos do MST, pela ousadia criativa, revolucionária e
mística com que fazem sua militância, aparem aí o meu agradecimento pelo aprendizado
constante. Camaradas dos dias de luta, obrigada por todo apoio e pela confiança.

Ao Movimento Sem Terra, pela oportunidade que nos deu de ocupar um lugar de um
acesso historicamente negado aos pobres. Por me ensinar os caminhos de luta. E por me
ensinar a resistir.

RESUMO

A humanidade caminha para um esvaziamento de sentido cada vez mais profundo. O objetivo
deste trabalho é discutir a cultura popular a partir da experiência da formação social brasileira, como país
periférico. Para tanto, escolhe-se a música como caminho para observar a cultura ante o aprofundamento
e impacto da Indústria Cultural no Brasil, tomando-a como um padrão de comportamento. Considerando
importante compreender como a violência colonizadora impulsionou o nascimento de uma estética
cindida em relações de exploração e sacrifício, este trabalho discute o conceito de cultura popular, na
perspectiva de situar um vínculo criador coletivo e de organização da classe subalterna capaz de guardar,
no seio de sua cultura, aspectos, núcleos, de outras formas sociais, bem como a apropriação de sua
originalidade e de suas contradições por uma lógica pré-concebida de mercado pelos aparelhos
hegemônicos da lógica formal do capital. Como recorte histórico, este trabalho tem como objeto a
experiência popular no MA, entre a década de 60 e os anos atuais. Não obstante, esta elaboração se coloca
como uma observação crítica ao capitalismo, na perspectiva de destacar seu caráter destrutivo e
regressivo através da formação social e cultural, das expressões e linguagens que esta forma social utiliza
para se realizar.

Palavras Chave: Indústria Cultural. Formação Social. Cultura Popular.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................... 7
1. UM ANEL PARA A TODOS GOVERNAR – A PERVERSÃO DOS FEITIÇOS NO HOMEM
MODERNO...................................................................................................................................................... 9

1.1 O pé do titã e um longo caminho – A arte e a evolução dos sentidos. .................................................... 9
1.2 A cultura da civilização. ........................................................................................................................ 16
1.3 O Mundo do Avesso, um feitiço inverso............................................................................................... 23
2. O FETICHE DA DIFERENÇA NO PAÍS DOS DIFERENTES........................................................... 31
2.1 Bem me quer, mal me quer… A civilização, a violência e a formação............................................... 31
2.2 II Movimento – Inselença para a terra que o sol matou. ....................................................................... 50
2.3 III Movimento – A noite do espantalho................................................................................................. 55
3. O CARCARÁ E O DENTE DE OURO – O IV MOVIMENTO. .......................................................... 64
3.1 O Dente de Ouro – O Movimento Estético e Cultural da Música Popular Maranhense. ...................... 67
3.2 O Carcará, um pássaro de bico volteado – a Indústria Cultural pós década de oitenta. ........................ 77
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................................................ 91
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................................ 95

7

INTRODUÇÃO

No intuito de caminhar pela estrada insegura da dúvida, do estranhamento, este trabalho
nasce de um esforço examinador sobre a cultura, a partir da música, tomando-a como um indicador
comportamental das relações societárias no estágio atual do capitalismo. Neste exercício, se fez
importante o questionamento sobre o significado de uma cultura popular e no que (e se) ela se
difere do padrão de massa estabelecido pela Indústria Cultural como popular. Dessa necessidade, o
estudo do conceito de Indústria Cultural (ADORNO e HORKHEIMER) encontra no Brasil
situações particulares e um desenvolvimento diferenciado, que exige atenção para a sua formação
social – pois segue a lógica hegemônica do capitalismo, mas guarda formas coloniais de dominação
e subordinação que são pilares da nossa estrutura social, e da cultura.

A forma estética da música é um componente das múltiplas determinações que constroem a
subjetividade e a participação do ser em sociedade, mas como ferramenta de bolso é capaz de
sensibilizar e corromper o silêncio indigno – característico de uma rotina mecânica que não
proporciona elevação ao pensamento. Num movimento reflexo, a música se comporta como um
ente onipresente, como é próprio da mercadoria, repetitivamente plantando ideias e padrões,
prometendo preencher vazios aos quais não se podem explicar pela mera razão imediata.

Se pensarmos ainda em seres humanos que aprendem com todos os sons e imagens ao seu
redor, que apreende seu cotidiano inundado de necessidades e padrões, não nos passará
despercebida a ideia de que tudo aquilo que o homem é capaz de ouvir, é impelido a reproduzir –
tornar parte de sua consciência e, portanto, de suas ações corriqueiras, mesmo quando baseadas
num suposto e poderoso instinto de automatismo; como responder ao próprio nome. A música nesse
contexto será entendida como um padrão de comportamento reagindo sob as transformações
sociais.

Seguindo este raciocínio, entre violência e diferença, a cultura também será tratada como
uma veia aberta da nossa formação social, do processo de expansão civilizatória da Europa, que
cumpriu na humanidade um papel profundo não apenas de exploração, mas de imposição de uma
racionalidade cujo princípio está cindido também no adestramento e controle da diferença. Daí a
ideia de dominação pelas linguagens e pela privatização do conhecimento que tomará diversas
formas na racionalidade burguesa.

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Assim, no primeiro capítulo, seguimos a hipótese de que o desenvolvimento da civilização,
sob orientação do capital, perverte os sentidos dentro da lógica do trabalho, alterando o sentido de
toda a atividade produtiva humana em escala global – incluindo a arte. Tratamos também da
mercantilização de todos os valores e experiências do homem em relação a si e a natureza, e dela
própria. Este é, pois, um capítulo que pretende reconhecer o lugar da alienação num processo de
valorização do valor, cuja extensão não se trata de uma contingência ideológica, mas de algo muito
mais profundo e destrutivo quando se configura numa alienação de reconhecimento na existência
social.

No segundo capítulo, tratamos de nos lançar pelo caminho das caravelas e observar o
momento em que a civilização confina, num mesmo espaço de violência e sacrifícios, etnias
distintas na colonização do Brasil. Onde nascem os ritmos brasileiros, a marginalização desses
ritmos e uma cultura popular cheia de segmentos criativos sincréticos, que, entre a miséria e
benevolência, se fizeram autênticos e necessários narradores de uma vida deformada. É neste
segundo capítulo que, mesmo brevemente, percebemos o desenvolvimento de um sentido nacional,
de um sentido industrial e do envolvimento cultural do país empenhado pelos idealizadores do
desenvolvimentismo – ao que a cultura popular respondeu, ou correspondeu, de maneiras distintas,
positivas e negativas, ao longo desse processo. É neste capítulo que nos debruçamos sobre o caráter
da diferença na Indústria Cultural brasileira e na tentativa de conceituar o “popular” como contrário
a uma tradição de massa “pop”; apesar da homônimas exercem um sentido oposto entre si.

Para o terceiro capítulo, temos o ponto central deste trabalho: a tentativa de compreender a
chegada da Indústria Cultural no Maranhão, neste que é um estado periférico de grande valor para o
capital e que, proporcional a sua reserva de riquezas e força de trabalho, configura umas das
maiores expressões de pobreza e marginalização do Brasil. Para reforçar as contradições, é neste
capítulo que tratamos de demonstrar com mais ênfase as experiências que valorizaram
humanamente a música, arte e criatividade popular e as trouxeram para o centro das atenções como
protagonista de uma identidade regional, bem como o momento em que essas experiências serão
cegadas pelos holofotes e pelas disputas de poder.

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1. UM ANEL PARA A TODOS GOVERNAR – A PERVERSÃO DOS
FEITIÇOS NO HOMEM MODERNO.

1.1 O pé do titã e um longo caminho – A arte e a evolução dos sentidos.

A mulher e o homem sonhavam que Deus os estava sonhando.
Deus os sonhava enquanto cantava e agitava suas maracas, envolvido em
fumaça de tabaco, e se sentia feliz e também estremecido pela dúvida e o

mistério. Os índios makiritare sabem que se Deus sonha com comida,
frutifica e dá de comer. Se Deus sonha com a vida, nasce e dá de nascer.
A mulher e o homem sonhavam que no sonho de Deus aparecia um grande
ovo brilhante. Dentro do ovo, eles cantavam e dançavam e faziam grande
alvoroço, porque estavam loucos de vontade de nascer. Sonhavam que no
sonho de Deus a alegria era mais forte que a dúvida e o mistério; E Deus,

sonhando, os criava, e cantando dizia:
– Quebro este ovo e nasce a mulher e nasce o homem. E juntos viverão e

morrerão. Mas nascerão novamente, nascerão e tornarão a morrer
novamente e outra vez nascerão. E nunca deixarão de nascer, porque a

morte é uma mentira.
(A Criação, in: Memória do Fogo – Eduardo Galeano, 2012.).

Quando o homem concebeu seu divino, naquela data antiga de quando era animal
como o animal e pelo poder da necessidade conhece a capacidade de transformar a natureza,
se viu, então, pai e filho de suas descobertas, o criador e criatura de seus enigmas. A relação
entre homem, natureza e vida social povoou o mundo com palavras e cores, e a magia vinha
com sabedorias misteriosas que não poderiam vir de outro lugar senão… Do céu! De onde
vivem e ressoam os trovões…

Eis que a humanidade habitou os reinos expansivos das palavras, mas antes as pedras.
Quando se percebeu que mais que colecioná-las, selecioná-las de acordo com seus tamanhos e
possibilidades, era possível que se transformassem, e o que era acaso metamorfoseia-se em
ideação, o caminho por onde passa a finalidade e o fim, o modo. O ato humanizador que
distinguiu os homens de sua forma animal, passa por uma sensibilidade nascida de seu
cotidiano, em sociabilidade típica do ser humano.

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De tempos e modos de onde vem saltando esse homem, possuidor de polegar opositor,
palavras e pensamento, o conhecimento sobre as coisas tomou muitas expressões de magia: as
mulheres que falavam com os espíritos e realizavam curas e profecias; os anciãos que falavam
com a morte e liam o céu para saber do futuro, da sorte ou do infortúnio; os sacerdotes que
purificavam as almas através dos sacrifícios aos deuses; a fertilidade da terra num triângulo
imaginário no corpo feminino. A magia era uma expressão do conhecimento daquele homem
sobre seu meio.

A natureza e o seu vasto mistério eram, para o homem primitivo, alvos de devoção e
temor. O ato de transformar em coisa aparente aos sentidos as causas que são invisíveis deu a
esse homem o primeiro sentido da arte.

Os instrumentos de trabalho, as habilidades de trabalho, são os mesmos
usados para fazer arte, um produto da arte. Arte não era uma ação fora do
trabalho. Ela não tinha um momento de folga, acontecia junto com o
trabalho, fazendo parte do mesmo processo de elaboração humana.
(MENEGAT, 2015, pág. 28)
Menegat ressalta que na mesma atividade produtiva de nutrir as satisfações,
expressava-se a cultura e a arte, as crenças não estavam fora do ato de caçar ou de construir
um arco e flecha. Na forma de uma imagem como semelhança aos deuses – um elo com o
mundo transcendente – encrustado em madeira, esculpido em mármore ou idealizado em
animais, buscavam respostas sobre o mundo e dar sentido às suas atividades, a sua própria
história. A dança para o fogo e para a lua. A música para enriquecer as experiências
espirituais. Para o homem primitivo a arte era seu diálogo com a natureza e com outros
homens, a sua expressão de conhecimento sobre ela, ainda que este conhecimento estivesse
cheio de superstições. As expressões da natureza atribuídas de sentidos mágicos permitiam
que esse indivíduo observasse e participasse da vida nativa, e esta percepção de si dentro da
natureza promulgava uma relação de equilíbrio entre homem e ordem natural.

A capacidade de memorizar e avaliar os processos de criação, fez com que esse
diálogo entre homens e natureza ficasse cada vez mais rigoroso, mais refinado. A magia das
crendices e a realização de tarefas coletivas pela sobrevivência, simultâneas à realização da
arte, possibilita à humanidade tecer concepções de beleza, de prazer e de percepção do outro.
Os símbolos ganham poder nas relações sociais e se impregnam do sentido de tradição. Mas

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os símbolos não bastam para satisfazer as necessidades de comunicação dessa nova
sociabilidade desenvolvida. A palavra falada objetiva o pensamento, forma uma opinião não
apenas de um indivíduo, mas de um povo inteiro. Reproduz-se, se espalha. O corpo humano
transforma-se e se reconhece à medida que o trabalho se aperfeiçoa, não como uma cadeia
evolutiva tende a fazer para adaptação à vida na terra, mas como uma cadeia de relações
sociais é capaz de fazer com seres culturais, ou seja, seres que não apenas criam, mas são
reproduzidos dentro da cultura estabelecida em vida social.

A explicação do mundo, a natureza dos sentimentos, as expressões dos sentidos em
que os povos antigos baseavam sua existência personificava-se pela espiritualização desse
diálogo; a divindade era também um critério para formulações de valor e estética. A mulher
trazia em seu corpo o templo da deusa, quanto mais suas formas se aproximassem às dela (de
sua imagem concebida), quanto mais seus modos e suas práticas se assemelhassem às
qualidades mágicas, mais a deusa estaria dentro dela ou seria socialmente adequada. E assim
também os homens, à força e à coragem, valores também componentes de beleza – à medida
que a estética se torne uma relação de fascínio entre o homem e os sentidos.

Acontecia a esse tempo o inverso do que acontece hoje, à natureza atribuía-se
sentimentos e comportamentos semelhantes aos dos homens, agora são as atividades
humanas, irrefletidas, mas dotadas de sentimentos primitivos que ele não compreende,
sobrepostos à natureza. Já não importa ao homem moderno nada além de um saber técnico
sobre as atividades da natureza que o permita dominá-la, e mais, ao homem moderno tudo o
que existe na natureza o serve de valor ou matéria-prima para o valor, mesmo a beleza das
flores, o esplendor do sol, é apenas o anúncio acompanhante de uma mercadoria, ou uma
mercadoria em si mesma. É o que fazem os resorts com as praias, o que faz o turismo com as
montanhas e trilhas, o que faz o trem exportador de minério – escavando a terra sem limites,
passando por cima de crianças. O homem moderno se apossa da luz do dia, das águas
volumosas de um rio, de árvores e florestas sem perceber ali nada, além de mercadoria. O que
torna a relação de apropriação e destruição facilmente exequível. A liquidificação de biomas
passa sem dor alguma por este homem, o desequilíbrio climático, a anunciada ruína da vida
humana e o desespero do fim da existência não são suficientes para que a natureza deixe de
ser apenas uma beleza servil à mercantilização. Resistem exemplos atuais onde, em especial
na parte oriental do mundo e nas religiões de matriz africana, não se separam os deuses das

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forças naturais e atribuem ainda explicações e filosofias de vida a manifestações que
pressupõem uma relação com o corpo e com os sentimentos, bem diferente da cultura
ocidental moderna. Possuem, contudo, apesar da resistência das tradições, uma relação dúbia
com o sagrado que certamente já são modificações específicas das mudanças históricas que o
progresso civilizatório trouxe ao mundo todo.

O aprimoramento da atividade produtiva e o usufruto coletivo do conhecimento fez
surgir experiências fantásticas de sociedades espalhadas pelo mundo. Constituíram-se
relações mais avançadas que articulavam agora uma abstração sobre o mundo às práticas
sociais e produziram um arcabouço histórico (e teórico) possibilitado pela linguagem escrita1.
Data também deste avanço o descobrimento, ao saírem de sua idade mais primitiva, de uma
das mais poderosas fontes de registro, histórico e documental, que seria ferramenta importante
para o desenvolvimento das relações econômicas exercidas no mundo antigo. Para além de
sua função mágico religiosa, servia para contar aos homens sobre a criação do mundo e de
suas civilizações respondendo a sua curiosidade existencial, assim como explicações sobre
fenômenos (além de naturais, sociais) presentes em cada região de acordo com suas variações
climáticas, geográficas e culturais. A forma escrita permite o aprofundamento da capacidade
de síntese e elaboração que distinguem o homem de outros animais, de forma que serve de
autoridade – atribui maior validade – para as normas que os homens inventam e que precisam
manter coesas numa vida em sociedade, pois não se sustentariam sem coesão.

Uma das qualidades mais utilizadas da escrita é a distinção de poder que conferiu a
quem a dominava. A retenção do conhecimento é ponto que, paradoxalmente, fez do homem
primitivo mais consciente de seu meio, e que começava a se desenvolver através de relações
societárias, os que dominam a forma escrita se revestem de duas formas diferentes de poder: a
primeira se resguarda porque se a mão de um sacerdote é escolhida pelos deuses para escrever
as leis que devem reger um povo, os que não podem ler são os primeiros a serem
profundamente cativos por verdades que lhe são transmitidas através de símbolos e rituais,
pois sua ignorância é por si mesma, uma legitimadora dessas leis. Segunda: os detentores da

1 Cuja invenção teve evoluções independentes em pelos menos em quatro lugares diferentes do mundo,

na Mesopotâmia, no Egito, na China e na Mesoamérica. Informação disponível em:
http://www.mundoeducacao.com/historiageral/origem-escrita.htm ou http://www.revista-
temas.com/contacto/NewFiles/Contacto8.html

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autoridade se sentem profundamente convencidos de que são agraciados por um dom, são os
mais apegados à força do tradicionalismo que pode vir a ter uma religião; são impelidos a
protegerem esse dom, através da manutenção rígida da cultura e através da força militar. As
formas de exploração como a escravidão na Grécia, por exemplo, eram legitimadas porque os
escravos eram tidos como bárbaros, incapazes de governo sobre si, portanto, essa prática não
era uma atividade desumana – do ponto de vista da cultura daquele povo – pois apenas os
cidadãos livres, os letrados, instruídos em artes e esportes seriam dotados das qualidades
necessárias para a elevação dos sentidos. Dentro dessa lógica, o conhecimento era tido como
coletivo e necessário. Com a queda das civilizações grega e romana, a saga da retenção do
conhecimento vai se estender por um longo caminho histórico.

No Cristianismo, mais precisamente na vertente católica deste, o poder do
conhecimento sobre a escrita era ainda mais acirrado e perdurou por mais tempo que em
outras religiões, inclusive pelo fato de ter subsumido muitas delas, e fez com que por séculos
a humanidade permanecesse num enorme interlúdio. Pois como apenas a Igreja detinha o
poderio sobre o conhecimento, sobre as formas escritas, sobre a arte, o mundo ocidental
esteve apartado de uma relação com a natureza. Todo o acúmulo obtido pelas complexas
sociedades grega e romana ficou escondido pelo obscurantismo das explicações católicas do
mundo e de seu rígido controle sobre os registros adquiridos na conquista e conversão de
muitos povos ao cristianismo, após a queda das sociedades antigas pelas invasões bárbaras e
de invasões por conquistas territoriais pelos Impérios – como, por exemplo, a grande
expedição romana ao Egito. Ao catolicismo também é dada a responsabilidade sobre a
profunda inversão que a humanidade, como um todo, sofre na sua relação com a palavra
“magia”, muito mais sombria agora, em detrimento da palavra “fé”. Não escapa à memória as
mulheres que foram queimadas na fogueira, acusadas de bruxaria. Tampouco, os povos
arrancados de suas tradições e modo de vida pela exploração civilizatória, que junto da
colonização e apropriação de riquezas traz no seu repertório de “autenticidade” a necessidade
que tinham da catequese, de conhecer deus e a sua verdadeira palavra.

A socialização do conhecimento religioso e, portanto, das explicações de mundo, era
restrito não apenas através da escrita, mas também da fala. Quando um povo não entende a
língua usada num ato cerimonial, os símbolos e as representações é quem fazem as

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convenções. E estas representações têm um caráter ritualístico com os poderes subjetivos para
forjar valores “intocáveis”.

Os símbolos e espetáculos representados pela Igreja da Idade Média eram a única
forma de ensinar e envolver o povo nos ensinamentos religiosos, então as enormes tapeçarias,
as imagens nos vitrais e as pinturas nos mosteiros e catedrais serviam amplamente à função
pedagógica de catequizar e de contar histórias ao povo; técnicas e estilos dizem muito sobre o
conteúdo social de uma época. E nesta época, a Idade Média europeia: a pouca precisão
anatômica, ausência de detalhamento e perspectiva de fundo, crianças retratadas como
adultos, uso restrito de cores, e o realce de tamanho para personagens de acordo com a casta
pertencente, demarcam valores, mais que estéticos, morais. Existia e acontecia essa arte
também nos castelos da nobreza, na música, dança, e em um estilo arquitetônico refinado,
apesar da expressão artística extremamente submissa à religião2.

Importa aqui destacar a música. Até o século XIV duas vertentes de música são
características da época, ambas aprovadas pela Igreja, embora uma seja ainda mais
característica dos ritos religiosos que a outra: o Canto Gregoriano e o Trovadorismo. O Canto
Gregoriano, a música celeste, cuja estrutura fundamental se baseia na entonação de uma linha
melódica à capella, ou em couro cânone, e sua função social era puramente ritualística no
cantar a deus, composição integrante do ato cerimonial3.

Em meados do século XII, um estilo musical ganha tradição mais forte nos salões e
feiras, até o final da Idade Média, com os trovadores. As cruzadas impulsionaram uma
condição nova que modificara o cotidiano dentro dos reinos da Europa, o incentivo à pesquisa
em universidades e uma vida em torno da aristocracia – que exige, então, uma alteração de
comportamento. Cantar sobre vitórias e derrotas, poemas para soldados que partiram de sua

2 Para escrita deste trabalho me propus resgatar a escuta atenciosa da música da Idade Média, expressa

principalmente pelo canto gregoriano, e a obra de Hildegard von Bigen chama a atenção não apenas pela beleza
da composição, versatilidade artística, por sua posição na igreja, mas principalmente por elaborar concepções
filosóficas muito interessantes, a despeito de seu contexto histórico e de sua condição feminina neste contexto.
3 O salmo responsorial, por exemplo, se desapegou da rigidez elitista dos monges e pode ser entonado
hoje por qualquer fiel que deseje fazê-lo durante uma celebração, mas segue ainda sua estrutura básica, solo de
linha melódica única, à capella. O catolicismo perpetuou suas tradições através do tempo, embora as missões
civilizatórias lhe tenham obrigado a adaptar seus ritos e representação em função da catequese de povos nativos.
A relação entre modo de produção capitalista e a Igreja Católica é, por uma questão de semelhança de essência
dominante, de íntima interrelação, justamente pela capacidade de aprofundamento dos princípios constitutivos da
tradição. Portanto serviram-se mutuamente na “missão” de civilizar o mundo inteiro.

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terra (exaltados como heróis), ou o homem apaixonado cujo amor faz-lhe vassalo da mulher
desejada – quase sempre um amor sofredor. Estes temas se tornaram assunto de longos
poemas e uma novidade que veio com a movimentação deixada pela Guerra Santa: a
comoção; ela permite que se toque em temas relacionados aos sentimentos humanos, como as
“cantigas de amor e de amigo”, e mais, a linguagem da música pôde encontrar uma forma de
satirizar e ironizar as práticas sociais entre nobres e servos e expor, de forma cômica, os atos
condenáveis aos valores morais da época, embora conservassem ainda o temor a deus e as
referências religiosas. As canções, principalmente fora do recinto palaciano, ganhavam suas
“cantigas de escarnio e de maldizer”, com expressões mais vulgares. A tradição literária oral
tem um valor importantíssimo na perpetuação de gerações inteiras de trovadores, a maioria
era itinerante e não trabalhava para ninguém, as novelas de cavalaria são histórias (inclusive
recontadas pelo cinema hoje) que se tornaram conhecidas graças a essa capacidade de
memória e a esse modo coletivo de realização da tradição oral.

No centro do declínio do sistema feudal, as Guerras Santas possibilitaram fenômenos
novos que influenciaram a arte por modificarem o cenário cotidiano, e, apesar de ter servido
ao adiamento do desmonte dessa ordem social, também proporcionou, a longo prazo,
configurações que acabariam por influenciar na sua queda. O mundo ocidental, ao cabo de
centenas de anos de maturação e expressão do declínio (o momento em que a forma social já
não suporta as relações societárias e nem o modo de produção que norteia a produção e
reprodução da vida), se viu maior do que as extensões dos feudos. Caminhou para a formação
de formas ampliadas de ajuntamento populacional, impulsionadas pela atividade comercial
artesã e agrícola: os burgos. Ainda um ensaio para supressão da velha ordem social por uma
nova, bem ali, no seio de sua ruína.

Do ponto de vista da vida cultural, o contato com outros povos importou novos
horizontes, novos instrumentos, novas cores; mesmo a língua falada se modifica, e com
velhos feudos em franca modificação, novas fronteiras foram estabelecidas.

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1.2 A cultura da civilização.

1492
Guanahaní
COLOMBO
Cai de Joelho, chora, beija o solo. Avança, tremendo, porque leva mais de um mês
dormindo pouco ou nada, e a golpes de espada derruba uns arbustos.
Depois, ergue o estandarte. De joelhos, os olhos no chão, pronuncia três vezes os
nomes de Isabel e Fernando. Ao seu lado, o escrivão Rodrigo de Escobedo, homem
de letra lenta, levanta a ata.
Tudo pertence, desde hoje, a esses reis distantes: o mar de corais, as areias, os
rochedos verdíssimos de musgo, os bosques, os papagaios e esses homens de barro
que não conhecem ainda a roupa, a culpa nem o dinheiro e que contemplam,
atordoados, a cena. [...]
( Eduardo Galeano, 2012,)

Se as cruzadas levaram para muito longe os homens dos feudos, a expansão marítima

que viria com a ascensão do comércio e de uma nova cultura de agricultores e burgueses,

afastados dos pequenos reinos dos senhores feudais, provocaria um abalo no mundo como o

conheciam. O crescimento populacional e essa recém-nascida apresentação às produções de
excedentes – possíveis pelo aprimoramento de técnicas e ferramentas – propiciou a unificação

de povoados num mesmo território, formando os primeiros Estados europeus. A disputa

territorial conflituosa entre os países pelo controle de rotas marítimas e expansão de fronteiras

comerciais, levou Portugal a investir no estudo e construção de tecnologias de navegação que

permitissem o estreitamento das relações com o Oriente, uma vez que a Itália detinha o

controle sobre o caminho marítimo convencional.

E procurando pelo Caminho das Índia, Portugal encontrou o Brasil. Da mesma forma

a Europa expande seus mapas à América Latina e a África, iniciando um massacre aos povos

nativos e exploração de riquezas naturais. Em nome da civilização, da palavra santa e do

comércio, nações inteiras de indígenas foram destruídas, os que sobreviveram, foram
expurgados da natureza e de sua cultura. A gente despossuída de culpa, e de “hábitos
civilizados”, não podia entender os seres fantásticos que vinham do mar em grandes

embarcações, afinal eles lhes deram de comer e beber, porque haviam de ser, então,

acorrentados, violentados e escravizados? Que coisa é essa de trabalho? Que coisa é essa de

escavar a terra por ouro? Que coisa é essa de cortar árvores? Que coisa é essa? O bom homem

17

cristão é centro de toda terra e universo, até o sol gira para ele, por isso a natureza lhe presta
serviços. Deus a criou para ele. O bom homem índio faz parte da terra e por isso se harmoniza
com ela. Os nativos conservavam sua relação com a natureza e faziam desta a mediação de
sua vida social, e de seus costumes e cultura – que não eram dotados da sabedoria científica
dos colonizadores, mas possibilitavam o equilibro entre os sentidos humanos e suas atividades
produtivas.

O que está crescendo e enchendo os olhos de uma nova e ascendente classe de
comerciantes que, à custa da supressão de muitos povos, fazia agigantar uma riqueza cada vez
mais expressiva e mais importante para a sociedade europeia é a cultura de uma civilização
que gira em torno de mercadorias. Ali um novo hábito de espetáculos e aparências vistosas,
festas e belas artes está em voga como cultura, florescendo com a progressão da ciência.

Francamente revolucionário foi o salto dado sobretudo pelas ciências
naturais nessa época. A imagem de um mundo mágico e místico foi
substituída pelas ciências experimentais e objetivas. Tais alterações não
retomaram simplesmente o antigo desenvolvimento greco-romano, mas
foram muito além. Com sua racionalidade, as ciências puseram em tela de
juízo não apenas a imagem tradicional do mundo, mas tomaram-se também
diretamente práticas na condição de experimentais, à diferença da
Antigüidade; com a difusão do conhecimento técnico, foi dado início à
expansão da manufatura mercantil. Este processo foi vertiginosamente
acelerado com o descobrimento de novos continentes. As incisões sociais a
que foi submetida à sociedade agrária foram, portanto, muito mais profundas
do que na Antigüidade e já deixavam entrever o capitalismo nascente.
(SCHOLZ, 1996, pág. 7).

O furor da ciência como égide de toda razão e a razão como égide mercantil, será
absolutamente incompreensível aos nativos africanos e latinos, assim como o deus branco dos
colonizadores. A ciência desenvolvida por esses povos originários, assim como as complexas
relações políticas, foi dizimada pela concepção de “bárbaro” atribuída a estes. Os conflitos
travados entre a existência, ou não, de princípios que deveriam nortear a dominação dos
“bárbaros” (os índios) e a conservação do “direito à vida”, e de suas estruturas organizativas,
foram pauta de discordância no interior da Igreja, mas não serviram de freio, ou de nova
perspectiva de análise sobre esses povos – principalmente porque o próprio domínio da Igreja
católica necessitava da mesma expansão de que necessitava a acumulação primitiva. Já
sabemos que os argumentos racionais, estes sobre “humanidade”, mesmo aqui, na acumulação
primitiva, já não seria racionalizado pela necessidade de exploração – de base violenta. A

18

forma de colonização, adotada pelas expedições civilizatórias, seriam realizadas de acordo
com o mais eficiente; se não o mais dócil, a bala.

Como já mencionado acima, o domínio sobre uma linguagem escrita conferiu uma
gana de poder muito grande de homens sobre outros homens e do entendimento subjetivo
destes homens sobre si mesmo. A discussão sobre o que é erudito (e o erudito como verdade)
e o que é inculto ou “vulgar”4 (numa atribuição burguesa de valores), começa onde se julga
que o domínio técnico de um tem mais valor sobre o domínio técnico de outro. E no pano de
fundo dessa polêmica uma determinação sempre ganha um destaque sorrateiro: o valor. Seja
quando o dito erudito (tomado pela concepção elitista como atributo de classe) se apossa do
dito popular, seja quando o popular assume um lugar de importância produtiva. A
determinação de sua composição a partir da cultura do valor é baseada na sua capacidade de
agregar qualidades como mercadoria, uma qualidade que faça de si algo desejável de possuir.
Esse é ponto importante a ser discutido mais à frente, para expor as contradições que
sustentam entendimentos sobre música popular.

1.2.1 – Fantasmas e Sutilezas: por onde anda a razão?

A racionalidade cega do ciclo produtivo no capitalismo, que jamais pode ser entendido
apenas como uma cadeia de produção global, um vetor econômico, possui o poder de um
deus-objeto. Ora, um objeto não pensa. Portanto, não racionaliza sobre si, nem sobre o
mundo. Tendo sido criado sobre a terra dos homens, não pode estar fora do reino humano, é,
contudo, avesso à natureza viva que compõem a humanidade. A natureza do deus objeto é

4 É válido ressaltar que neste trabalho não se considera o “vulgar” como imediatamente o oposto de
erudito. E é também importante resgatar que a atribuição de um juízo de valor sobre o “vulgar” não é um fato
novo, no que diz respeito à burguesia, nem isolado. Segundo Adorno, mesmo na Grécia Antiga as opiniões de
eruditos sobre certos padrões melódicos na música que, para estes, as caracterizam como distrações vulgares e
levariam o ouvinte a um amolecimento. Assim como a questão do gosto é também questão de constructo que se
repete a cada período histórico, também a alcunha de “vulgar” passa por essas transformações. Se quisermos um
exemplo regional e mais recente, até que o Cucuriá de Dona Teté, com suas letras ambíguas e danças sensuais,
fosse reconhecido de um valor positivo de popular, sua caracterização ante o erudito maranhense era o “vulgar”.
Além destas questões, vulgar é mais um indicador presente no senso comum, como a linguagem falada tem sua
forma “vulgar” e sua forma “culta”.

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morta5, consiste em satisfazer uma necessidade – que de quando em quando nutre em si outras
necessidades, as quais os seguidores terão de manter para que este não sofra de distúrbios
catastróficos. Mesmo morta, a natureza do objeto é voraz. Se, ao contrário do homem, o
objeto não é dotado de razão não pode, por motivos óbvios, diferenciar ou se preocupar com
os meios que levam aos fins, pouca é a diferença entre pão e guerra, mas a bomba satisfaz
melhor a necessidade do deus das coisas, portanto, os famintos farão bombas – ainda que elas
não matem sua fome. “A racionalidade capitalista não reflete que a produção massiva de
armas produz fome e depois morte. Ela só racionaliza a valorização do valor, para seguir seu
ciclo de produção.” (Menegat, 2015)6.

Para os povos originários, a natureza era um mistério que sua razão não possuía meios
para explicar, por isso, a concebiam como entidades governadas por seres transcendentes. O
trovão, a chuva e a seca, o sol e a lua, as tristezas e alegrias eram para nós temíveis segredos
que apenas os deuses conheciam. Mas esta natureza interagia com eles, não eram alheios dela.
Com seus sons e mutações era possível aprender suas fases, em que estações brotam mais
flores, em que período nascem mais frutos, os sinais de que ao longe vem vindo tempestade.
A inteligência do homem em contato com a natureza lhe permite o sentido de sua intuição
básica, de prever os ciclos naturais. É preciso salientar que esse homem inteligente, capaz de
idealizar e projetar, de aprender e ensinar os processos de suas descobertas só é possível por
sua organização coletiva, porque na aliança entre homens a socialização de conhecimentos
interliga e dá sentido a essas relações sociais. A linguagem escrita e falada não seria viável,
ou mesmo útil, sem este ser social que a humanidade descobre através de sua relação com as
necessidades e da relação de suas necessidades com a natureza.

Em primeira ordem, a humanidade desvenda os mistérios da natureza fantástica e, ao
desvendá-la, essa humanidade construtora – criadora de ferramentas e de satisfações –
concebe a cada nova criação um novo conceito sobre o que é bom e o que é ruim, a noção
sobre beleza, sobre estética.

5 Todo processo de transformação da natureza prima no capitalismo, que fomenta o trabalho e a

intervenção do homem sobre seu meio, para a satisfação de suas necessidades, se baseia numa apropriação
daquilo que é natural e depende de um ciclo de reprodução, que nesta ordem social não tem como prioridade a
reposição ou respeito a esse ciclo, o que corresponde a uma natureza sacrificada pelas necessidades produtivas.
O capitalismo, na sua irracionalidade, potencializa isto submetendo toda natureza à forma de valor.
6 Citação anotada na disciplina de Identidades Culturais.

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Em contraste a isso, nos permitindo um pulo histórico, está a consolidação e
complexificação do capitalismo com a industrialização, a alteração da lógica na produção e
reprodução da vida modifica a mediação entre necessidade e satisfação – fragmentada pelos
polos produtivos, privatizados. O que também mobiliza a relação com a estética, na medida
em que a competitividade entre capitalistas que oferecem mercadorias com a mesma
qualidade de uso (para a satisfação de determinada necessidade), precisam recorrer às
diferenciações, inovações que se interligam ao gosto, à percepção estética como qualidade de
fundo importante no processo de escolha.

Inaugurando-se no modo de produção capitalista que, segundo Marx (2012), tem sua
estrutura principal e sua necessidade fundante na valorização do valor para existir e seguir
produzindo valor, essa necessidade maior provocou uma verdadeira revolução econômica,
moral e cultural. Para que um modo tão diferente de relações sociais seja mantido e
naturalizado, é necessário que haja também na mente dos homens uma forma diferente de
pensar, de ver o mundo, por isso, cada homem pensa com aquilo que seu tempo oferece. O
capitalismo não inaugurou apenas grandes descobertas e novas formas de organização cultural
e valores que desprendiam a humanidade de suas crenças inverossímeis, mas também destruiu
em outras formas de sociedade o momento onde o conhecimento realizado no processo de
atividade produtiva coletiva, era algo socialmente comum e não um privilégio ou ação isolada
de acordo com segmentos, especialidades ou indivíduos. No capitalismo a forma de produção
social do conhecimento, alienada e voltada para o trabalho, inaugura outra forma de relação
com o conhecimento, no processo de divisão social do trabalho que exige dos assalariados um
conhecimento bastante específico sobre as funções exigidas. Sendo subordinado pela
irracionalidade desse sistema, o indivíduo não compreende nem a sua atividade produtiva
trocada por um salário ao fim do mês, não correspondente ao seu quantum produzido, e nem
tem a real compreensão de si mesmo e o do seu trabalho neste mundo, portanto:

(…) a expressão da personalidade do indivíduo fica reduzida à relação com a
atividade humana produtiva. Ele não é alguém constituído por – e capaz de –
se apropriar das múltiplas capacidades humanas desenvolvidas
historicamente pela espécie, mas apenas um momento funcional determinado
pela divisão social do trabalho. (MENEGAT, 2011, pag.5).
Nesse “perder-se de si mesmo” em que esta forma social se sustenta, a complexidade
da acumulação do valor e da relação social entre coisas se complexifica no campo da

21

subjetividade dos indivíduos que agora, apartados da primeira natureza, se veem cativos de

uma segunda natureza, esta social, que provém da ideia de que, tal qual a natureza prima, ela
nutre ciclos e leis próprias que precisam existir, que “sempre existiram”. E petrificam na

própria prática social a impossibilidade de quaisquer outras formas para o mundo. A segunda

natureza destrói a primeira, ameaçando-a de extinção, porque não há um limite aos olhos do

deus-objeto que o impeça de expandir seus horizontes de exploração e os homens são capazes

de sentir um mal-estar profundo decorrente da perversão que isto representa, mas não de uma

percepção imediatamente crítica a isso. Esta primeira natureza agora já não um meio em que

estão inseridos e que precisam conhecer para sobreviver, é um meio de que dispõe de matérias

e modos de garantir uma satisfação de necessidades, criação de mercadorias. O deus-objeto

coisificou a cultura, as crenças, as relações físicas, o corpo, a mente e

Fantasiar que objetos físicos tinham dimensões psicológicas tornou-se lógico
dentro dessa nova ordem secular. Quando a crença era governada pelo
princípio de imanência, ruíram as distinções entre o sujeito que apreende e o
apreendido, o interior e o exterior, o sujeito e o objeto. (SENNETT, 1988,
pag. 37).
Sobre isto diz Adorno:
A tal ponto as pessoas são reduzidas a meras coisas que aqueles delas
dispõem podem colocá-las por um instante no céu para logo em seguida jogá-
las no lixo. […] A indústria se interessa pelos homens apenas como pelos
próprios clientes e empregados, e reduziu, efetivamente, a humanidade no
seu conjunto, como cada um dos seus elementos, a esta forma exaustiva. […]
Como clientes se veem a si mesmo como ilustração na tela ou nos jornais, em
episódios humanos e privados da liberdade de escolha e como atração do que
ainda não está enquadrado. Em qualquer dos casos permanecem objetos.
(ADORNO, 2002, pág. 44 e 45)
Que as necessidades básicas se satisfazem através de atividades produtivas, isto é fato

sabido, o mesmo processo que possibilitou o refinamento das capacidades dos indivíduos,

posteriormente, fomenta um processo brusco de regressão dos sentidos, pois a forma
“trabalho”, transformada em força de trabalho nas relações produtivas do capital, não possui o

fim de suprimir as necessidades do produtor através de sua produção, mas o de produzir as

trocas de mercadoria, para o consumo de mercado.

Dessa forma, a utilidade de um determinado objeto será produzida
socialmente apenas ‘para o outro’. Sua finalidade precípua não está em
realizar uma necessidade inerente à determinação das condições de
existência do produtor. Em outras palavras, o objeto deve ser útil

22

imediatamente não para quem o faz, mas para quem o irá consumir após o
processo de troca. (MENEGAT, 2011, pág. 6).
O mundo que subjuga todo o tempo humano para o trabalho, e cria tempo livre para

que o exercício das mercadorias siga sem pausa, conduz a consciência dos indivíduos a esta

segunda natureza que invariavelmente depende de que existam lados sociais desiguais para a

harmonia desequilibrada dos seus valores. Por isso, não se deve considerar um rebate
anticapitalista apenas a inversão de posição da “consciência dominante” detentora de meios

de produção pela consciência dominada para suprimir o sistema autodestrutivo que ameaça as

condições básicas de vida no planeta e os sentidos humanos em sua racionalidade violenta.

Como um produto do capitalismo, o proletariado está necessariamente
submetido às formas de existência de seu produtor. Essa forma de existência
é a inumanidade, a reificação. Decerto, por sua simples existência, o
proletariado é a crítica, a negação dessas formas de existência. No entanto,
até que a crise objetiva do capitalismo se complete, até que o próprio
proletariado tenha uma visão completa dessa crise e a verdadeira consciência
de classe, ele é mera crítica da reificação e, como tal, elava-se apenas
negativamente, acima do que se nega. De fato, quando a crítica não é capaz
de ir além da simples negação de uma parte, quando não é sequer capaz de
aspirar à totalidade, então ela não consegue de modo algum ultrapassar o que
se nega […].7 Essa simples crítica, feita do ponto de vista do capitalismo,
mostra-se da maneira mais marcante na separação dos diferentes âmbitos de
luta. A mera ocorrência da separação já indica que a consciência do
proletariado ainda se encontra provisoriamente sujeita à reificação. Ainda
que lhe seja evidentemente mais fácil discernir o caráter inumano de sua
situação de classe no plano econômico do que no político, no plano político
mais fácil do que no cultural, todas essas separações demonstram o poder
das formas de vida capitalistas sobre o próprio proletariado. (LUKÀCS,
2003, págs. 184 e 185.)
No campo da arte esta consciência reificada de que trata Lukàcs se apodera sobre a

subjetividade dos artistas sobre sua criação. As obras de arte, cada vez mais retratos de um

reino dos fetiches, falam de um mundo empobrecido que pouco oferece de autoconhecimento

ao seu lirismo, à criatividade, que se torna, nos pelourinhos da Industrial Cultural, cativa de

formas pensadas à priori, ou seja: a novidade é uma nostalgia relegada ao passado

revolucionário desta forma social. Qualquer coisa a partir de seus moldes já foi feita, já foi

dita. Um dos argumentos levado a estudo ao longo desse trabalho parte da premissa de que se

a humanidade, em função da irracionalidade desse sistema, vai deixando para trás a sua

perspectiva imaginativa do novo, nesse bojo, a perspectiva de uma arte que transcenda as

7 Lukács sita o exemplo das cisões sindicalistas, que eu estendo aos partidos políticos e a
maioria dos movimentos sociais existentes e remanescentes do século XX.

23

formas deste mundo, ensaiando rupturas mais profundas, também se distancia da imaginação
e práticas humanas.

“Nesse contexto onde a técnica prevalece enquanto forma de produção em série […] a
arte e a cultura retratam o real como único mundo possível e desejável, ou seja, não se
distinguem do sistema social que impede sua sublimação” (MURAD, 2013, pág. 10). E
subtrai do ser humano a condição criativa/imaginativa que o possibilitaria enxergar a si
mesmo para além do domínio do estado de coisas excluindo, inclusive, a noção do ser
humano como construtor não apenas dos objetos que o dominam, mas do mundo em que
vive.8

1.3 O Mundo do Avesso, um feitiço inverso.

(...)
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro,

(...)
Já não me convém o título de homem.

Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.

(Drummond, Eu etiqueta.)

Para uma forma de pensar que pudesse manter a lógica produtiva burguesa, o século
das luzes, marcado pelo gigantesco aprofundamento da técnica, cumpre um papel decisivo na
mistificação inversa dos símbolos no capitalismo, começando por quebrar as explicações
mitológicas do mundo. Inaugura uma etapa racional formal que viria a ser celebrada como o
altar máximo da potencialidade humana. A expansão da técnica no seu casamento com
ciência (e a ciência como a religião da indústria) levou o homem burguês ao entendimento
enviesado de si mesmo, quantificado, mimético – tão mergulhado em mitos quanto o homem

8 Extrato das aulas ministradas por Marildo Menegat para a disciplina de Identidade Culturais, em maio

e junho de 2015.

24

primitivo que o Iluminismo e a civilização repudiaram tão abertamente. Adorno diz em seus
escritos sobre o conceito de Iluminismo que “A lógica formal foi a grande escola da
uniformização. Ela ofereceu aos iluministas o esquema de calculabilidade do mundo.” (1999,
pag. 23).

A ironia do Iluminismo consiste no fato de que ele se estabelece como um grande mito
devorador de mitos. Segue um esquema antigo, assumindo para si uma perspectiva
revolucionária que não rompe com os ritos sacrificiais dos feiticeiros, dos curandeiros, dos
sacerdotes. O princípio de imanência, onde a realidade deve ser comprovada através da
empiria, percebida por meios dos sentidos, serve de ponto de partida para a maior das
perversões do capitalismo: o de fazer julgar ao moderno homem europeu que sua razão o fez
conhecedor inalienável do mundo, que o progresso de seu saber técnico o eleva acima daquele
homem bizarro que cantava pra lua, quando na verdade todos os seus sentidos estão
enfeitiçados por uma aparência mítica que não reconhece as divindades, nem a natureza, ainda
menos a si mesmo; até o deus cristão se mantém sob as regras da ação do trabalho produtivo,
até mesmo suas leis estão sob a compreensão mitológica que o sistema fez, ainda no
Iluminismo, se arraigar na consciência que agora produz a si mesmo, numa cadeia de relações
sociais interdependentes numa dominação impessoal que age no lugar da primeira natureza,
mas que mantém seu princípio sacrificial e primitivo sem que os homens saibam disto.

As religiões do mundo inteiro se veem agora diante da religião industrial, as que não
caíram nas ciladas das adaptações (como o catolicismo faz desde tempos antigos, numa série
de costuras feitas de modo a manter a crença de seus fiéis nos tempos de maior mudança
cultural), sofrem os sacrifícios de purificação ou punição através das guerras bombardeiras,
justificadas por motivos absurdos – no fundo tão sem sentido quanto entregar a um totem o
guerreiro mais corajoso, uma virgem virtuosa, ou uma criança inocente. Este mundo aceita
sem muito burburinho que povos inteiros sejam destroçados por petróleo, ou acreditam que a
guerra entre israelenses e palestinos tem qualquer sentido histórico-cultural ou sagrado,
escrito em algum lugar como fato. Ora, o mundo inteiro pode ver e ouvir, através de seus
sentidos, o assassinato de povos libaneses, africanos, palestinos, latinos, orientais, mas esses
mesmos sentidos estão condicionados a não percepção, e não reação, à morte de seres
humanos como uma condição de sacrifício para um deus-coisa.

25

“O princípio de imanência, de explicação de todo acontecer como uma repetição,
sustentado pelo Iluminismo contra o poder da imaginação do mito, é o princípio do próprio
mito” (ADORNO, 1999, pág. 26). O Iluminismo não pôde suprimir das relações sociais os
rituais dos símbolos e a necessidade que o homem tem de manter seus mitos. Apesar de seu
repudio às fábulas e lendas dos homens primitivos, o conceito de Iluminismo é em si um
grande mito, por estabelecer uma lógica engessada onde a ciência e a técnica são empregadas
em todos os campos do saber social que, a divisão do trabalho, especializa o conhecimento do
homem assalariado em áreas tecnicizadas deixando de oferecer quaisquer conhecimentos que
não sirvam ao trabalho produtivo, a isso se chama regressão. Ao passo que a indústria
aprofunda seus meios de produção e o reino das necessidades cresce desenfreadamente para
que o capital possa continuar seu ciclo imperfeito, a ciência se apodera de uma divisão
também espiritual do trabalho e brada seu direito sobre as descobertas do mundo. “O
Iluminismo se relaciona com as coisas assim como o ditador se relaciona com os homens. Ele
os conhece na medida em que os pode manipular. O homem da ciência conhece as coisas na
medida em que as pode produzir” (ADORNO, 1999, pág. 24). As descobertas não servem de
para quebrar com os mitos de modo que os homens não temam a natureza e entendam de si,
de suas relações sociais e dependência coletiva; a ciência gira em torno das necessidades que
o capital cria. Caso contrário, o homem moderno não precisaria acreditar tão veementemente
que a morte de tantos seres humanos, que as dores mutilantes no corpo, que as frustrações em
vida, serão compensadas por um paraíso cada vez mais próximo – quanto mais sangrento é o
mundo.9 Os que não acreditam em paraíso se convencem de que esta ordem sangrenta, onde
muitos precisam morrer, para que outros continuem existindo, é necessária e inalterável. Não
é difícil imaginar a selvageria que isso pode provocar num ser humano. A violência se torna
um meio naturalizado dentro dessa lógica. E isso se complexifica quando o que se considera
necessário para viver já não está nas satisfações básicas, está em coisas; coisas identificam o
humano como humano, a coisa define o homem. Para um índigena, em 1500, dizer que uma
canoa vale a vida de um homem seria ultrajante e intolerável, mas para o homem moderno,

9 Teoria trabalhada por Marildo Menegat em sala de aula, acerca do homem determinado a priori e o

princípio de imanência (o capital como religião); a segunda natureza que criamos e não entendemos, como os
primitivos não entendiam a primeira natureza, é porque a divisão do trabalho se autonomiza e o fetichismo
anima a mercadoria e lhe confere cidadania; por isso, ele diz, precisamos de um mundo que explique este
mundo.

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um objeto (ou vários objetos) constantemente justifica a vida de alguém. O capital naturaliza a
violência, também, quando esta é a única coisa que pode oferecer a uma massa muito grande
de expropriados que não têm lugar na cadeia produtiva, e aos quais o olhar da ciência não
oferece resposta. Assim, também se torna fácil repudiar o homem que não trabalha; o homem
violento que não trabalha, mais ainda. Os “vagabundos” podiam se esforçar em fazer mais da
vida (como dizem); de uma vida que não faz nada por ninguém.

Winnicott (apud NASIO, 1995.) tem uma teoria sobre os efeitos do comportamento da
mãe sobre a psique de um bebê. Brevemente: segundo o autor, uma mãe má10 pode provocar
uma psique cheia de lacunas, onde o indivíduo desenvolve transtornos de personalidade como
o que ele chama de falsoself, transtorno esse que impediria que o indivíduo desenvolvesse
uma personalidade definida e que, por essa razão, seja alguém de índole incerta, de
personalidade vacilante ou de múltiplas personalidades. Se este pensamento encontrar aporte
na realidade (na estrutura familiar), vale refletir que antes de uma mãe na carne, toda criança
tem um pai social, que também criou sua mãe e pai de carne. Todos temos um grande pai
(social) lacônico, e estamos sujeitos a uma sociedade que determina nossas ações através do
trabalho – único mediador possível, segundo as leis reguladoras desta lógica, para conseguir
mercadorias e satisfação; existem mediações fora das leis estabelecidas, também inerentes e
necessárias a esta forma social – e, seguindo a perspectiva de Marx (2012), as nossas ações
determinam a nossa consciência. Se esta sociedade, feita de uma humanidade livre na
aparência, aceita o fato de que o mundo do trabalho não é para todos (embora domine a todos)
ela determina a uma grande massa de seres humanos um destino de não-ação e não-lugar
profundamente cruel ou perigoso. E não ação dentro de um sistema como o capitalismo
significa renegar a condição de existência para o que não produz (e não teria meios de
consumir). Uma criança que é convencida por seu pai (mais uma vez, pai social) de que é uma
personalidade de não-ação e não-lugar, tende a procurar qualquer caminho que desminta sua

10 Essa mãe má de quem fala Winnicott precisa ser refletida, e relativizada, a partir do lugar da mulher

nessa sociedade. A condição de mãe má, e não pai mau, de mãe que é inconstante, a mãe que não apresenta
equilíbrio, são traços de uma teoria que revela o caminho obscuro do patriarcado dentro do capitalismo – e como
um sistema criado por homens, um sistema macho, potencializa regressivamente a divisão sexual dos papéis
sociais. A teoria do Winnicott me parece mais interessante se tiver um aporte na estrutura familiar e não no
comportamento individual da mãe. Por isso, me valho muito da teoria de Roswitha Scholz para desarmar essa
armadilha que é a responsabilização individual da mulher como mãe dentro de uma sociedade cindida no
patriarcado do valor. Se, como Scholz diz, o valor é o homem, antes de mães e pais maus ou bons, temos um pai
social, um modo de produção macho, coisificado e reificado.

27

invisibilidade (para si e para a sociedade). Ela vai tirar do mundo o que o mundo diz que ela
precisa ter pra ser; esta é uma das formas pela qual o capitalismo faz do homem moderno um
sangrento homem bárbaro. E de múltiplas personalidades.

Diante da necessidade, os seres humanos contam com muitas possibilidades de luta
pela sobrevivência, mas o capitalismo conseguiu suprimir a capacidade de imaginar o novo de
uma forma tão profunda, que uma crítica capaz de superá-lo é muito mais difícil que escalar
as necessidades numa coluna da infâmia, justamente porque esse sistema naturaliza a
violência e o individualismo. Exatamente como o falsoself de Winnicott, a falsa consciência é
perceptível, mas difícil de ser tocada.

“(…) o saber que é poder, não conhece limites” (ADORNO, 1999, pág. 18). No
conceito de Iluminismo a separação do saber por área técnica e a penetração da técnica em
todas as esferas da vida social, assim como a mercantilização, causou uma separação
importante que ganha uma visibilidade muito aparente e muito característica de uma
sociedade de classes antagônicas: os eruditos e os populares. Assim como os proprietários se
diferenciam dos assalariados, a divisão do saber também se separa de acordo com a divisão do
trabalho e de acordo com o que o poder aquisitivo é capaz de comprar. O domínio sobre o
maior leque possível de atividades sob a execução perfeita de técnicas se associa na sociedade
burguesa a qualquer um que possa comprar por este saber.

Pensando na Europa, onde o capitalismo teve sua formação clássica – no auge do
século XVIII, mas não uma exclusividade deste – a ascensão das grandes óperas, da
profundidade musical altamente refinada pela teoria e por execuções de complexidade madura
(uma graça atribuída à liberdade sucessora da música barroca), inicia um período de novas
concepções de composição para os artistas e de comportamento social para as pessoas, outra
relação com o corpo, novas relações com a estética – através da moda – uma vida pública
fervorosa, um núcleo familiar menor e estável que propicia uma vida privada, muito diferente
do núcleo familiar nobre, de tipo camponês. A cultura do bel canto também se enquadrará, à
época, numa exigência técnica severa (em especial depois da passagem do clássico para o
romântico) e se divide entre os de “estirpe”11, os que podem acessar o alto padrão de estudo

11 A habilidade de cantar e a escolha de uma carreira profissional como cantor se encaixa na lógica de

divisão do trabalho. Com estirpe, pretende-se apenas lembrar a primeira fase das grandes Prima Dona, onde as

28

de obras intricadas de rigor e aqueles que dependem da audição casual das canções, ou das
músicas de resquício da tradição oral – que é um componente de canção popular na Europa. A
música começa seu caminho no mercado com a febre dos concertos e a febre dos bordéis –
com as opções de escolha que o mercado impõe, as convenções do gosto, dos critérios de
apreciação, da competição entre artistas e as mais diferentes técnicas tomam importância,
inclusive como um modo de distinção entre os eruditos. A separação entre erudito e popular
(popular aqui como “inculto”, na perspectiva hegemônica), vem principalmente da
consolidação de uma elite erudita burguesa.

Há um estudo de Engels (2008) em que é possível perceber a relação que os
trabalhadores desenvolvem com o prazer a partir da jornada de trabalho extenuante do século
XIX12 e de um salário nefasto, que mal pagava sua sobrevivência mais básica; justamente no
período em que o senso moral burguês desenvolve um repudio fugaz às práticas das massas.
Às suas práticas sexuais e às suas práticas culturais (bastante resumidas, senão inexistentes
dada as condições inumanas em que viviam). A moral burguesa sempre atribui uma
responsabilidade individual sobre as condições de vida dos pobres. Como se a vontade
individual estivesse em condição de oferecer por si mesma a um trabalhador de 15 horas
diárias uma sapiência erudita, uma conduta impecável e um seio familiar equilibrado. Os
rituais de sacrifício no capitalismo são cruéis porque a morte é oferecida aos poucos e os
sacrificados não sabem que estão sendo oferecidos. O capitalismo também faz surgir no
homem a necessidade de aplacar a percepção de seus sentidos. A felicidade é uma sensação,
um rito sensorial, que os sentidos aplacados precisam receber em quantidade. A partir do
capitalismo e mais especificamente da Revolução Industrial, que institucionaliza o trabalho
técnico em jornada de trabalho, o homem não reconhece nenhuma possibilidade de plenitude
– não mais por uma questão de escassez ou pela vulnerabilidade material do período anterior,
como se poderia pensar, mas pela concentração de todos os bens produzidos socialmente pela
propriedade privada. Daí o peso poético das palavras tristeza e felicidade que os românticos

vozes magníficas e os timbres mais ovacionados pelo publico dos grandes teatros dificilmente saíram de classes
mais populares, como foi possível no século XX para nomes singulares, como Maria Callas e Kathleen Battle.
12 Engels analisa, através de uma descrição minuciosa, as condições de vida nas grandes cidades no
século XIX, partindo do modelo inglês; em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra.

29

tanto adoram. A arte perpassa a vida dos seres humanos como uma promessa de liberdade,
uma liberdade prometida nas revoluções burguesas e que jamais se cumpriu.

É muito constante nos dias modernos uma divisão sisuda entre música erudita e
música popular, como se – atribuídas de expressão humana – elas se enfezassem mutuamente
uma diante da outra, como opostas. Isso parece motivo para curiosidade. Música erudita
sempre foi música erudita, música de elite? Canção Popular sempre foi música de massa, de
gente pobre? Essas definições sempre foram opostas?

O homem europeu coloniza os povos originários com todos os seus sentidos, e toda
sua razão voltada para técnica e para a ciência como verdade absoluta – uma verdade que
faria dele o topo da evolução humana. Isso nos séculos XVIII e XIX produz encontros e
contradições bastante notáveis no cenário cultural do Brasil. A música que uma massa branca
considera como arte, a música que crioulos e caboclos cantam para falar da vida se encontram
por aqui e em certos tempos dão-se as mãos, inconsciente das fronteiras dos homens e suas
classes.

Para Adorno (1999) a música popular (de massa) no século XX, na sua forma “hit”
(estandardizada), é uma forma de massificação da regressão dos sentidos, partindo de uma
análise sistemática da criação estética do século XX como um produto de relações societárias
exclusivas do capitalismo. Adorno observa de dentro da maior potência econômica de sua
época (e da nossa) o estouro de uma indústria de entretenimento que soube perceber a
potencialidade de comercializar as atividades culturais e de lazer dos trabalhadores, com
potencialidades psicologizantes bastante específicas do fetichismo. E analisa a repercussão e
consequência da música de massa engatilhada pelos EUA na Europa – onde Mozart, que para
nós é muito erudito, é reconhecido como um grande compositor popular.

A América possui uma peculiaridade que os europeus desconheciam nas suas formas
musicais difundidas, a miscigenação sonora – que vai além de sotaques e ritmos, mas
miscigenação, inclusive, na biologia vocal. Os EUA transcendem as imitações do estilo
europeu, misturando tendências africanas com o rigor técnico, que virou jazz e o jazz
provocava nas massas um forte sentimento de identificação por ser uma forma oriunda de
suas práticas e de suas condições de existência. Se o jazz agita as massas, a indústria tem nele
uma possibilidade de consumo promissora, assim como o cinema é promissor em agitar as

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massas por causar uma identificação com “a imagem da vida real”. No processo de
mercantilização, se retira da mercadoria a qualidade que a distingue por seu valor de uso.
Todas as mercadorias são iguais. Mais que uma afirmação econômico-filosófica de Marx, esta
é uma verdade bastante estética, embora haja um tensionamento entre valores (abstrato e
concreto, igual e específico) que o capital precisa resolver na roupagem de suas mercadorias,
para fomentar a opção de gosto, e de escolha. Adorno entende esse movimento de inovação na
música a partir da Indústria Cultural, como um atrativo sensorial que incita “o desejo de
imitar e participar” pelo endeusamento de estilos, semelhante à atração infantil pelo
multicolor. Nesse paralelo, Adorno acredita que essa relação de encantamento é retomada na
música contemporânea.

Se Adorno tem como norte a formação da música de massa na Europa como um
produto do fetichismo na música, a nossa música popular perpassa outras determinações até
poder encontrar-se com essa perspectiva no Brasil. Isto porque a formação cultural brasileira é
nascida de muitos povos originários, uma verdadeira síntese de formas que produziram
estéticas inteiramente peculiares, que não poderiam de maneira nenhuma deixar de ser
consideradas eruditas e nem poderiam deixar de ser reconhecidas como populares; até a
globalização homogeneizadora da década de 70.

A pretensão do próximo capítulo é justamente a de discutir os conceitos que permeiam
a canção popular brasileira e as contradições na cisão entre as escolas a partir do marco
referencial da década de 70, entendido aqui como a data ícone da consolidação da Indústria
Cultural e de uma música de massa aterradora às criações singulares produzidas no Brasil,
anterior ao estouro da internacionalização na composição das formas populares.

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2. O FETICHE DA DIFERENÇA NO PAÍS DOS DIFERENTES

2.1 Bem me quer, mal me quer… A civilização, a violência e a formação.

No oceano que esculpe as rochas onde moras,
Uma terra enigmática apareceu, é o que contam;
Os homens a consideraram uma região de luz e descanso,
E a chamaram de O’Brazil, a ilha dos Bem-Aventurados.

Ano após ano, na margem azul do oceano,
A linda aparição se revelava encantadora e suave;
Nuvens douradas encortinavam o mar onde ela se encontrava,

Parecia um Éden, distante, muito distante.
(Gerald Griffin).

A formação social brasileira, sua conformação mestiça, feita do sangue de muitos
povos e forçada pela colonização, nos faz herdeiros de mais que um sotaque de muitos
sotaques, mas também de muitos timbres e ritmos. Nossa vida nacional tem como dorsal a
violência de seu nascimento13. Por essa razão, procura-se olhar o Brasil pela raiz da
colonização, considerando as particularidades de sua existência. Tal como a formação social,
também a arte com todas as influências que recebe dos colonizadores e, a posteriori, da
globalização, não poderia ser chamada de pura. Portanto, não pode ser entendida sob um olhar
purista. Nossa arte possui muito de uma estética singular complexa no que se refere aos
símbolos da identidade cultural nascida de uma sociabilidade meandrosa e original.

O berço europeu fundiu seu espírito aos da gente encontrada aqui (os que
sobreviveram à escravização, pelo menos) e da gente trazida para cá, de modo a propiciar
verdadeiras confusões e barbarismos sociais nos períodos subsequentes do Brasil República e
do Brasil desenvolvimentista, quando se torna essencial uma identidade nacional, consolidada
a partir de uma necessidade de firmar espaço para um mercado interno. Por espírito entenda-
se o conjunto simbólico não apenas de hábitos, mas de racionalidade escravocrata do século

13 A violência é parte constitutiva do processo de acumulação primitiva, e base fundante do próprio
capitalismo. No Brasil, país periférico de colonização, a tendência entra em estado de permanência em larga
escala, num processo de continuidade e agravamento. Vide o extermínio à população negra supervisionado pela
máquina do Estado.

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XVI, imbuída de uma base fincada na lógica do lucro. Considerando a posição de Caio Prado
Jr. (2006), a escravidão no Brasil teve a função de servir ao capitalismo comercial europeu e
enquanto nascedouro de uma civilização a acumulação primitiva não pode ser entendida como
uma fase, como na via clássica, mas base estruturante da formação social particular do Brasil
e, com suas distinções, da América Latina. O que é já muito debatido no meio crítico (a
formação social brasileira) tem importância ímpar para que a compreensão dos processos
particulares do Brasil não pareça começar sempre do zero, partindo de fórmulas históricas
rígidas para as teorias, ou de fatos isolados, quanto mais as características de uma sociedade
plenamente capitalista se coloque em crise com a formação do país.

O que, no caos de uma miscigenação muito plural de região para região, eram padrões
forçosos de uma elite branca tentando reproduzir um modo de vida incabível, depois se
dissemina em uma cadeia infinita de ação, reação e estranhamento; e tem, quinhentos anos
depois da apropriação desse território, uma continuidade histórica. A teia de adequações que
permitiram a naturalização das chacinas e apropriações ocorre aqui como em outros episódios
da história, onde a experiência cristã foi elementar para a disseminação de suas regras e
conjuntos de normas morais a serem aceitos e seguidos. Para além da força, o poder da Igreja
ajustou um método de apropriação de conteúdos a sua essência, ritualizando formas familiares
aos pagãos, a fim de que aparentassem verossimilhança mínima ao lugar-comum de cada
povo; até que se transformem crenças e hábitos completamente. A Igreja possui uma
habilidade impressionante nesses jogos simbólicos, representativos, de transpor significado
sobre o símbolo. Não à toa tantos ritos pagãos foram inseridos nos rituais da Igreja Católica –
e tantos símbolos da Igreja Católica frequentam ritos pagãos. Não foi diferente na catequese
dos indígenas e no sincretismo fruto da escravidão. Em algumas regiões do Brasil a fusão
entre a crença branca e crença negra resultará em expressões de cultura popular como o
Bumba-Meu-Boi, no Maranhão, cuja toada possui tipologia de cantos indígenas e africanos
com conteúdo cheio de religiosidade idiossincrática.

Não se pode falar em desenvolvimento nacional sem pensar no que é esta persona
brasileira forjada nos moldes de uma evolução cujo potencial destrutivo está imbricado aos
termos do progresso – que é um símbolo da religião oculta do capitalismo. Autores como
Sérgio Buarque de Holanda (1995) e Marildo Menegat (2003) chamam atenção ao sujeito
estranhado que a civilização europeia produz e que sofre alterações nos padrões de

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comportamento a cada novo arco do capital, sem, no entanto, vislumbrar a possibilidade de
rompimento com a essência de sua gênese, a qual alguns pensadores já observam criticamente
como indicativos sintomáticos da barbárie. O primeiro se preocupa em entender as raízes
brasileiras desde o colonizador e nos oferece a interessantíssima tese sobre o homem cordial
(HOLANDA, 1995), que parece descrever tão bem o que se tornou o personagem cotidiano, e
real, do brasileiro. Embora o manto da cordialidade se torne mais macabro nesse período, para
pensar o Brasil, nesses marcos, Sérgio Buarque fala sobre o homem fruto de uma colonização
violenta, que apesar de ter seu eixo em relações comerciais (acumulação primitiva) segue uma
mentalidade diferente na sua vida pública e no seu comportamento social. Já o segundo, na
introdução de Depois do Fim do mundo: a crise da modernidade e a barbárie (MENEGAT,
2003), chama atenção para o que seriam momentos teóricos chave para compreensão do
conceito de barbárie, de modo historicamente determinado: 1– a observação Kantiana da
presença de sinais de barbárie restantes ainda do passado e que descolada de uma razão
fundamentada na prática possuiria um potencial de regresso aos “traumas do passado”. Kant
elabora este pensamento na proposição de que a forma prática para escapar desse regresso é
garantir a cada indivíduo o exercício do uso público da razão, da sua autonomia e a atividade
plena da vida social, aposta essa a que Kant dá o nome de “maioridade da razão”. 2 – a
contribuição crítica de Marx e Engels no que eles chamaram de “excesso de civilização”
(apud MENEGAT, idem.), indicando a barbárie como um “olho à espreita” e que somente
pode ser combatida se o pensamento crítico (a filosofia, nos dizeres do autor) for capaz de
realizar uma leitura interpretativa do mundo para que este pudesse ser transformado através de
uma práxis transformadora, resolvendo o problema de concretização da maioridade da razão.
3 – e, por fim, os estudos frankfurtianos, mais precisamente Adorno e Horkheimer, sobre o
deslocamento da barbárie que passa de um olho atento a um estágio vigente, progressivo e
destrutivo.

Este caminho teórico, conduzido por Menegat, ajuda na escolha processual feita no
capítulo anterior, breve e ainda inicial, da inversão dos sentidos em que a humanidade se
acomete no modelo de produção capitalista, na tentativa de destacar o comportamento social
em cada situação histórica em que o significado de “primitivo” e “bárbaro” se modifica,
juntamente à consciência acerca da vida social. Em especial os estudos de Adorno são
fundamentais para pensar a relação íntima entre a racionalidade iluminista (a racionalidade

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burguesa) e a tendência para a barbárie, no que diz respeito à regressão dos sentidos –
portanto, se considera aqui um modo de percepção estética – por meio da razão e por meio
das condições objetivas de existência.

A colonização do Brasil se deu no marco de acumulação primitiva, na fase de gestação
de um modelo baseado na produção de valor, obedecia, dessa maneira, a uma necessidade de
expansão e exploração de novas fronteiras e capacidades, especialmente no que diz respeito à
matéria-prima. A violência dessa necessidade deslocou modos de vida na rota de navegação e
expansão de fronteiras, pois esses povos se adequavam a sua forma de sociabilidade,
consoados entre suas atividades produtivas e o desenvolvimento de suas culturas. Tal
violência a outros povos e modelos de sociedade é um indicador dos muitos processos de
violência necessários para o desenvolvimento do capitalismo, já no seu ponto de partida – um
dos pilares mais elementares de crítica a essa lógica está justamente na continuidade
ininterrupta da violência, seja pela relação de exploração intrínseca ao trabalho, seja pela
dominação e execução de um segmento dominante sobre outro.

Ao atrelarem a vida dos povos à produtividade, os colonizadores impuseram
a necessidade do excedente direcionado aos objetivos mercantis e da
produção em massa, ou seja, iniciou-se um processo que culminará na
inviabilidade da produção para a subsistência mantida como marginalização
do homem livre sem terra e dos escravos alforriados no contexto de uma
sociedade ainda escravocrata. Dentre outros elementos, inviabilizou-se
paulatinamente a expansão do artesanato indígena como forma criativa
integrada ao sistema cultural dos povos originários (MURAD, ano 2013b
pag. 88)

O processo de coletivização dos meios, das formas e do conhecimento foi
interrompido no Brasil pela acumulação primitiva característica da época da colonização.
Primeiro, e mais violentamente, pelo condicionamento do trabalho pela escravidão e depois
com a privatização da terra, num país agrário. Esta primeira é fundante para a formação das
elites do país, pela via “não clássica” e pela configuração da divisão do trabalho, e mais, é
fundamental para a formação cultural de comportamentos dentro dos diferentes níveis de
segmentos econômicos com a formação das cidades e de um confuso meio urbano. Por
exemplo, os títulos de nobreza e sentimento de grandeza quando transmutados para os títulos
e exercícios das profissões; esta tendência começa com o assalariamento dos escravos
“libertos” pela Lei Áurea e da consequente inserção na divisão do trabalho. Sobre isso,
Buarque aponta:

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Um dos efeitos da improvisação quase forçada de uma espécie de burguesia
urbana no Brasil está em que certas atitudes peculiares, até então, ao
patriciado rural logo se tornaram comuns a todas as classes como norma de
conduta. Estereotipada por longos anos de vida rural, a mentalidade da casa
grande invadiu as cidades e conquistou todas as profissões, sem exceção das
mais humildes. (HOLANDA, 1995, pág. 87)
A força da civilização europeia vai produzir aqui um tipo de homem cortês, passivo,
receptivo, porém, profundamente violento; diante de qualquer possibilidade de inversão de
lados, o Homem Cordial, de Sérgio Buarque, definido por ele como um sujeito que fará da
cordialidade e da polidez uma forma de sobrevivência, pode ser tão mais bárbaro e cruel
quanto qualquer senhor, patrão, feitor. A própria violência da colonização e a violência de um
mundo de trabalho estranhado cria uma violência de sujeito humano que a ordem não
racionaliza e que, caso não disponha de modos de se utilizar dela, poderá incutir num caos
irremediável para sua própria sustentação. Este homem cortês brasileiro que, como o redentor,
parece estar sempre de braços abertos, tem uma facilidade tamanha em aceitar e incorporar
aquilo que vem de fora, mas possui uma relação interna com sua identidade brasileira de amor
e ódio. Buarque afirma que

(…) no “homem cordial”, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira
libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si
próprio em todas as circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão com os
outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, periférica, que no
brasileiro (…) tende a ser a que mais importa. Ela é antes um viver nos outros.

(HOLANDA, 1995, p.147.)

É, sempre, importante ressaltar que o processo em curso no capitalismo se difere de
episódios anteriores da história, no que se refere à dominação, pela necessidade de produção e
acúmulo de riquezas e não apenas por domínio de territórios e títulos – o próprio território se
torna mercadoria com a passagem para o capitalismo. De maneira semelhante, no
enraizamento de determinado modelo produtivo, de um modelo de sociabilidade, nenhum
deles se constrói a partir do nada, sem antes apreender e se construir de acúmulos de
experiências já vividas em sociedade. A desconstrução de um modelo também parte da
premissa de destruir o insustentável e construir, a partir de uma crítica aprofundada, uma
prática capaz de reunir os elementos impulsionadores da criação do novo. Portanto, as novas
formas que fizeram do capitalismo um movimento revolucionário trazem consigo uma imensa

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sobrecarga histórica de experiências no campo dos símbolos, do pensamento e da dominação.
O trato que o capitalismo dá à cultura, e sua inconsequente manipulação, vem de uma síntese
dessas formas anteriores – considerando, inclusive, que nem todas as premissas anteriores
foram derrubadas.

O choque moral e cultural que os europeus tiveram ao se deparar perante uma relação
totalmente adversa com o tempo, com o corpo, com a atividade produtiva, com a qual os
portugueses estavam acostumados com a própria natureza em uma estrutura social
relativamente simples, apesar de organizada, não poderia ser assimilado como uma diferença
aceitável. A disparidade entre os mundos levaria à subsunção de um pelo outro pela
intolerância que o espírito da civilização burguesa tem pelo “o outro”.

O colonizador não considerava uma razão palatável respeitar os povos que, por aqui e
acolá, “descobriram” em suas viagens, porque era um acumulador de uma série de
conhecimentos que propiciaram o desenvolvimento de métodos, forças produtivas e códigos
que não cabiam no modo, relativamente simples, como esses povos se estruturavam – no
sentido do que esses povos consideravam essencial para a existência, para a reprodução da sua
vida social. Os portugueses não viam naquele povo apenas uma diferença cultural, viam
regressão, ausência de desenvolvimento – “desenvolvimento” como parte constitutiva do
conhecimento. Num plano superficial, massacrar indígenas não se configurava um ato
desumano uma vez que não eram, exatamente, seus semelhantes. Aqui, a contradição desta
prática com o que a racionalidade cristã propunha para a criação do mundo, onde todos seriam
filhos de deus, não entra em choque com a violência da colonização. Esta noção é importante
para reparar como na história o uso da violência como meio para o progresso sempre
encontrou na teoria da diferença um cenário perfeito para justificar o injustificável, e mesmo
nela, a mais misericordiosa lei religiosa de compaixão pelo próximo, a ideia do
desenvolvimento de um estado único de espírito já está presente: aos pagãos todo tipo de
castigo será outorgado por deus e pelos seus representantes na terra caso não se aceite a
verdade do Cristo – o único. O perdão de deus apenas pode ser dado aos inocentes que não
conhecem a palavra. Mas, aos que aprendem e optam pela negação, a estes será outorgada
toda a fúria e castigo – o desaparecimento. No que diz respeito ao ethos da civilização
capitalista, o culto religioso ocorre sem a presença anunciada de um deus e sem o bônus do

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perdão aos inocentes, uma vez que sua expansão gera a concretização do estado único de
espírito – o fetiche em suas mais variadas abrangências.

Podemos também chegar à noção de que o poder implícito na dominação de um povo
sobre outro, através de níveis de civilidade, é um padrão de comportamento tendencioso à
lógica deste modelo de sociabilidade, desde sua infância. No seu estágio plenamente
desenvolvido e globalizado, tal lógica não encontra um problema moral em continuar o
massacre iniciado na colonização, inclusive com a complacência do senso comum.

Nenhuma noção de direitos humanos, conceito desenvolvido pelas ideias
revolucionárias dos burgueses, e nenhuma dívida histórica é capaz de resguardar,
efetivamente, comunidades tradicionais da necessidade produtiva do capital, ainda que haja
processos de resistência. É assombroso que ainda, em plena ascensão dos diversos segmentos
e movimentos sociais e das deliberações sobre a liberdade, tendo a humanidade conhecido e
aprofundado conceitos e experiências revolucionárias, não se julgue ainda como inadmissível
o ataque aos povos – sejam os marginalizados urbanos ou segmentos tradicionais. De igual
maneira, o senso comum apazigua no silêncio os apontamentos sobre a capacidade de
sustentação do planeta às ações humanas e o perigo iminente para as condições de
sobrevivência da humanidade ante este esgotamento, uma vez que também não são fatos que
suscitem uma recusa pública ao modelo de sociabilidade responsável pelo desgaste. Ora, se
este é o lugar onde vivemos e onde construímos nosso ser social, por que calamos?

O Brasil, como território-nação, nasce já da exploração exaustiva de recursos naturais,
e a continuidade disso é progressiva, em contradição aos gritos de alerta.

No campo das tendências: excluir o diferente se tornou parte fundante naturalizada
socialmente, inclusive, e mais gravemente, entre os segmentos das classes subalternas. E, com
efeito, excluir violentamente. Mesmo o mais crítico destes segmentos corre o risco, quase
iminente, de excluir, em termo de pensamento e forma, aquilo que difere de suas concepções
e práticas estabelecidas. O que pode inviabilizar ou empobrecer o cultivo das expressões da
cultura no que seria, para os segmentos críticos, o nascedouro de uma cultura voltada para a
emancipação humana.

Como a história, enquanto processo, nos confere a tarefa de olhar para as experiências
produzidas como mediação entre ciclos contraditórios, os espaços de ruptura são espaços

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potentes e passíveis de construção, mas ao se fazer isso através de uma intervenção consciente
é preciso ter cuidado para não repetir na crítica as mesmas fórmulas usadas pelo fator da
ruptura. É preciso ter a sabedoria de que uma cultura diferente da estabelecida precisa ter o ser
humano como objeto de alcance. E o ser humano não se descola dos processos coletivos. É
um desafio dessa “atenção ao coletivo” retomar a unidade da arte com as atividades
produtivas, de modo que sua expressão artística da capacidade teleológica como processo
criativo de satisfação das necessidades em correlação com a natureza, de modo que a
subjetividade humana na arte possa ser uma consequência consciente da vida social – no seu
meio e modo de reprodução da existência; É preciso que os processos coletivos assegurem a
socialização do que foi produzido pela humanidade, e nisso, é preciso conceber as diferenças
no que elas têm de revolucionárias. O conhecimento precisa ser libertado das engrenagens, o
conhecimento precisa compor o pensamento e estar ao alcance da capacidade criativa,
precisaria pertencer efetivamente à subjetividade para fortalecer sua capacidade de alcance
crítico.

É fundamental ter consciência de que o ataque às diferenças não é um ataque aberto e
aleatório, pelo contrário. A diferença ganhou seu altar no mercado e na formação do senso
comum mais fortemente nos anos do desenvolvimento industrial acelerado em países
periféricos; ela também configura a intricada rede do fetiche das mercadorias. A liberdade de
escolha só é possível no campo da indústria se existe a múltipla possibilidade das opções, se
existe o estímulo pelo ato de escolher, de ter (para ser). Com a intensificação da produção, do
consumo, da concorrência e da tendência de morte rápida à própria tendência entre as
mercadorias, faz com que se exija do mercado um apelo ao “estilo próprio”, à visão individual
de mundo através de padrões de estética e comportamento. A “diferença” aqui é também uma
“sutileza metafísica” (MARX, 2012), porque dissimula uma relação muito mais complexa de
seu significado real – a diferença é nada mais que uma fachada distinta para uma mesma
racionalidade e uma forma única de vida social, portanto, forma única de consciência. Por
essa razão, é importante que essa definição esteja clara para o caminho desta reflexão. As
diferenças que configuram singularidades emancipadoras são aquelas que se produzem no
estranhamento, em espaços de sociabilidade que não acumulem à lógica formal e que
explicitem as suas contradições. Aqui, no caso deste trabalho, pensando a música como um

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parâmetro estético que reflete a realidade, observando-a como um comportamento complexo
no campo da diferença e da reificação.

Se, aqui, segue-se o pensamento de que a diferença nos marcos indústrias é também
um fetiche da mercadoria é de interesse colocá-la em contraste com a diferença produzida por
estranhamentos. O canto e as manifestações populares reservam uma importância gigantesca
no estudo da história do desenvolvimento capitalista no país por terem dois caminhos: a
música antes de uma identidade nacional propagada por veículos de comunicação de massa (a
música anterior ao espaço do mercado consumidor) quando era uma música para audição nos
espaços de sociabilidade e mediadora das relações e que, por causa da extensão territorial do
Brasil e da presença de raízes étnicas muito diferentes em cada localidade, tendia a ser
totalmente distinta de uma região para outra. E a música na consolidação de uma lógica de
entretenimento comercial, quando ela absorve as experiências dos centros produtivos
mundiais como modelo.

Aqui nos atemos à defesa, e em certo ponto desconstrução, de uma elaboração
bastante comum na tradição da esquerda brasileira e que pode se colocar neste caminho
reflexivo, como um impasse. O problema das classes na produção cultural no Brasil. Fora de
uma leitura sobre fetiche da mercadoria e consciência reificada, seria mais simples ser
determinista, e com razão, em relação à violência da massa branca burguesa brasileira e a
influência europeia na produção de símbolos culturais.

Tinhorão (2010) aponta em seu “História Social da Música Popular Brasileira” como
violenta a imposição branca da impostação lírica com todos os seus empavoamentos e
exageros, à moda italiana, em cantos populares, que das ruas, passam a frequentar partituras e
salões. Nessa obra, que é uma excelência de registro musical, ele também descreve o
momento em que barbeiros e demais segmentos desfavorecidos começam a desenvolver
pontos de encontro, na rua, entre duas formas de fazer música, a junção da tradição oral e
folclórica advinda dos “ex” escravos e a tradição erudita advinda elite branca. Em quaisquer
dos campos, esse encontro, nas ruas, nos botecos, nos soa fascinante. É nesse ponto onde a
definição de popular no Brasil é, num período histórico já extinto, completamente diferente da
concepção do popular de Adorno. Porque o popular aqui na verdade não se podia considerar
uma oposição ao erudito, já que compreende resquícios de formas sociais (africana e

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indígena) muito distintas da europeia e que só se poderia julgar erudito, ou não, sob critério
europeu.

Se vamos negar os moldes europeus (para roupas e música) vamos negar também a
forma europeia de pensar esse encontro e a própria definição de erudito para pensar estética.
Considerando o ataque às diferenças, a dominação através de níveis de civilidade e a crítica à
alienação e privatização capitalista dos meios produtivos e capacidades produzidas, não
poderíamos partir do mesmo critério de classificação que a massa branca historicamente usou
para se diferenciar dos pobres, para etiquetar produtos e consumidores. Concordando com
Tinhorão (idem), e com a esquerda, sobre todos os aspectos de violência que a elite burguesa
sempre impôs, e impõe, sob regência de uma lógica de desenvolvimento, aos povos e
expressões dos subjugados, o ódio que essa massa tem dos pobres, dos negros, dos
desapropriados – o ódio ao diferente.

A partir do momento em que essas raças dividem um mesmo espaço de sociabilidade
(cidades, estados, bairros, ruas, bares, ídolos, canais…), elas constroem (mesmo que sob o
teto da violência) o cerne de uma vida social, e é na vida social que se cria a função da
música, os padrões de comportamento observados nas produções culturais. Sejam nos salões
burgueses ou nos terreiros, a música de um país Imperial, por exemplo, era uma música feita
para a audição e para significação desses espaços sociais – salões, terreiros e ruas. Precisava
passar de mão em mão, de bar em bar, quem ouvia subia ou descia um tom, modificava uma
palavra ou adequava a impostação do canto de acordo com esses espaços. E, constantemente a
forma de um passava pela forma de outro.

Dos terreiros aos salões, dos salões aos terreiros, esse namoro entre estilos não seria
problemático sem o problema da estandardização (ADORNO, 2001) e da cultura do
embranquecimento. Esse encontro só se tornará problemático porque nossa história nacional
vem de um espaço de convívio social onde se forçam povos a seguirem uma rota padronizada
de existência. Se pensarmos nos momentos onde a teoria musical europeia adotada pela elite
se encontrou no canto negro e apresentou, os lundus, as marchinhas, as polcas, o samba e
pensássemos nisso dentro de uma forma social diferente, sem também o peso de pertencer a
um lado oposto da classe, é muito provável que o nosso comportamento em ralação ao erudito
fosse outro – muito mais ligado à socialização de processos de sínteses sociais. Esse é um
campo da diferença que o capitalismo não suporta, porque é inútil do ponto de vista produtivo

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do trabalho ou de se estabelecer padrões de gosto que exijam forma reflexivas de
identificação (seguindo, assim, sempre a mesmice da Indústria Cultural). E aqueles que
querem ir de encontro ao insuportável para a ordem, precisam aprender a acumular o
conhecimento que é da humanidade. A ordem não vê problema algum em tomá-los e servir-se
deles à vontade, nem de reduzi-los ao “tudo igual”; ela não faz isso apenas com a nossa
música, faz com a nossa humanidade, nossa subjetividade, justamente quando racionaliza
nosso conhecimento dos processos de produção coletiva deste mundo. Nenhuma música
erudita nasce de salões, ela pode ser refinada neles, pode ser moldada para eles, mas eis aqui
um campo de interlúdio, um campo vasto e muitas vezes nebuloso. Todo processo de
refinamento advém de um constructo social.

Numa apresentação de música medieval durante a Feira do Livro que acontece todos
os anos em São Luís, um músico na platéia, uma das personalidades mais populares da
música maranhense na capital, aprecia as performances de trovas portuguesas do século XII,
até que o trovador, no palco, pega um instrumento de percussão e situa a próxima canção – de
tradição oral. No instante seguinte, o amigo batuca junto com o grupo e cantarola exatamente
a mesma melodia: “eu conheço essa canção!” ele disse, e conhecia a outra e a seguinte, com
letras diferentes. O curioso disso é que são canções muito antigas ainda passadas de geração
em geração pelo culto das entidades nos terreiros e cuja proximidade de padrão melódico
poderia realmente ser a trova de um camponês português exaltando a Dom Sebastião.

No que se refere ao Brasil, esse encontro não pode ser ignorado ou simplesmente
qualificado como isto ou aquilo, pois pertence ao processo de formação, onde da violência ao
encontro produz alguma estética, e da estética produz uma capacidade de perpetuação que só
é possível porque se apega ao antigo princípio de coletivização da vida dos povos originários
e na resistência que esse modo de vida impulsionou historicamente nesses segmentos. Nem
mesmo a música europeia com seus requintes de erudição se constitui apenas nas experiências
europeias, tiveram sincretismo de instrumentos e padrões harmônicos incorporados da cultural
oriental, por exemplo, quando suas expedições alcançaram partes mais distantes do mundo.

Eduardo Coutinho, em Velhas histórias, memórias futuras, argui o sentido de tradição
na cultura popular, diferenciando tradição de tradicionalismo ele sugere: “(…) o
tradicionalismo pode ser pensado como uma espécie de formalismo, isto é, como apego a uma
forma cujo conteúdo, superado pelo desenvolvimento histórico, corresponde a uma classe que

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sobrevive ao seu destino.” (COUTINHO, 2011, pág. 30) enquanto que tradição seria “uma
articulação orgânica entre sujeito e objeto, entre povo e o seu patrimônio cultural” (ibidem,
pág.27). Uma experiência Maranhense interessante surge nos anos 70, com o LABORARTE,
com a organização de centros criativos que reuniam linguagens artísticas, estudo e folclore
para construção de uma música popular, engajada, mas regional, que desse conta das
expressões plurais existentes nas comunidades; neste que foi um estado tão famoso pela
erudição na música e nas letras.

Ele é rei
É Rei Sebastião
Quem desencantar o lençol
Vai abaixo o Maranhão
(Rei é Rei, tradição Oral)

Os barcos que ele merece
Pra sua marinha de guerra

Enfrentará a situação
Aguardando dia e hora
Pra mudar as coisas cá desse mundo.
(Os barcos, tradição oral)

2.2 – Concerto em quatro movimentos – a formação musical brasileira.

No item anterior, a intenção de distinguir os usos da terminologia “diferença” para
efeito de apreciação da cultura e efeitos de objeto de consumo tem certa importância para
introduzir os próximos vislumbres deste exercício. Imaginando este item como a um concerto
de música com quatro movimentos, teremos: I – Chiquinha Gonzaga (1847) ou A corte na

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roça; II – Elomar Figueira de Mello (1937) ou Incelença pra terra que o sol matou14; III – A
Noite do Espantalho ou Alceu Valença (1975) e IV – O Carcará e o Dente de Ouro. A
intenção por detrás deste concerto em letras é tentar captar a formação musical do Brasil no
que ela tem de singular, e mais, tal formação na periferia do país. O que todos esses
compositores têm em comum é uma origem marginalizada e uma música produzida de
contradições, estranhamentos e encontros. Portanto, uma música que expressa o som de nossa
formação social.

Segue-se então uma constituição breve em quatro partes de alguns momentos e
emblemas da formação musical brasileira, para, num momento posterior, pensar a música
popular maranhense nos marcos da história nacional.

I – A corte na roça.

Tinhorão (2010) escreve Chiquinha em seu História Social da Música Popular
Brasileira, como uma compositora que se adapta bem já às artimanhas da corrida para o
sucesso e até se refere a algumas de suas composições como fórmulas aprendidas de
composições que comprovadamente cairiam no gosto popular – como no caso de Ó, abre alas
que seria a base dos esforços posteriores da maestrina.

Talvez, considerando a formação erudita de Chiquinha Gonzaga e seu espaço de
inserção musical, não fosse certo colocá-la em lugar de destaque quando a canção dos
barbeiros15 certamente configura maior esplendor a uma proposta de estética popular
brasileira. Contudo, explica-se a escolha de seu nome para este movimento: em todo o livro
de Tinhorão, com o brilhantismo de seu registro, ela é a única mulher compositora, do
Segundo Reinado, a trabalhar como maestrina e ganhar reconhecimento no ramo e ter, sim,
música como profissão. Para época, tanto era problemático seu envolvimento com o meio,
como também que encarasse aquilo como trabalho e não para o divertimento do lar. Logo, ela
não era apenas compositora, mas parte de um segmento artístico que viveu um período de

14 I – Chiquinha Gonzaga, opereta A Corte na Roça; II – Elomar Figueira Mello, Inselença pra terra que o
sol matou; III – Alceu Valença, a noite do espantalho e IV – O Carcará e o dente de ouro.
15 A música de barbeiros surge na segunda metade do século XVIII como expressão de uma formação
urbana que soma a vivência de negro livres, mestiços e brancos num mesmo espaço de sociabilidade; produzindo
cultura.

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transições importantes para o cenário cultural do país, nesse sentido pensamos que sua música
tenha um lugar de importância pelas implicações sintomáticas que a sua composição assume,
que será para o Brasil a virada do século XIX para o século XX, mesmo que mais
marcadamente branca e de salão, ela já indica através das relações comerciais uma lógica
embrionária à consolidação da Indústria Cultural no Brasil, mais especificamente o que o
fetichismo na música – enquanto mercadoria – fará com a música popular brasileira e a lógica
do que será a formação de uma cultura de massa em nível nacional.

Além disso, Chiquinha teve iniciativa de incrementar sua música de origem erudita
com ritmos populares, se familiarizou ao choro (que já é fruto do cruzamento entre o erudito e
o popular), às marchinhas, o que faz da música de salão um passo à frente, ainda que pequeno,
para não sermos apenas uma cópia torta das tendências europeias – mesmo que esta fosse a
intenção. E ao mesmo tempo, a esperteza de Chiquinha se tornará uma estratégia comum
utilizada muitas vezes, com intencionalidades diferentes, ao longo da história musical do país
– com adequações feitas tanto por vanguardistas, quanto pela Indústria Cultural. Aqui o
conflito que Schwarz expõe para a nossa literatura também será vivido na música: “Noutras
palavras, o padrão para interpretar o país era o do capitalismo dos países desenvolvidos, e as
nossas diferenças em relação a eles eram a nossa diminuição, que seria conveniente superar
(…) o que éramos era uma diferença em relação ao que não éramos, diferença essa que
deveria desaparecer o mais rapidamente possível.” (SCHWARZ, 1987, pág. 162).

Ao longo da história do país, na constituição de uma identidade nacional, o sentimento
de inferioridade em relação “ao que não éramos”, sempre fez da nossa compreensão acerca da
nossa singularidade muito tímida, quiçá acanhada. E esse foi um caminho trilhado por
intelectuais, artistas, militantes, políticos, pelo conjunto da vida civil – às vezes criticado,
muitas vezes retomado.

O I movimento, então, é anterior à formação de massas, mas cheio da presença de
músicas populares – as de salão e as de terreiro. Como, no Brasil, queimamos etapas e
forçamos a saída de um cenário puramente rural para uma taciturna e esquisita vida urbana, o
Romantismo aqui, aprendido de lá pelo coração nostálgico dos poetas em crise de existência
num mundo revolucionado pela indústria, tem como característica principal o saudosismo do
campo e da natureza e uma compleição ao amor trágico – nasce aí uma tradição
sentimentalista no Brasil que na era do desenvolvimentismo deixará marcas. Nasce também

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uma vida noturna mais avivada e mais frequente, pontos de encontro para poetas e musicistas
– que também pretendiam ser como os da Europa. Sobre isso, Tinhorão registra:

De fato, se a música popular, como toda criação cultural dirigida a atender
expectativas sociais, corresponde na verdade a uma necessidade, seria
preciso esperar até a segunda metade do século XVIII para que, em função
da súbita dinamização do comércio interno provocada pela corrida do ouro e
dos diamantes, aparecesse em Salvador e no Rio de Janeiro uma maioria
urbana de escravos africanos, crioulos forros, trabalhadores, soldados,
funcionários públicos, caixeiros, pequenos comerciantes, artesãos, vadios,
valentões e prostituas cujas relações (inclusive na área das diversões) era
preciso organizar.” (TINHORÃO, 2010, pág. 164.)
Como nos é dado saber, a elite sempre teve problemas em ignorar os batuques da
“gente de cor” e isso apenas se acirra com o espaço urbano recém-criado, com a aparição das
profissões. Não tendo como se esconder deles, nem mesmo com as perseguições, proibições e
marginalizações, e tendo esses ritmos os seus encantos e sua sedução, logo está feita a cama
das adequações e do antigo caminho que a música popular tradicionalmente percorre até
preencher os salões, e dos salões invadir os terreiros. Um adendo: já aqui, no cenário urbano
do final século XIX, início do século XX, começam a aparecer formas de organização, ainda
muito tímidas e, até mesmo, inconsequentes, sem elaboração e pouca consciência, mais
condizentes com uma recente divisão do trabalho que resultariam, mais tarde, numa série de
necessidades próprias ao conjunto dos trabalhadores, tais como associações para reivindicação
de direitos – a própria Chiquinha Gonzaga se engajou em lutas pelo reconhecimento dos
direitos de autoria, claro que ainda muito iniciais – o que, também, me parece um passo
importante de demarcação histórica e da própria formação urbana no que concerne a sua
mudança de sentido, ou seja: demarcação de autoria significa assegurar de uma vez por todas
a passagem das tradições orais e escritas (partituras, no caso da música), dos espaços de
criação coletiva ou de composição para audição de minorias, para ressaltar os nomes
individuais de compositores profissionais em música, o que diferencia a produção e recepção
da música como trabalho, o que demarca uma relação distinta entre artista e público, uma
separação entre música de trabalho e trabalho musical, e a relação comercial entre a música e
o sucesso.

Não se pode ainda falar em sequelas, ou aspectos regressivos da Indústria Cultural,
porque esse é um movimento restrito a uma parcela diminuta da realidade brasileira que é a
vida urbana e sem alcance nacional – como sabemos, a formação musical no Brasil tem uma

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dimensão territorial gigantesca e isso nos permitiu um longo intervalo de tempo para outros
nascedouros importantes no interior do país. O que nos levará em breve ao II movimento.

Chiquinha viveu num período histórico de acontecimentos intensos no país. A guerra
contra o Paraguai, a sanção da Lei do Ventre Livre, a sanção da Lei Áurea, a Proclamação da
República e a declaração da primeira Constituição republicana constam como marcos
históricos coincidentes com sua biografia; os passos que o Brasil começa a dar rumo a uma
série de ajustes políticos que pretendia seguir o liberalismo já ativo nos EUA, há muito,
podem ser percebidos em sua trajetória como maestrina, mas não em sua música.

Chiquinha estava bastante conectada com o que a música precisava ter para ser
entretenimento e contentamento para um público maior. Ela foi, desse modo, uma
compositora que viveu influências de muitos movimentos musicais que começam a
desenvolver uma lógica de cultura de massa, conforme o país adota mecanismos de mercado
nos padrões internacionais. Mas ela foi, também, uma personalidade que dialogou sua
produção musical entre o estrangeiro e nacional e pode ver de perto o nascimento de estilos
mais demarcadamente brasileiros, como o choro16. Ela transita entre dois cenários da música
nos centros urbanos do Brasil: o momento anterior às compilações, onde a divulgação dos
trabalhos musicais dependia da entrega das partituras de mão em mão ou da popularidade das
canções e letras através da aprovação dos distintos públicos17 ; e o momento em que as rádios
e o cinema começam a servir de entretenimento e mediação entre as relações.

A ligação do artista com a produção musical ganha novas possibilidades com a
capacidade de gravação e compilação das músicas, alguns autores inclusive sustentam a tese
de que a Indústria Cultural se instala no Brasil a partir desse marco histórico, por julgarem
que os veículos de comunicação de massa são os propagadores de uma música feita para as
massas, mais voltada ao sucesso comercial. Eles podem ser os propagadores, mas, enquanto
tais, todo propagador obedece a uma lógica e a uma intenção, a intenção de mercantilização
absoluta da cultura não virá com o rádio; embora o rádio trabalhe para ela. Virá com o
momento em que o país entrar na sua corrida industrial mais expansiva e permanente – a

16 A exemplo do desenvolvimento nacional de singularidades, no ano da morte de Chiquinha, acontece o
primeiro desfile de escolas de samba em 1935. Acessado em 12/05/2016 às 15:32, disponível em
http://chiquinhagonzaga.com/wp/biografia/

17 Tinhorão descreve todos esses momentos musicais detalhadamente em obra já explicitada aqui.

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modernização de todos os segmentos produtivos e a exploração de polos periféricos. Neste, os
veículos de comunicação de massa serão não apenas propagadores, mas sustentadores.

Aqui, precisamos complicar mais o impasse e tentar aprofundar a reflexão– o que é
uma tarefa no mínimo difícil – através da seguinte pergunta: o que forma um caráter popular?
Colocamos a elite de fora, e tudo o que sobrar é popular? Juntamos todos os moribundos,
todos os oprimidos, todos os expropriados e formamos então o time dos populares? Resposta
empática, mas incompleta. Porque assim como a elite não consegue fugir dos batuques, da cor
evidentemente mais brilhante e apimentada da pele negra, nem do calor descomunal do Brasil,
também os subalternizados não conseguem fugir da elite, pelo motivo óbvio da retenção das
forças produtivas, pelo motivo menos óbvio que é divisão de um mesmo teto de sociabilidade,
estabelecida pela divisão do trabalho e mediada pelo mercado, e o mais afrontoso dos
motivos: a colonização nos legou seu espírito de baronia, de forma que a elite se transforma
num ideal coletivo. Constantemente os subalternos buscam ser como a elite – num movimento
inconsciente, diria até inocente, mas frequente. Essa é, para a estética, a melhor parte do I
movimento, o estranhamento.

Quando duas forças se chocam, o estrondo reverbera para os dois lados. O
enriquecimento da canção erudita pela música dos negros e mestiços (No caso de Chiquinha
Gonzaga e outros que história trará) e o tempero erudito em alguns “sotaques”18 fora dos
salões; são diferentes tipos de conhecimento se entrecruzando num mesmo solo. Então,
“brasileiramente”, tenta-se estender um pouco esse conceito, porque, afinal, se tem dois lados,
deve de haver o que seja popular para um e outro. O que é feito. O que é aceito. O que se
reproduz. À música dos barbeiros, tomando-a como primeiro exemplo, a música ícone de
transição do rural para o urbano, Tinhorão ressalta a formação semierudita (mais
marcadamente autodidata, pois tinham extrema habilidade com o ouvido) advinda da
formação musical religiosa combinando-se com a satisfação da espontaneidade que
caracterizava uma música feita pelo puro prazer da audição e descontração – e proporcionada
pelo tempo que a profissão concedia para o cultivo da música e da habilidade instrumental.

Se a elite é uma minoria, portanto, não se lhe confere o direito de ser popular, então
“popular” poderia se relacionar com aquilo que é da maioria? Saindo de termos quânticos,

18 No Maranhão chama-se de “sotaque” o tipo de instrumentalização utilizada nas toadas de bumba-meu-
boi, por exemplo: sotaque de matraca, sotaque de zabumba.

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popular se relacionaria com resistência? Com contradição? Seria popular uma tradição em
permanente luta por afirmação da produção e reprodução coletiva da vida e da cultura? Seria
“popular” um processo orgânico entre relações antagônicas (eruditismo europeu e cultura de
povos originários; civilização x coletivização da vida) que, no caso brasileiro, nem podem
estar juntas e nem podem se separar completamente por fazerem parte daquela cadeia de ação,
reação e estranhamento, mencionada anteriormente? Se, sabemos, o Brasil teve um
desenvolvimento desigual em suas regiões, e, se levou algum tempo até que se estabelecesse
um vínculo de padronização geral, globalizada e acelerada, então o popular pode ser essa
mediação entre o homem, o meio e a contradição em seus diferentes ciclos e suas variadas
formas de exploração, exclusão e constructo social.

Popular no Brasil pode ser entendido, poeticamente falando, como a herança dos
povos originais, os índios, e dos escravos, ambos com suas músicas de trabalho. E com isso se
quer dizer que não pode ser chamada de popular a cultura que não traz em si esse traço de
produção e reprodução coletiva. Se for assim, esse popular é diferente, então, de massa?

A perspectiva adotada neste trabalho pressupõe que sim, cultura popular é diferente de
cultura de massa. A cultura de massa nem racionaliza a separação entre a elite e o subalterno,
ela difunde padrões de consumo tão homogêneos que, tanto a elite quanto a classe subalterna,
dependem de segui-los para que se efetive a sensação de pertencimento à vida social – ainda
que tal homogeneização apresente nichos distintos de mercado, o que caracteriza a sensação
de diversidade necessária aos aparelhos comerciais. A cultura de massa é a inversão de
sentidos em curso na humanidade desde o aprofundamento da tendência regressiva que o
fetiche da mercadoria impõe à cultura, ainda mais sombria na padronização no âmbito global.
Se a humanidade já conhecia desde os gregos o lema de “morte ao diferente”, a lógica
mercantil acentuada pelas revoluções industriais é ainda mais voraz, de forma que nenhum
dos lados das classes antagônicas tem condições efetivas de perceber cotidianamente tudo
aquilo que perdeu para a globalização, ao menos em relação à cultura.

Dito isso, vamos passar ao caráter mais revolucionário de ser popular. Se estivermos
assumindo o popular como um constructo social advindo da contradição permanente na
reprodução da vida cotidiana, assim, seus processos de resistência e a perpetuação de formas e
da memória viva de culturas, que literalmente se arrastam entre o esquecimento e a
renovação, então vamos dizer que o popular é tudo aquilo que vem como resquícios de

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processos coletivos – pertencentes, portanto, a humanidade.

Reconhecemos o poder da contradição quando assinalamos que a cultura popular tem
sua formação galgada na produção de arte e de comportamentos sociais baseada na
experiência proporcionada pelo meio, enquanto que a erudita é uma síntese de processos
sociais (que não escapa à construção da própria cultura popular), mas frequentemente retida,
como todo o seu aporte de recursos e linguagens acumuladas, refinadas e privatizadas.
Schwarz (1987) sustenta sobre a literatura brasileira a hipótese de que a experiência da vida
moderna por si seria arcabouço suficiente para grandes obras literárias, trago esta noção para
o diálogo com o meio de reprodução da vida. O nordestino analfabeto, de origem
afrodescendente, por vezes consegue ultrapassar a ausência da linguagem erudita através de
uma expressão coletiva da experiência cotidiana, seja pela arte ou mesmo pelos rituais
religiosos – e através dessas expressões coletivas surge a possibilidade do refinamento, que
pode ou não se concretizar. Isso no caso brasileiro e latino é diferente do caso europeu ou
norte-americano. Nossa diversidade musical teve espaço para variados modos de formação
estética pela abrangência de influências étnicas e pelo próprio ritmo do desenvolvimento
desigual e combinado no Brasil. E até que esse desenvolvimento chegasse a todos os cantos
do país, a margem para o nascimento de muitas expressões da cultura popular foi enorme. O
fato é que atualmente a apropriação do estudo erudito da música já é muito mais acessível e
até comum que no passado, a exemplo das escolas públicas de música, onde essa distinção
entre erudito e popular sofre, como é de se esperar, modificações significativas, mas não
profundas19.

Defender esse tipo de posição quanto ao popular requer uma expectativa muito maior
que reconhecer erudição às produções culturais regionais e das camadas subalternas, requer
fazer deste entendimento de popular uma alternativa ante a cultura de massa. Uma alternativa
ante a lógica fetichista do espetáculo. Uma alternativa de refinamento dos sentidos num
estágio em que já se fundem e confundem as diferenças e cada vez menos se tem espaço para
distinções.

19 Foi lançado esse ano o primeiro livro de partituras de Tambor de Crioula. Assim como se lançaram
livros de partitura para cantos do Divino numa parceria entre Laborart e Estudantes da EMEM.


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