MEC – MINSTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA
UFF – UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
ESS – ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL
SSN – DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL DE NITERÓI
CARLOS EDUARDO BELO DA SILVA
A VULNERABILIDADE MASCULINA À INFECÇÃO PELO VÍRUS HIV
Niterói
2017
MEC – MINSTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA
UFF – UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
ESS – ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL
SSN – DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL DE NITERÓI
A VULNERABILIDADE MASCULINA À INFECÇÃO PELO VÍRUS HIV
NITERÓI
2º SEMESTRE DE 2016
MEC – MINSTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA
UFF – UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
ESS – ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL
SSN – DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL DE NITERÓI
CARLOS EDUARDO BELO DA SILVA
A VULNERABILIDADE MASCULINA À INFECÇÃO PELO VÍRUS HIV
Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Departamento
de Serviço Social de Niterói da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de
Bacharel em Serviço Social.
Orientador: Profa. Me. Larissa Costa Murad
NITERÓI
2º SEMESTRE DE 2016
AGRADECIMENTOS
Agradeço a toda a minha família pelo suporte carinhoso e amigável em todos os
momentos de minha vida, em especial, agradecimentos sinceros ao meu irmão mais velho
Fábio Belo da Silva pelo apoio incondicional nas horas mais difíceis aparecendo em minha
jornada muito mais que um irmão e sim como um verdadeiro pai.
A todos os amigos, em especial ao meu companheiro Hamilton com quem divido
moradia, alegrias, tristezas e momentos de muita conversa e reflexão e que durante as
horas mais difíceis sempre foi o ombro amigo com quem pude contar.
A todos оs professores dо curso, quе foram tãо importantes nа minha vida
acadêmica е nо desenvolvimento dеstа monografia, em especial as professora Maria
Cristina, Scheila Nunes, Deise Nunes, João Bosco, Sônia Lúcio, Kátia Lima, Eblin Farage
e tantas outras...
É com muita alegria e sentimento de despedida que ofereço meus sinceros
agradecimentos aos professores dessa banca, Profa. Me. Larissa Costa Murad orientadora
desse trabalho, que durante este percurso contribuiu de forma extremamente parceira e
amigável com suas críticas e reflexões à respeito do tema trabalhado e como professora da
disciplina Ética e Serviço Social.
Ao Profo. Dr. Bruno pela disponibilidade e pelas amigáveis conversas e
contribuições como professor da disciplina Oficina do Conhecimento e, ao Profo. Dr.
Rafael Barros Vieira pelo seu companheirismo e contribuições acadêmicas durante um
semestre na disciplina Introdução ao Direito.
A todas as pessoas cоm quem convivi nessa Universidade, principalmente na
Faculdade Serviço Social, pois, a experiência de finalizar essa etapa de minha vida com a
produção de um trabalho acadêmico torna-se um amálgama de influências, sejam elas no
campo pessoal e/ou teórico.
Por fim agradeço a todos que de alguma forma colaboraram com o
desenvolvimento e finalização desse trabalho.
A todos, meu muito obrigado!
Streets of Philadelphia
I was bruised and battered
And I couldn't tell what I felt
I was unrecognizable to myself
I saw my reflection in a window
I didn't know my own face oh brother
Are you gonna leave me wastin' away
On the streets of Philadelphia
I walked the avenue till my legs felt like stone
I heard the voices of friends vanished and gone
At night I could hear the blood in my veins
Just as black and whispery as the rain
On the streets of Philadelphia
Ain't no angel gonna greet me
It's just you and I my friend
My clothes don't fit me no more
I walked a thousand miles
Just to slip the skin
The night has fallen, I'm lyin' awake
I can feel myself fadin' away
So receive me brother with your faithless kiss
Or will we leave each other alone like this
On the streets of Philadelphia
(Bruce Springsteen)
RESUMO
A infecção pelo vírus HIV em homens é quase o dobro que em mulheres no somatório dos
oito últimos anos, principalmente, entre os jovens homossexuais, demonstrando assim que
conceitos de masculinidade geram vulnerabilidade nos homens ao vírus HIV e, portanto,
torna-se importante analisar e compreender que conceitos de masculinidade são esses e
como se constroem e como se legitimam entre os homens. Este trabalho apresenta uma
análise de conceitos de masculinidade socialmente construídos e enraizados por homens e
mulheres para avaliar os riscos que esses conceitos acarretam à saúde do homem e da
família e, apontar alguns desafios relacionados à prevenção e ao acolhimento dos homens
nos serviços de saúde. A pesquisa é baseada em análise bibliográfica e reflexões a partir de
filmes que abordam o tema. Verificou-se que os conceitos de masculinidade expõem os
homens aos riscos de contraírem doenças como AIDS e outras Infecções Sexualmente
Transmissíveis. A partir desses resultados podemos concluir que, embora o coquetel
distribuído gratuitamente na rede de saúde no Brasil seja fator importante na luta contra
epidemia de AIDS, o mesmo não representa a solução e muito menos a diminuição dos
casos de infecções pelo vírus HIV em homens. Também apontamos uma leitura crítica a
respeito da prevenção do vírus HIV e das formas que os serviços de saúde têm encontrado
para se chegar a esse público masculino.
Palavras chaves: Masculinidade, Vulnerabilidade, HIV/AIDS
ABSTRACT
HIV infection in men is almost double that of women in the sum of the last eigth years,
especially, among young gay men, thus demonstrating that concepts of masculinity
generate vulnerability of men to the HIV virus and, therefore, it is important to analyze and
understand concepts of masculinity are these and how to build and as if making among
men. This paper presents an analysis of concepts of masculinity are socially constructed
and planted by men and women to assess the risks that these concepts entail for human
health and the family and point out some challenges related to prevention and to the
reception of men in health services. The research is based on bibliographic analysis and
reflections from movies that address the topic. It was found that the concepts of
masculinity expose men to the risk of contracting diseases such as AIDS and other sexually
transmitted Infections. From these results we can conclude that, although the free cocktail
in Brazil's health network is an important factor in the fight against the AIDS epidemic, the
same is not the solution, much less the decrease of cases of HIV infections in men. Also
we take a critical reading regarding the prevention of the HIV virus and the ways that
health services have found to get that male audience.
Key words: Masculinity, Vulnerability, HIV/AIDS
LISTA DE SIGLAS
AIDS – sigla em iglês para Sindrome da Imunodeficiência Humana
AZT – Azidotimidina ou Zidovudina
APS – Atenção Primária a Saúde
BIS – Boletim do Instituto de Saúde
DST – Doença Sexualmente Transmissível
HIV - HIV é a sigla em inglês do vírus da imunodeficiência humana
IST – Infecção Sexualmente Transmissível
INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica e Notificações
PAISM – Política de Atenção Integral á Saúde da Mulher
PNAISH – Política Nacional de Atenção à Saúde Integral do Homem
PCAP – Pesquisa de Conhecimento, Atitudes e Práticas na População Brasileira
SINAN – Sistema Nacional de Agravos e Notificações
ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS
ONGs – Organizações Não Governamentais
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO…………………………...……...…………………….……………….......
.11Capítulo I – BREVE HISTÓRICO SOBRE SEXUALIDADE
Considerações.........................................................................................................................
.14 1.1.O surgimento das ―identidades sociais‖ uma questão de gênero
.....................................22
1.2.Vulnerabilidade masculina à infecção pelo vírus
HIV.......................................................29
Capítulo II – HISTÓRICO DO VÍRUS HIV E A EPIDEMIA DE AIDS
Considerações.........................................................................................................................
39
2.1. Principais enfrentamentos à epidemia de
AIDS................................................................39
2.2. Prevenção ao HIV/AIDS e políticas de atenção à saúde do
homem.................................51
CONSIDERAÇÕES
FINAIS.................................................................................................54
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................56
11
INTRODUÇÃO
Analisando o perfil dos usuários do Serviço Social da
I n s t i t u i ç ã o F i l a n t r ó p i c a C a s a M a r i a d e M a g d a l a 1, i n s t i t u i ç ã o e s s a
voltada para portadores de HIV/AIDS no município de Niterói, estado
do Rio de Janeiro, pudemos observar que, em sua grande maioria, os
usuários que buscam apoio referente ao HIV/AIDS são do sexo
feminino.
Os números recentes do Boletim Epidemiológico HIV – AIDS do
Ministério da Saúde - mostram que a grande maioria dos casos de
infecção pelo vírus HIV ocorre no sexo masculino segundo dados do
SINAN (Sistema Nacional de Agravos de Notificação) representando
um total de 61.904 novos casos e o grupo feminino 31.331 entre os
anos de 2007 e 2015.
Diante desses dados, veio a necessidade de pesquisar as formas
de acolhimento da população masculina adotadas pelos serviços de
saúde na prevenção à infecção pelo vírus HIV, visto que, atualmente,
essa parcela da população apresenta-se como grupo vulnerável à
epidemia quando comparamos o número de infectados entre sujeitos do
sexo masculino e feminino.
Faz se mister pesquisar sobre as políticas e programas adotados
na prevenção à infecção pelo vírus HIV em homens porque as
representações de masculinidade mostram-se historicamente
construídos e enraizados na sociedade, onde existe uma ―rigidez de
papéis e condutas nas relações de gênero‖ (AYRES, 2002,p.12).
1 A Casa Maria de Magdala foi fundada pelo médico René Pessa em 1991 na cidade de Niterói, com o objetivo
de apoiar as vítimas da AIDS que eram abandonadas nos hospitais das cidades de Niterói e Rio de Janeiro. É
uma instituição Filantrópica fundamentada na Doutrina Espírita Cristã. Mais informações acesse:
casamariademagdala.org.br
12
Ao adentraremos a categoria Gênero para tentar evidenciar o
porquê da grande diferença entre homens e mulheres infectados pelo
vírus HIV no Brasil e a diferença na busca pelo atendimento na Casa
Maria de Magdala, é essencial que possamos discutir sobre
masculinidade e como ela se efetiva na sociedade para se chegar ao
objetivo final deste trabalho, ou seja, como as representações de
masculinidade geram a vulnerabilidade masculina à infecção pelo vírus
HIV.
O objetivo desse trabalho é compreender como a sexualidade
interfere nas relações existentes entre os gêneros masculino e
feminino até chegarmos ao conceito de masculinidade e os efeitos que
esse conceito subjetivo acarreta na saúde do homem gerando,
possivelmente, uma vulnerabilidade ao vírus HIV.
No primeiro momento desse trabalho buscaremos analisar como a
sexualidade foi abordada por diversos autores ao longo da história
recente da sociedade moderna.
Foucault (1988) recupera os discursos sobre a sexualidade desde
o século XVIII enfatizando que a mesma não sofria restrição, mas o
discurso sim, ou seja, apenas algumas instituições como: Igreja,
Justiça e consultórios médicos eram aptas a falar, diagnosticar e
prescrever condutas sobre a sexualidade.
Ao trabalhar com autores mais atuais como Louro (2015), a
sexualidade na sociedade contemporânea é vista como uma construção
social onde a mesma ―é construída, ao longo de toda a vida, de muitos
modos, por todos os sujeitos‖.
Dialogando com Louro (2015) aparecem nesse trabalho: Scott
(1995), Medradro (1998) e (2010), Guerriero (2002), Ayres (2002),
Gomes (2004), Weeks (2015) e (2008) e Noca (2011), apresentando
13
estudos sobre sexualidade, masculinidade, identidades sociais, gênero
e vulnerabilidade masculina à infecção pelo vírus HIV.
No segundo capítulo vamos recuperar um pouco da história da
epidemia de AIDS, principalmente nas décadas de 80 e 90 do século
passado, enfatizando os primeiros enfrentamentos à crise de saúde,
tendo como protagonista o movimento gay.
Buscaremos ainda analisar as formas de prevenção ao vírus HIV
e a AIDS colocando em evidência a saúde dos homens que, de acordo
com os dados do Ministério da Saúde, representam o maior número de
infectados pelo vírus HIV no Brasil.
O método de análise desse trabalho é a pesquisa bibliográfica, a
consulta de sites especializados, análise dos boletins e cartilhas
publicados por órgãos do governo e ONGs como a ABIA (Associação
Brasileira Interdisciplinar de AIDS).
Utilizamos também análise de conteúdo veiculado pelo cinema
através de filmes conhecidos e premiados como Decameron,
Philadélphia, Clube de Compras Dallas e, outros nem tanto
conhecidos, mas que expressam de forma bastante simbólica e atual o
tema em estudo, a saber: The Normal Heart e Holding the Man.
Importante ressaltar que, no início desse trabalho, pensávamos
em realizar uma pesquisa de campo em um hospital de referência em
HIV/AIDS no estado do Rio de Janeiro que, por falta de tempo hábil
não foi efetivada e, portanto, aparecerá em trabalhos futuros.
14
Capítulo I: BREVE HISTÓRICO SOBRE SEXUALIDADE
Considerações
Nesse capítulo trazemos um pouco sobre a história da
sexualidade na idade moderna, demonstrando, assim, a evolução do
tema, evidenciando a inexistência de uma restrição, ou seja, de uma
ratificação sobre quem poderia falar ou não sobre o sexo.
Antes de adentrarmos na categoria masculinidade pensamos ser
de grande importância traçar um breve histórico sobre a categoria
sexualidade. Louro (2015) afirma que a sexualidade se efetiva na
sociedade contemporânea elaborando, assim, corpos ―educados e
disciplinados‖.
Segundo Louro (2015), em livro intitulado: ―O Corpo Educado
Pedagogias da Sexualidade‖, a sexualidade é definida assim:
―sexualidade não é apenas uma questão pessoal, mas é social e política
(...) a sexualidade é ‗aprendida‘, ou melhor, é construída, ao longo de
toda a vida, de muitos modos, por todos os sujeitos.‖ (Idem, p. 11).
A sexualidade é vista por Weeks (2015) como um conjunto de
crenças, ideologias e imaginação, nesta perspectiva, ela não se limita
à sexualidade, a genitália do sujeito. Para este autor:
Embora o corpo biológico seja o local da sexualidade,
estabelecendo os limites daquilo que é sexualmente
possível, a sexualidade é mais do que simplesmente o
corpo. De fato, juntamente com Carole Vance (1994),
estou sugerindo que o órgão mais importante nos
humanos é aquele que está entre as orelhas. A
sexualidade tem tanto a ver com nossas crenças,
ideologias e imaginações quanto com o nosso corpo
físico. (...) a sexualidade é, na verdade, ―uma
construção social‖, uma invenção histórica, a qual,
15
naturalmente, tem base nas possibilidades do corpo: o
sentido e o peso que atribuímos são, entretanto,
modelados em situações sociais concretas. Isso tem
profundas implicações para nossa compreensão do
corpo, do sexo e da sexualidade, implicações que
precisaremos explorar. (WEEKS, 2015, p. 38 e 40)
Michel Foucault, em sua série: ―A história da sexualidade”,
analisa a teoria de que a sexualidade é historicamente ―reprimida‖ e
quem ganha com esse discurso sobre repressão. O autor procura fazer
uma leitura crítica sobre a hipótese de que a sexualidade adquire com
a elevação da Burguesia como classe dominante um papel reprimido.
Porém, sua real reflexão é sobre o ―discurso‖ da sexualidade
reprimida, questionando os autores de sua época.
Foucault (1988) afirma que o sexo era demasiadamente livre até
o início do século XVII e as práticas sexuais não eram segredo e nem
precisavam ser disfarçadas, não precisavam da clausura do ―quarto dos
pais‖ e, anatomias, gestos, transgressões e os discursos eram vistos
sem escândalo.
Quanto a esta narrativa de Foucault, podemos mencionar o
filme: O Decameron (Pier Paolo Pasolini, Itália, 1971) onde o diretor
aborda nove histórias diferentes em que o sexo é o fio condutor de
cada uma delas, mostrando a vida social na Itália durante a idade
média.
Em uma das cenas, onde um adulto toca a genitália do menino e
oferece dinheiro, fica evidente que o sexo não sofria ainda o
policiamento dos discursos que passam a existir no século XIX,
segundo Foucault.
Em outra cena do mesmo filme, o diretor explora a sensualidade
de uma de suas personagens para que a mesma consiga roubar o
dinheiro de um jovem forasteiro e, para isso ela conta com a ajuda de
suas serviçais.
16
Um pouco mais adiante, um jovem é contratado para ser uma
espécie de jardineiro de um convento onde as freiras acabam o
transformando em escravo sexual. A impressão que o diretor passa - e
isso pode até ser exagero - é a de que o sexo não sofre restrição ou
policiamento da sociedade da época.
Porém, Jeffrey Weeks afirma que o que existe de mais importante
é o que se passa e o que é construído na mente de cada indivíduo sobre
o sexo e as possiblidades de se efetivar a sexualidade, pois:
embora o corpo biológico seja o local da sexualidade,
estabelecendo os limites daquilo que é sexualmente
possível, a sexualidade é mais do que simplesmente o
corpo. De fato, juntamente com Carole Vance (1984),
estou sugerindo que o órgão mais importante nos
humanos é aquele que está entre as orelhas. A
sexualidade tem tanto a ver com nossas crenças,
ideologias e imaginações quanto com o nosso corpo
físico (WEEKS, 2015, p.38).
Weeks (2015) recupera a história da sexualidade a partir do
século XIX, enfatizando o nascimento de uma nova disciplina, a
sexologia, pois, até então as questões relativas ao comportamento
sexual eram preocupações da religião e da filosofia moral.
O tema ganhou, no final do século XIX, sua própria
disciplina, a sexologia, tendo como base a psicologia, a
biologia e a antropologia, bem como a história e a
sociologia. Isso teve enorme influência no
estabelecimento dos termos do debate sobre o
comportamento sexual. A sexualidade é, entretanto,
além de uma preocupação individual, uma questão
claramente crítica e política, merecendo, portanto, uma
investigação e uma análise histórica e sociológica
cuidadosas. (WEEKS, 2015, p.39).
17
Confirmando seu entendimento a respeito de sexualidade como
uma construção social esse autor afirma:
que a sexualidade é, na verdade, ―uma construção
social‖, uma invenção histórica, a qual, naturalmente,
tem base nas possibilidades do corpo: o sentido e o peso
que lhe atribuímos são, entretanto, modelados em
situações sociais concretas. Isso tem profundas
implicações para nossa compreensão do corpo, do sexo e
da sexualidade, implicações que precisaremos explorar.
(...) só podemos compreender as atitudes em relação ao
corpo e à sexualidade em seu contexto histórico
específico, explorando as condições historicamente
variáveis que dão origem a importância atribuída a
sexualidade num momento particular e apreendendo as
várias relações de poder que modelam o que vem a ser
visto como comportamento normal ou anormal, aceitável
ou inaceitável. (WEEKS, 2015, p.40 e 43)
Para Foucault (1988) a burguesia Vitoriana passa a questionar a
sexualidade livre da época, estabelecendo a disciplina no discurso
sobre o sexo para que a população venha a aplicar toda sua força no
trabalho.
A burguesia Vitoriana do século dezenove absorve a sexualidade
para dentro do lar, a família conjugal detém o poder sobre o sexo
regulando-o assim para um único objetivo: controlar as práticas
sexuais com rigor no sentido de disciplinamento dos corpos.
A sexualidade livre e desvairada é ―incompatível com uma
colocação no trabalho, geral e intensa; na época em que se explora
sistematicamente a força de trabalho‖ (FOUCAULT, 1988, p.11).
Nesse interim:
A ideia do sexo reprimido, portanto, não é somente objeto de teoria. A
afirmação de uma sexualidade que nunca fora dominada com tanto rigor
como na época da hipócrita burguesia negocista e contabilizadora é
18
acompanhada pela ênfase de um discurso destinado a dizer a verdade sobre
o sexo, a modificar sua economia no real, a subverter a lei que o rege, a
mudar seu futuro. O enunciado da opressão e a forma da pregação referem-
se mutuamente; reforçam-se reciprocamente. Dizer que o sexo não é
reprimido, ou melhor, dizer que entre o sexo e o poder a relação não é de
repressão, corre o risco de ser apenas um paradoxo estéril. Não seria
somente contrariar uma tese bem aceita. Seria ir de encontro a toda a
economia, a todos os "interesses" discursivos que a sustentam.
(FOUCAULT, 1998, p.13)
Enfatizando a questão do poder que tem os ―discursos‖,
Foucault discorre não sobre uma ―repressão‖ da sexualidade, o que
para ele já está claro diante do objetivo da burguesia em direcionar
pensamentos e atitudes da sociedade para os objetivos da sociedade
capitalista em uma espécie de colonização dos corpos e da
subjetividade.
Através de tais discursos multiplicaram-se as condenações judiciárias das
perversões menores, anexou-se a irregularidade sexual à doença mental; da
infância à velhice foi definida uma norma do desenvolvimento sexual e
cuidadosamente caracterizados todos os desvios possíveis; organizaram-se
controles pedagógicos e tratamentos médicos; em torno das mínimas
fantasias, os moralistas e, também e sobretudo, os médicos, trouxeram à
baila todo o vocabulário enfático da abominação: isso não equivaleria a
buscar meios de reabsorver em proveito de uma sexualidade centrada na
genitalidade tantos prazeres sem fruto? Toda esta atenção loquaz com que
nos alvoroçamos em torno da sexualidade, há dois ou três séculos, não
estaria ordenada em função de uma preocupação elementar: assegurar o
povoamento, reproduzir a força de trabalho, reproduzir a forma das
relações sociais; em suma, proporcionar uma sexualidade economicamente
útil e politicamente conservadora? (FOUCAULT, 1988, p. 28 e 29).
Na verdade, Foucault discorre sobre quem pode e quem não pode
falar sobre sexo, onde se pode e onde não se pode falar sobre sexo e
em que situações o discurso é permitido. Assim:
19
Não se deve fazer divisão binária entre o que se diz e o que não se diz; é
preciso tentar determinar as diferentes maneiras de não dizer, como são
distribuídos os que podem e os que não podem falar, que tipo de discurso é
autorizado ou que forma de discrição é exigida a uns e outros. Não existe
um só, mas muitos silêncios e são parte integrante das estratégias que
apoiam e atravessam os discursos. (FOUCAULT, 1988, p. 29-30)
Os discursos e o poder que eles exercem na sociedade desde o
século XVII, através da sexualidade, é o objeto de análise de Foucault.
―A vontade de saber‖ para este autor é o início da construção de uma
―ciência da sexualidade‖.
Para ele (Foucault) os discursos sobre a sexualidade se
proliferam desde o século dezoito a partir do momento em que o
Estado percebe uma nova categoria: população.
Além do controle do discurso sobre o sexo, o Estado tenta
entender, fiscalizar e intervir nessa nova categoria, assegurando-a
como mais uma técnica de poder.
Os governos percebem que tem que lidar não somente com
sujeitos ou com o povo, e sim com fenômenos específicos como:
―natalidade, morbidade, esperança de vida, fecundidade, estado de
saúde, incidência das doenças, formas de alimentação e de habitat‖
(FOUCAUT, 1988, p.28). Nesse ínterim:
Todas essas variáveis situam-se no ponto de intersecção entre os
movimentos próprios à vida e os efeitos particulares das instituições: ‗Os
Estados não se povoam conforme a progressão natural da propagação, mas
em razão de sua indústria, de suas produções e das diferentes instituições...
Os homens se multiplicam como as produções do solo e na medida das
vantagens e dos recursos que encontram nos seus trabalhos‘. No cerne
deste problema econômico e político da população: o sexo; é necessário
20
analisar a taxa de natalidade, a idade do casamento, os nascimentos
legítimos e ilegítimos, a precocidade e a frequência das relações sexuais, a
maneira de torná-las fecunda ou estéreis, o efeito do celibato ou das
interdições, a incidência das práticas contraceptivas — desses famosos
"segredos funestos" que os demógrafos, na véspera da Revolução, sabem já
serem conhecidos no campo.É verdade que já há muito tempo se afirmava
que um país devia ser povoado se quisesse ser rico e poderoso. Mas é a
primeira vez em que, pelo menos de maneira constante, uma sociedade
afirma que seu futuro e sua fortuna estão ligados não somente ao número e
à virtude dos cidadãos, não apenas às regras de casamentos e à organização
familiar, mas à maneira como cada qual usa seu sexo. Passa-se das
lamentações rituais sobre a libertinagem estéril dos ricos, dos celibatários e
dos libertinos, para um discurso onde a conduta sexual da população é
tomada, ao mesmo tempo, como objeto de análise e alvo de intervenção;
passa-se das teses maciçamente populacionistas da época mercantilista, às
tentativas de regulação mais finas e bem calculadas, que oscilarão, segundo
os objetivos e as urgências, em direção natalista ou antinatalista. Através
da economia política da população forma-se toda uma teia de observações
sobre o sexo. Surge a análise das condutas sexuais, de suas determinações e
efeitos, nos limites entre o biológico e o econômico. Aparecem também as
campanhas sistemáticas que, à margem dos meios tradicionais —
exortações morais e religiosas, medidas fiscais — tentam fazer do
comportamento sexual dos casais uma conduta econômica e política
deliberada [...] Entre o Estado e o indivíduo o sexo tornou-se objeto de
disputa, e disputa pública; toda uma teia de discursos, de saberes, de
análise e de injunções o investiram. [...] Não se fala menos do sexo, pelo
contrário. Fala-se dele de outra maneira; são outras pessoas que falam, a
partir de outros pontos de vista e para obter outros efeitos. (FOUCAULT,
1988, p. 28 e 29).
Assim, não existe nessa época uma censura sobre o sexo por
parte de algumas instituições, pelo contrário: falar de sexo, o discurso
sobre o sexo é uma técnica que o Estado adota como meio de controle
das configurações da sociedade da época.
21
Censura sobre o sexo? Pelo contrário, constituiu-se uma aparelhagem para
produzir discursos sobre o sexo, cada vez mais discursos, susceptíveis de
funcionar e de serem efeito de sua própria economia. (FOUCAULT, 1988,
p. 26).
Diversas instituições elaboram seus discursos a respeito da
sexualidade: Medicina, Psicologia e Justiça Penal, as quais tentam, em
seus mais diversos objetivos, ―proteger‖, ―separar‖ e ―prevenir‖ pais e
filhos diante de um suposto ―perigo‖, exercendo sobre a sexualidade
pública um verdadeiro controle social.
Essa expressão costuma ser utilizada para se referir a atributos
culturais associados a cada um dos sexos. Nesse sentido, o que é:
―Sexo‖ será usado no sentido mencionado antes: como
um termo descritivo para as diferenças anatômicas
básicas, internas e externas ao corpo, que vemos como
diferenciando homens e mulheres. Embora essas
distinções anatômicas sejam geralmente dadas no
nascimento, os significados a elas associados são
altamente históricos e sociais. Para descrever a
diferenciação social entre homens e mulheres, usarei o
termo ―gênero‖. usarei o termo ―sexualidade‖ como uma
descrição geral para a série de crenças,
comportamentos, relações e identidades socialmente
construídas e historicamente modeladas que se
relacionam com o que Michel Foucault denominou ―o
corpo e seus prazeres‖. (WEEKS, 2015, p.42 e 43).
Além das instituições já citadas, Estado e Igreja assumem um
certo protagonismo quanto ao disciplinamento dos corpos no que se
refere à sexualidade. Para Weeks (2015), essas duas instituições
estabelecem relação de poder sobre a população na busca de um
modelo hegemônico de comportamento, assim:
22
A sexualidade tem sido um marcador particularmente
sensível de outras relações de poder. A Igreja e o
Estado têm mostrado um contínuo interesse no modo
como nos comportamos ou como pensamos. Podemos
observar, nos últimos dois séculos, a intervenção da
medicina, da psicologia, do trabalho social, das escolas
e outras instâncias, todas procurando nos dizer quais as
formas apropriadas para regular nossas atividades
corporais. (WEEKS, 2015, p.42).
Portanto, fica evidente nas leituras realizadas até aqui que falar
sobre sexo não é motivo para repressão desde que o mesmo seja
abordado por quem de direito e nos locais legitimados para tal. Na
literatura, nos consultórios médicos e de psicanálise, diante do poder
da Igreja e diante de outras instituições reconhecidamente notórias
como a Justiça.
1.1 - O surgimento das ―identidades sociais‖ uma questão de gênero
Diante de relações sócio históricas que se estabelecem entre
homens e mulheres, pensamos ser indispensável abordar a categoria
gênero para entendermos sobre masculinidade e as dificuldades que
esta categoria apresenta para trabalhar com o público masculino
questões relativas à prevenção de doenças, principalmente a AIDS que
é o foco desse trabalho.
Recuperar o já consagrado artigo da americana Joan Scott:
Gênero, uma categoria útil para análise histórica, é indispensável,
pois a autora afirma que é irrelevante procurar pelos ―sentidos das
palavras‖, pois, as mesmas ―tem uma história‖ e ―ao longo dos
séculos, as pessoas utilizaram de forma figurada os termos gramaticais
para evocar traços de caráter ou traços sexuais‖ (SCOTT,1995,p.2).
23
Para introduzir a categoria Gênero, Scott (1995) começa
abordando o sentido da palavra na gramática, onde ―A relação com a
gramática é ao mesmo tempo explícita e cheia de possibilidades
inexploradas.‖ Afirmando que em outros idiomas a palavra Gênero
assume uma terceira categoria além das desinências de masculino e
feminino, ―o sexo indefinido ou neutro‖.
Assim, Nathalie Davis dizia em 1975: ―Eu acho que deveríamos nos
interessar pela história tanto dos homens quanto das mulheres, e que não
deveríamos trabalhar unicamente sobre o sexo oprimido, do mesmo jeito que
um historiador das classes não pode fixar seu olhar unicamente sobre os
camponeses. Nosso objetivo é entender a importância dos sexos dos grupos
de gênero no passado histórico. Nosso objetivo é descobrir a amplitude dos
papéis sexuais e do simbolismo sexual nas várias sociedades e épocas, achar
qual o seu sentido e como funcionavam para manter a ordem social e para
mudá-la‖ (DAVIS, 1975 apud SCOTT, 1995, p.3).
Para Medrado (2010), direitos iguais entre homens e mulheres
devem ser observados no campo do público e do privado onde, uma
maior participação das mulheres na vida pública deveria ser
acompanhada de uma maior participação dos homens na vida privada,
ou seja, maior comprometimento dos homens com a vida sexual e
reprodutiva do casal e com a criação dos filhos, assim como sua
responsabilização pelo acompanhamento da saúde desses e de toda a
família, efetivando-se, assim, uma verdadeira divisão das atividades
domésticas.
Gomes (2008) afirma que a expressão Gênero costuma ser
utilizada para se referir a atributos culturais associados a cada um dos
sexos. Nesse sentido, o que é feminino e o que é masculino têm
significados diferentes nas diversas culturas. As construções culturais
de gênero, de um lado, influenciam a formação das identidades das
pessoas, afirmando-se assim o ser homem e o ser mulher à medida que
24
ocorrem aproximações e afastamentos dos padrões que mais
predominam na cultura onde se situam. Por outro lado, essas
construções também influenciam as relações que se estabelecem entre
os pares homem-homem, mulher-mulher e homem-mulher.
Medrado (1998), ressalta que o conceito de Gênero é criado com
o objetivo de visibilizar as relações entre os sexos não apenas como
machos e fêmeas da espécie humana, mas como homens e mulheres que
se posicionam e são posicionadas num dado contexto sócio-histórico.
Relações de Gênero são abordadas também por este mesmo autor no
l i v r o : Homens e masculinidades: práticas de intimidade e políticas públicas, onde afirma
que:
Com base nesse conceito, observa-se que os modelos de gênero exercem um
papel fundamental na reprodução e produção das identidades, relações e
instituições sociais. Entretanto, esses modelos não atuam sozinhos. Junto a
eles, convivem outros aspectos estruturais – como classe social e raça/etnia –
que influenciam as formas como as sociedades pensam sobre as pessoas e
como as próprias pessoas pensam sobre si (MEDRADO et al, 2010, p. 95).
A literatura acadêmica, nos últimos anos, vem abordando a
questão de gênero com foco no público masculino, o que não
representa um retrocesso no debate, visto que o mesmo é feito numa
perspectiva de equidade entre os gêneros. Ou seja, não significa uma
volta da hegemonia masculina sobre a feminina configurando-se assim
como um movimento anverso às conquistas históricas do movimento
feminista, ao contrário, tenta-se abordar as questões de saúde de uma
forma mais abrangente para atender homens e mulheres numa
perspectiva relacional de Gênero.
Louro (2015) ressalta que:
25
De modo especial, as profundas transformações que, nas
últimas décadas, vêm afetando múltiplas dimensões da
vida de mulheres e de homens e alterando as
concepções, as práticas e as identidades sexuais teriam
de ser levadas em consideração. (...) as muitas formas
de fazer-se mulher ou homem, as várias possibilidades
de viver prazeres e desejos corporais são sempre
sugeridas, anunciadas, promovidas socialmente (e hoje
possivelmente de formas mais explícitas do que antes).
Elas são também, renovadamente, reguladas, condenadas
ou negadas. (...) as possibilidades de transgredir
categorias e fronteiras sexuais, as articulações corpo-
máquina a cada dia desestabilizam antigas certezas;
implodem noções tradicionais de tempo, de espaço, de
―realidade‖; subvertem as formas de gerar, de nascer, de
crescer, de amar ou de morrer. LOURO (apud HALL,
1997, p. 9-10).
Gomes (2008) busca trabalhar o conceito de masculinidade
através da categoria gênero sem estabelecer as questões do masculino
separadamente daquelas do feminino, ―com isso, contribuímos para o
desenvolvimento do acervo de estudos que abordam os homens não só
para melhor promover a saúde da mulher, mas também para considera-
los como protagonistas de sua própria saúde‖. (GOMES, 2008, p.29 e
30).
No livro: ―Sexualidade Masculina, Gênero e Saúde‖ Romeu
Gomes, já na sua apresentação, argumenta que:
Nessa trajetória de pesquisa, nos últimos cinco anos, comecei a ajustar o
foco para a sexualidade masculina em específico, sem, entretanto, perder a
perspectiva relacional de gênero. Isso significa, principalmente, que
compreendo essa sexualidade com base na contextualização dos modelos
de gênero construídos culturalmente nas relações e nas instituições sociais.
(...) partilhei da premissa de que a sexualidade masculina e a feminina se
constroem na produção/reprodução de modelos de gêneros. Em outras
palavras, as condutas e os enredos sexuais masculinos só se configuram
como tal segundo o que compreendemos por condutas e enredos sexuais
femininos e vice-versa. Assim, adoto uma abordagem sociocultural da
sexualidade, procurando interpretar o contexto, as razões e as lógicas das
26
falas e das ações, correlacionando-as ao conjunto de inter-relações e
conjunturas, entre outros corpos analíticos (GOMES, 2008, p. 21).
A defesa do autor diante dessa perspectiva permanece ao
argumentar que:
advogo a discussão da temática ‗homem-saúde‘, porque tanto os homens
como as mulheres precisam ser vistos em sua singularidade e em sua
diversidade no campo de suas relações. Não se trata de uma recaída
machista em reação a uma pretensa perda de direitos dos homens.(...)
reafirmo que uma obra que aborde aspectos relacionados à sexualidade
masculina e à saúde do homem pode contribuir para o preenchimento de
lacunas na produção do conhecimento bibliográfico no campo da saúde em
geral. (GOMES, 2008, p. 21 e 33).
Porém, Jeffrey Weeks estabelece uma distinção entre sexo,
gênero e sexualidade, a saber:
―Sexo‖ será usado no sentido mencionado antes: como
um termo descritivo para as diferenças anatômicas
básicas, internas e externas ao corpo, que vemos como
diferenciando homens e mulheres. Embora essas
distinções anatômicas sejam geralmente dadas no
nascimento, os significados a elas associados são
altamente históricos e sociais. Para descrever a
diferenciação social entre homens e mulheres, usarei o
termo ―gênero‖. usarei o termo ―sexualidade‖ como uma
descrição geral para a série de crenças,
comportamentos, relações e identidades socialmente
construídas e historicamente modeladas que se
relacionam com o que Michel Foucault denominou ―o
corpo e seus prazeres‖ (WEEKS, 2015, p.42 e 43).
Pensamos ser de grande relevância essa distinção, pois é a partir
dessa decomposição que podemos compreender a questão das
identidades sociais e o poder que elas operam na vida dos indivíduos
na sociedade moderna.
27
Weeks (2015) apresenta três elementos importantes que
compõem e ―complicam‖ as identidades sexuais: Classe, Gênero e
Raça. Para explicar a influência da categoria Classe, esse autor baseia-
se nos estudos de Foucault, que recuperou a história da sexualidade na
sociedade contemporânea, a partir da perspectiva Burguesa de controle
dos discursos sobre sexualidade.
A burguesia demonstra que, para se efetivar enquanto classe
hegemônica precisaria se diferenciar e se autoafirmar. Deveria ser
diferente da suposta imoralidade da aristocracia e da promiscuidade
das classes inferiores, estabelecendo, assim, os ―padrões de
comportamentos‖, onde:
A demarcação crescente entre papéis masculinos e
femininos, uma ênfase nova na necessidade de elevar o
comportamento público aos melhores padrões da vida
privada e um agudo interesse no policiamento público
da sexualidade não conjugal, não heterossexual –
tornam-se, crescentemente, a norma pela qual todo
comportamento era julgado. Isso não significa,
naturalmente, que todos ou mesmo a maioria dos
comportamentos se conformassem a norma (WEEKS,
2015, p.55).
Quanto à categoria Gênero Weeks afirma que a mesma expressa
―uma relação de poder‖. Para isso ele se baseia nas afirmações de
Laqueur (1990), que recupera, a partir do século XVIII, o ―discurso
dominante‖ de que os corpos masculino e feminino são versões
hierárquica e verticalmente ordenadas de um único sexo.
Assim:
(...) o modelo hierárquico, mas de sexo único,
certamente interpretava o corpo feminino como uma
versão inferior e invertida do masculino, mas
enfatizava, não obstante, a importância do papel do
28
feminino no prazer sexual, especialmente no processo da
reprodução (WEEKS, 2015, p.57).
Ao trabalhar a categoria ―raça‖ Weeks (2015) afirma que esta
foi uma categoria ignorada por historiadores e cientistas sociais até o
século XIX, os quais consideravam raça como ―um elemento vital na
história da sexualidade‖. ―O feroz selvagem‖, o indivíduo negro, era
apresentado como:
(...) abaixo da pessoa branca na escala evolutiva: mais
próxima das origens da raça humana; isto é, mais
próxima da natureza. Tais visões sobreviveram mesmo
entre os antropólogos culturalmente relativistas que
deslocaram muitos dos teóricos evolucionistas depois da
virada do século (Coward, 1983). Uma das atrações das
descrições das culturas não industriais era precisamente
o sentimento subliminar de que lá as pessoas eram muito
mais livres relativamente aos constrangimentos da
civilização. Representassem os povos não europeus a
infância da raça ou a promessa de uma espontaneidade
livre dos efeitos de uma civilização corruptora, o fio
comum era a diferença simbólica representada pelo
corpo não branco. A consciência de outras culturas e
outros costumes sexuais, entretanto, apresentou,
portanto, um desafio e uma ameaça. Para sexólogos
como Havelock Ellis, os exemplos das sociedades não
industriais forneciam uma justificativa para suas
críticas reformistas das normas sexuais ocidentais.
(WEEKS, 2015, p.58).
As afirmações de Weeks recuperam o porquê do mito da
hipersexualidade do homem negro, dando-nos, também, uma ideia do
sentido de imposição à sociedade, em alguns países da Europa, as
políticas eugenistas que, acreditavam, numa possível melhora da
linhagem racial.
29
A análise das relações de poder em torno da classe, do
gênero e da raça demonstra a complexidade das forças
que modelam as atitudes e o comportamento sexual.
Essas forças, por sua vez, abrem o caminho para o
desenvolvimento de identidades sexuais diferenciadas.
(WEEKS, 2015 p.60).
Na próxima seção trabalharemos a categoria masculinidade e as
vulnerabilidades que essa categoria acarreta na vida dos homens que
se expõem aos riscos diante de conceitos historicamente construídos a
respeito do que é pertencer ao gênero masculino e toda importância
que os homens atribuem ao sexo, aparecendo este, como uma das
características principais que evidenciam sua sexualidade.
1.2. Vulnerabilidade masculina à infecção pelo vírus HIV
Ao adentraremos a categoria Gênero para tentar evidenciar o
porquê da grande diferença entre homens e mulheres infectados pelo
vírus HIV no Brasil é essencial que possamos discutir sobre
masculinidade e como ela se efetiva na sociedade para se chegar ao
objetivo final deste trabalho, ou seja, como as representações de
masculinidade geram a vulnerabilidade masculina à infecção pelo vírus
HIV.
as informações em saúde no Brasil, sejam de pesquisas
epidemiológicas, demográficas ou oriundas da
sistematização de dados com o objetivo de produzir
subsídios para políticas públicas – sintetizadas, por
exemplo, nos Indicadores e Dados Básicos para Saúde
(Rede Interagencial de Informações para a Saúde, 2007)
–, ressaltam uma preocupação importante sobre as
mortes por causas externas entre homens e nos
apresentam um novo sujeito para as políticas públicas
30
em saúde: o homem, jovem, negro e pobre. As
informações sobre adoecimento e morte dos homens não
constituem necessariamente uma novidade, tendo em
vista que têm sido apresentadas, na literatura, como
tendência crônica e não como incidente agudo. Porém,
chama-nos a atenção o fato dessas informações não
terem sido ainda incorporadas, em sua complexidade, na
construção de políticas públicas em saúde no nosso país.
(PNAISH, 2008, p. 69-70).
Estudo realizado por Noca (2011) evidencia que homens acessam
mais o sistema de saúde por meio da atenção especializada. Procuram
mais os hospitais de emergência do que os postos de saúde e recorrem
menos às consultas periódicas, demonstrando que esse segmento da
população usa tais serviços para tratar patologias, acidentes ou lesões,
problemas odontológicos e uso da farmácia.
Essa mesma autora ainda afirma que:
em serviços de Atenção Primária em Saúde (APS), grande parte dos
programas e ações em saúde são dirigidos para crianças, como é o caso do
acompanhamento periódico dos menores de 1 ano de idade; mulheres
gestantes, na realização do pré-natal; idosos, especialmente em doenças
crônicas como hipertensão e diabetes; dentre outros (NOCA, 2011, p. 38).
Em sua tese de mestrado em psicologia e saúde do homem Noca
(2011) faz uma análise crítica sobre a gestação e a implantação da
Política Nacional de atenção à Saúde Integral do Homem lançada pelo
governo em 2009, salientando todo o aspecto de medicalização ao
invés da prevenção.
Evidencia a influência de médicos urologistas na formulação da
política e todo o aspecto limitador, ao passo de que a saúde do homem
é vista apenas em seu aspecto sexual. As observações críticas sobre
essa política continuam, ao afirmar que nenhum setor da sociedade
31
civil2 foi chamado ao debate e formulação da mesma, indo de encontro
à Lei Federal Nº 8.142, de 28 de Dezembro de 1990, que prevê a
participação popular nas conferências e conselhos de saúde.
Segundo Gomes (2004), a construção social do conceito de
masculinidade torna-se fator impeditivo para os homens cuidarem de
si. Para este autor, as discussões devem ser mais abrangentes deixando
de abordar, assim, a sexualidade masculina apenas como ―infectante‖,
visto que quando se tratam de dados epidemiológicos sobre DST, a
participação dos homens é maior que das mulheres.
Ausência, ou baixa frequência frente aos programas de prevenção
e às políticas públicas de saúde pelos homens é abordada por Russel
Parry Scott em artigo intitulado: ―Homens, domesticidade e políticas
públicas na saúde reprodutiva”, afirmando que ―os homens são
plurais‖ e que, ―não há como negar que em muitas esferas os homens
são excluídos e teriam o que ganhar caso houvesse modificações
significativas nesses setores‖ (MEDRADO et all; 2010:79 a 83).
Para Iara Guerriero essa ausência pode ser explicada da seguinte
forma:
Por fim, há a questão da baixa frequência dos homens aos serviços
públicos de saúde, onde se concentram as ações preventivas em saúde
reprodutiva. A unidade de saúde não é, decididamente, um local apropriado
para atingi-los, seja pelas dificuldades impostas pelos empregadores, seja
pela necessidade de cultivo da imagem de invulnerabilidade por parte dos
próprios homens que dificilmente procuram esses serviços. O local de
trabalho coloca-se, assim, como espaço fundamental para o
desenvolvimento de ações preventivas que atinjam esse grupo populacional
(GUERRIERO et al, 2002 p.60).
2 A sociedade civil, aparece aqui, pelo viés Gramsciano, onde, novas determinações da sociedade capitalista
moderna descobertas por Gramsci, como representatividade social da hegemonia, são efetivadas por
aparelhos privados que, voluntariamente, através de consenso, buscam disseminar suas ideologias, isto é,
como mesmo resume Carlos Nelson Coutinho: formada precisamente pelo conjunto das organizações
responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias, compreendendo o sistema escolar, as igrejas, os
partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, a organização material da cultura (revistas,
jornais, editoras, meios de comunicação de massa), etc. In: COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo
sobre seu pensamento político. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 127
32
Embora a pesquisa de Gomes (2004) tenha sido voltada para
pacientes vivendo com câncer de próstata, e, portanto, que a categoria
Sexualidade é o tema mais amplo desse trabalho, buscamos evidenciar
como essas relações sociais estabelecidas entre homens e a procura
pelos serviços de saúde afetam o comportamento dos homens quanto à
sua sexualidade e o cuidado de si, principalmente quando estamos
diante de uma doença sexualmente transmissível, a AIDS.
A problematização do tema e a discussão sobre a infecção do
HIV/AIDS entre os homens tornam-se difícil para profissionais de
saúde, terapeutas e profissionais da assistência, diante de universo tão
complexo. Muitos problemas poderiam ser discutidos com esse grupo
para buscar minimizar e reduzir os danos na saúde de mulheres e
homens, jovens e adultos como planejamento familiar, prevenção à
infecções sexualmente transmissíveis, uso de preservativo entre casais
e gravidez precoce, por exemplo.
Gomes (2008) afirma que Influenciados por representações de
masculinidade como ―poder‖ ―força‖ ―sucesso‖ ―virilidade‖, as
condutas masculinas acabam por trazer comprometimento para saúde
do homem e da família como um todo, ao se colocarem em situações de
risco, predispondo esses à doenças, lesões e mortes. Isso fica
diretamente evidenciado com a ‗reduzida procura‘ de homens aos
serviços de saúde. Essa ―procura‖ dos serviços de saúde ―colocaria em
risco a masculinidade e aproximaria o homem das representações de
feminilidade‖.
Quando falamos de HIV, os homens ainda carregam crenças
equivocadas sobre o vírus e o possível desenvolvimento da AIDS.
Esse tema foi abordado recentemente pelo cinema no filme:
Clube de Compras Dallas, do diretor Americano Jean-Marc Vallée que
explora um dos ambientes que mais carrega o estereótipo de
33
masculinidade, o ambiente dos ―cowboys‖, um reduto de ―macho‖, de
homens heterossexuais.
O filme inicia-se no ano de 1985, ano em que o vírus do HIV foi
identificado e recebeu o seu nome de batismo. Em uma das primeiras
cenas, os médicos, ao adentrarem o recinto em que se encontra o
personagem principal Ron Woodroof, aparecem com luvas e máscaras,
pois, até então, sabia-se que a contaminação era viral, mas ainda não
se tinha certeza sobre suas formas de transmissão.
A história é baseada em um fato verídico, Ron Woodroof, ao ser
diagnosticado com o vírus da AIDS começa uma pesquisa e busca
desesperadamente por drogas que possam conter o vírus, tornando-se,
assim, um contrabandista de medicamentos que ainda não haviam sido
aprovados pelas agências regulatórias dos Estados Unidos.
Nessa pesquisa, Ron descobre que não são apenas os
homossexuais que estão expostos à infecção pelo vírus da AIDS.
Descobre que usuários de drogas injetáveis e pessoas que não usam
preservativos também estão expostos e vulneráveis.
Nascia assim, o Clube de Compras Dallas, aquele que pagasse
quatrocentos dólares recebia os medicamentos que o mesmo conseguia
contrabandear dos hospitais da cidade de Dallas, e também de outros
países como México, Alemanha, Holanda e Japão.
Nesse premiado longa, o diretor problematiza o uso de drogas,
promiscuidade, e o elemento principal: a ocorrência de AIDS em
homens heterossexuais, pois até então, não somente o cinema, mas
também a literatura trabalhara HIV/AIDS no universo de homens
homossexuais.
A história real de Ron Woodroof exemplifica a batalha das
pessoas convivendo com HIV/AIDS. Ao receber o diagnóstico ele
recebeu a sentença de morte num prazo máximo de trinta dias. Ao
34
descobrir drogas alternativas, ele passa a usá-las, ao invés do uso do
AZT (principal droga do coquetel até então) por descobrir que o
mesmo era extremamente tóxico.
Apenas em 1992, sete anos depois da descoberta do vírus
causador da AIDS, que a medicina passa a administrar o AZT
(azidotimidina, um dos primeiros medicamentos aprovados no Brasil)
em doses mais baixas, juntamente com outras drogas. Ron Woodroof
conseguiu viver 2.557 dias após o diagnóstico de viver apenas 30 dias.
A saúde dos homens é o tema da dissertação de mestrado de Noca
(2011) “Produções discursivas sobre saúde e masculinidades em um
serviço público de atenção à saúde dos homens”.
Ao se deparar com uma grave situação de saúde vivida por seu
pai e, consequentemente, por sua família:
Paralelamente, comecei a vivenciar um momento delicado na família. Meu
pai adoeceu de uma patologia que o afastou definitivamente de suas
atividades laborativas e que, segundo o médico que deu o diagnóstico, tal
doença e/ou muitas sequelas poderiam ter sido evitadas se tivesse sido
tratado desde a apresentação dos primeiros sintomas. Essa situação
representou para mim o descuido com a própria saúde e me fez tomar
consciência que em nossa própria família a prevenção em saúde era
tipicamente algo das mulheres (NOCA, 2011, p.16).
O questionamento da mestra em psicologia não deve ser muito
diferente daquele vivido por muitas outras pessoas que se deparam
com doenças descobertas já em estágio terminal nos homens de suas
famílias.
O ato de ―cuidar de si‖ e uma eventual procura por serviços de
saúde, demostra para Gomes (2008) uma fragilidade na masculinidade
dos homens, pois, esses cuidados historicamente são vistos como
atribuição feminina. Essa ―procura‖ pelos serviços de saúde, colocaria
35
em risco a masculinidade e aproximaria o homem das representações
de feminilidade.
Ao citar pesquisa relacionada sobre a reduzida procura pelos
serviços de saúde por parte dos homens na cidade de São Paulo em
2003, Romeu Gomes descreve alguns motivos explicitados pelo
público alvo, a saber: a) estaria relacionada a questões de trabalho.
Suas falas repisam o lugar-comum segundo o qual o horário de
funcionamento dos serviços de saúde não atende às demandas dos
homens, por coincidir com a carga horária de trabalho. b) o medo de
descobrir que algo vai mal, sentimento comum nas pessoas,
independente do gênero. c) associado à vergonha de ficarem expostos a
outro homem ou a uma mulher. Especialmente no caso da busca de
diagnóstico de câncer de próstata, eles falaram das resistências a
mostrar partes de seu corpo tão íntimas (GOMES, 2008, p. 54-55).
Nesse ínterim, GOMES (2008) conclui que os entrevistados em
sua pesquisa se expõem mais aos riscos e acabam se tornando
vulneráveis às doenças. Expõem-se, porque se consideram
invulneráveis diante das representações de masculinidade que
carregam inconscientemente em suas falas e atitudes.
O autor sugere que os profissionais da saúde mobilizem mais
tempo e investimentos em estudos acerca dos conceitos de
masculinidade, rompendo assim, com ―identidades masculinas
estereotipadas‖. Investigando a ―diversidade sexual, cultural, racial e
de status econômico‖ ―ajustando melhor as lentes da promoção da
saúde para que suas ações sejam exitosas‖ (GOMES, 2008, p. 57).
O público masculino, ao procurar os serviços de saúde quando já
apresentam um quadro avançado de suas doenças, acabam se deparando
com um serviço de saúde que trata da doença e não de suas formas de
prevenção, muito menos, faz-se um questionamento do por quê desse
público masculino não procurar os serviços de saúde preventivos.
36
Essa procura, muitas vezes tardia, acaba por configurar um
atendimento, nas palavras de Foucault ―medicalizado‖. Sobre essa
medicalização do corpo Foucault escreve:
Num dia de 1867, um trabalhador agrícola da aldeia de Lapcourt, de
espírito um tanto simples, empregado sazonalmente de um canto ao outro,
alimentado aqui e acolá por um pouco de caridade e pelo pior dos
trabalhos, morando em granjas ou estábulos, sofre uma denúncia: nas
fímbrias de um roçado, havia obtido algumas carícias de uma menina,
como já havia feito, como tinha visto fazer, como faziam em volta dele os
moleques da aldeia; é que na orla do bosque ou nas valas da estrada que
leva a Saint-Nicolas, brincava-se familiarmente de "leite coalhado". Ele foi
portanto, delatado pelos pais ao prefeito da aldeia, denunciado pelo prefeito
à polícia, por esta apresentado ao juiz, inculpado por este e submetido
inicialmente a um médico, depois a dois outros peritos que, após
elaborarem seu relatório, publicam-no.14 O que é importante nesta
história? Seu caráter minúsculo: que o cotidiano da sexualidade aldeã, os
ínfimos deleites campestres tenham podido tornar-se, a partir de um certo
momento, o objeto não somente de uma intolerância coletiva, mas de uma
ação judiciária, de uma intervenção médica, de um atento exame clínico e
de toda uma elaboração teórica. O importante está em que dessa
personagem comum, até então parte integrante da vida camponesa, se tenha
tentado medir a caixa craniana, estudar a ossatura facial e inspecionar a
anatomia, na busca de possíveis sinais de degenerescência; que o fizessem
falar; que o interrogassem sobre seus pensamentos, gostos, hábitos,
sensações, juízos. E que se decidisse, finalmente, isentando-o de qualquer
delito, fazer dele um puro objeto de medicina e de saber — a ser
enfurnado, até o fim de sua vida, no hospital de Maréville, mas a ser
revelado ao mundo científico através uma análise detalhada. [...] Nestes
gestos sem idade, nesses prazeres pouco mais que furtivos, que os simples
de espírito trocavam com as crianças espertas, foi que nossa sociedade —
sem dúvida, a primeira na história — investiu todo um aparelho de
discurso, de análise e de conhecimento. E tais discursos sobre o sexo não se
multiplicaram fora do poder ou contra ele, porém lá onde ele se exercia e
como meio para seu exercício; criaram-se em todo canto incitações a falar;
em toda parte, dispositivos para ouvir e registrar, procedimentos para
observar, interrogar e formular (FOUCAULT, 1988 p. 32 e 33).
A Literatura médica e as campanhas de prevenção vêm
salientando que são corriqueiros as considerações sobre o fato de
homens utilizarem menos os serviços públicos de saúde ainda no
estágio da prevenção do que as mulheres, o que pode trazer prejuízos
37
para a cura de doenças, que, se diagnosticadas a tempo, podem ser
tratadas ou controladas.
Promoção e acesso mais democrático seriam as palavras chaves
para que políticas mais abrangentes fossem efetivadas no atual
contexto da saúde pública no Brasil. Mais democrático no sentido de
atender os homens de um modo diferenciado, não especial, mas
diferente no sentido de compreender suas particularidades e
necessidades.
As mulheres procuram mais os serviços de saúde públicos para a
realização de exames de rotina e prevenção e, também, o percentual de
mulheres que realizam consultas médicas é bem maior do que o de
homens. Assim:
Ainda que a dominação masculina permaneça uma
característica central da sociedade moderna, é
importante lembrar que as mulheres tem sido ativas
participantes na modelação de sua própria definição de
necessidade. Além do feminismo, as práticas cotidianas
da vida tem oferecido espaços para as mulheres
determinarem suas próprias vidas. Tem se ampliado, a
partir do século XIX, os espaços aceitáveis, para incluir
não apenas o prazer no casamento, mas também formas
relativamente respeitáveis de comportamento não
procriativo. Os padrões de privilégio sexual masculino
não foram totalmente rompidos, mas há, agora,
abundantes evidências de que tal privilégio não é
inevitável nem imutável (WEEKS, 2015 p.57-58).
Trabalhar sobre sexualidade masculina sem mencionar a
sexualidade de homens que se identificam como outro segmento –
homossexuais – se tornaria incompleto e não poderia abarcar tema
crucial para entendermos sobre a epidemia de HIV/AIDS e suas formas
de enfrentamento, visto que o movimento social gay exerceu grande
atuação política e pedagógica diante da sociedade civil e diante de sua
própria parcela da sociedade (comunidade gay).
38
Entre estes aspectos de vulnerabilidade, destacam-se a
pobreza; a exclusão de base racial; a rigidez de papéis e
condutas nas relações de gênero; a intolerância à
diversidade, especialmente de opção sexual; o limitado
diálogo com as novas gerações e a conseqüente
incompreensão dos seus valores e projetos; o descaso
com o bem estar das gerações mais idosas e a
impressionante desintegração da sociedade civil no
mundo globalizado (Castells, 1999 apud Ayres, 2002
p.12).
Portanto, ao entendermos a sexualidade como uma construção
social, enfatizamos todo o aspecto social que constrói sentidos e
identidades.
Quando falamos de AIDS falamos de uma doença socialmente
construída a partir de um público vulnerável à infecção: a população
masculina.
Essa parcela da sociedade moderna acaba por se submeter à
costumes socialmente construídos onde condutas devem ser efetivadas
a partir de um modelo de Homem, principalmente nas relações de
gênero, tornando-se reféns de suas próprias condutas, e se expondo
assim ao risco de contrair doenças como a AIDS.
39
CAPÍTULO II; HISTÓRICO DO VÍRUS HIV E DA EPIDEMIA DE AIDS
Considerações
Nesse capítulo vamos recuperar alguns aspectos da epidemia de
HIV/AIDS sem se preocupar com uma cronologia rígida dos fatos.
Pensamos ser positivo evidenciar e analisar aspectos mais
pontuais relativos aos enfrentamentos, às discussões e à militância de
alguns setores da sociedade frente ao Estado e, também, diante das
formas de prevenção, tendo como foco a relação homens-masculidades-
prevenção, sem deixar de lado a perspectiva relacional de gênero ao
analisar a literatura acadêmica.
Abordamos também aspectos relacionados à visão e à perspectiva
do cinema em relação ao tema: Philadélphia (1993), The normal heart
(2015) e Holding the man (2015).
2.1. Principais enfrentamentos à epidemia de AIDS
Achamos pertinente começar este capítulo recuperando a obra de
um dos maiores militantes do Brasil, o jornalista Herbert Daniel.
Herbert foi um dos maiores personagens do movimento gay no Brasil
ao lado de outro Herbert, o sociólogo Herbert José de Souza (Betinho),
atuando também na divulgação e na luta por formas de prevenção ao
HIV mais eficazes, a partir de sua própria vida, pois o mesmo
descobriu-se soropositivo no ano de 1989, vindo a falecer em 1992.
40
Juntos criaram uma das maiores ONGs do país que trabalha e
produz conhecimento sobre HIV/AIDS, a Associação Brasileira
Interdisciplinar de AIDS – ABIA.
Num país como o nosso, lutar contra a Aids é ajudar a
construir a cidadania de uma maioria de explorados e
oprimidos. Como toda epidemia, a Aids se desenvolve
nas fraturas e desequilíbrios da sociedade. Não se pode
enfrentá-la tentando obscurecer as contradições e
conflitos que expõe. Pelo contrário, é revelando-os que
melhor se entende (e se pode neutralizar) o avanço do
vírus e do vírus ideológico do pânico e dos
preconceitos. Portanto, há uma disputa envolvida nessa
epidemia que não se reduz ao confronto biológico. Há
uma construção a ser feita que envolve a democracia e o
prazer da diversidade (HERBERT DANIEL, 1989 p.7-8)
Partindo da premissa de que a sexualidade é uma construção
social como afirmamos ao longo desse trabalho, a fala de Herbert
Daniel já na introdução do seu livro autobiográfico: ―Vida antes da
morte”, demonstra que o militante e o movimento gay esperavam uma
resposta para crise de saúde a partir da epidemia de HIV/Aids, de
forma democrática e respeitando a diversidade sexual da sociedade
brasileira.
Pinheiro e Couto (2012) recuperam a preocupação em relação a
abordagem dos homens na área da saúde a partir do contexto social da
epidemia de HIV/AIDS. Afirmam que é preciso enfraquecer a
resistência dos homens a medicina e aos serviços de saúde.
Foi a epidemia da aids que motivou a inserção dos
homens nos debates sobre saúde sexual, ao se apresentar
como uma infecção sexualmente transmissível (IST)
incurável.(...) No caso da aids, desde o início da
epidemia no Brasil, a infecção acomete mais a
população masculina do que a feminina. Em 1985, o
número de casos de aids atingia uma proporção de 26
41
homens para uma mulher. Embora a discrepância entre
os sexos tenha diminuído ao longo do tempo, chegando a
razão de 1,7/1 em 2010, a incidência ainda prevalece
entre os homens (PINHEIRO e COUTO, 2012 p. 02).
A descrição de Weeks (2015) a respeito do cenário social durante
a época em que a AIDS vivia seu apogeu midiático, demonstra-nos um
pouco sobre o estigma que as pessoas vivendo com AIDS carregavam e
carregam ainda hoje.
Já inicia seu artigo ―O corpo e a sexualidade”, com o seguinte
parágrafo: ―Comecemos como uma imagem que tem assombrado nossa
imaginação na última década: os olhos afundados, os corpos
macilentos, a coragem aparentemente arruinada das pessoas com
AIDS‖ (WEEKS, 2015 p.37).
Em poucas palavras, esse autor recupera os momentos difíceis e
o impacto que a epidemia de AIDS representou para a população, que
de início, atribuía à doença apenas aos homossexuais e que, mais
tarde, viria a atingir todos os seguimentos da população, derrubando,
assim, preconceitos culturalmente construídos em torno dos
homossexuais quanto a essa infecção do sistema imunológico humano.
Assim:
Numa época na qual assistimos, como nunca antes, a celebração de corpos
saudáveis perfeitamente harmoniosos, uma nova síndrome emergiu e
devastou o corpo. Estava estreitamente conectada com o sexo – com atos
através dos quais o vírus HIV poderia ser transmitido. Muitas pessoas, e
não apenas na impressa sensacionalista, apresentavam a AIDS como um
efeito necessário do excesso sexual, como se os limites do corpo tivessem
passado no teste da ―perversidade sexual‖. De acordo com os mais óbvios
comentaristas, era a vingança da natureza contra aqueles que transgrediam
seus limites (WEEKS, 2015, p. 37).
42
Porém, o fato das primeiras pessoas detectadas com o vírus
HIV terem sido os homossexuais, marcou profundamente as formas de
se pensar políticas públicas para os homens.
Com o surgimento da aids, a comunidade gay foi tomada
pelo medo e pela confusão diante do impacto devastador
desse novo agravo, dos discursos a seu respeito e das
recomendações feitas. Além do adoecimento e da morte,
a aids implicava renovadas perseguição e estigmatização
da homossexualidade. Notadamente, os gays eram um
grupo a quem os líderes governamentais, pesquisadores
e médicos não queriam estar associados. A postura
adotada por esses responsabilizava os padrões da
sexualidade gay pelo surgimento e transmissão da
doença (PINHEIRO apud TREICHLER, 1999, p.55).
Atualmente, diante do preconceito que os portadores de HIV
afirmam viver, o corpo é visto como reduto de pudores e de uma moral
conservadora demonstrando assim, que quando uma doença estiver
ligada ao sexo, seu portador cairia, ou cai no ardiloso conceito de
―perversão‖ sendo que, qualquer doença que ameace a vida,
independente da forma ou da via pela qual contraiu a mesma, deveria
ser motivo de preocupação.
Mesmo diante de casos da doença em outros segmentos da
população a epidemia continua, para os desinformados, a ser
apresentada como um problema dos homossexuais e não dos
heterossexuais.
Nessa direção, a construção da aids, com seu expressivo
caráter ―homossexualizado‖ ou homofóbico, pode ser
encarada como parte de uma tradição. Nesse caso, trata-
se da tradição conformada pela efetivação histórica da
heteronormatividade vinculada à reprodução e à
desqualificação de qualquer outra expressão sexual.
Além disso, fazem parte dessa tradição uma preocupação
em relação à moral em termos mais amplos e, mais
especificamente, à libertação sexual dos anos 1960 e à
43
expressividade da sexualidade gay. (PINHEIRO:
2015,p.52)
O cinema tem retratado a luta dos portadores de HIV diante do
estigma que se estabeleceu com a epidemia da AIDS entre as décadas
de 1980 e 1990. Philadelphia (Jonathan Demme, 1993), Holding the
Mam (Neil Armfield, 2015), The Normal Heart (Ryan Murphy, 2015) e
Clube de Compras Dallas (Jean-Marc Vallée, 2013) abordam de forma
impressionante o tema sendo que, Clube de Compras Dallas foi o único
a falar de AIDS no universe heterosexual.
Um dos primeiros filmes a abordar o tema da AIDS foi
Philadelphia no ano de 1993, época em que os portadores de HIV e os
doentes de AIDS tentavam conviver com a dor do preconceito e com a
esperança de uma cura que ainda não chegou.
O diretor do filme, Jonathan Demme traz a história fictícia de
um advogado homossexual vivido pelo ator Tom Hanks onde seu
personagem, Andrew Backett, que esconde sua sexualidade assim como
também sua sorologia até que a primeira macha, relacionada ao
Sarcoma de Kaposi, tipo de câncer de pele que atinge pessoas com
baixa imunidade aparece em seu rosto.
Andrew inicia assim, uma difícil jornada em busca de um
advogado que o defenda perante a justiça, pois o mesmo foi demitido
de seu emprego, supostamente por ser portador de HIV.
O filme impressiona pelo fato de que, o advogado que o aceita
defender, Joe Miler, interpretado pelo ator Denzel Washigton
demonstra ser homofóbico e não se identificar com a causa a princípio.
Porém, com o desenrolar da trama Joe Miler inicia uma
verdadeira odisseia contra o poderoso escritório de advocacia para o
qual seu cliente trabalhava.
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As cenas são impressionantes e comoventes, o momento em que
Andrew tira a camisa diante do tribunal para mostrar as manchas do
sarcoma de kaposi espalhadas pelo seu corpo é uma delas.
Durante todo o desenrolar da história, seus personagens, ao
falarem sobre a sexualidade dos homossexuais expressam a opnião de
que o ―comportamento imprudente‖ seria a causa da epidemia de HIV.
―Quero saber tudo sobre a vida pessoal dele... a que grupos ou
organizações aberrantes ele pertencia...‖ essa é uma das falas do dono
do escritório para o qual o personagem principal trabalhava.
Ao final do filme o júri decide que houve discriminação no ato
da demissão de Andrew e estabelece uma multa significativa para os
padrões da época, porém, o que mais impressiona neste filme, é a
coragem de atores e equipe técnica do filme ao trabalhar com
competência tema tão relevante para a sociedade e trazer
questionamentos e debates como homofobia, homossexualidade e
AIDS.
Heterossexualidade e homossexualidade aparecem como
importantes conceitos na demarcação entre a sexualidade antiga e
moderna por causa dos valores sócio históricos de relação de poder
que esses termos trazem em si. De acordo com Jeffrey Weeks:
Os dois termos foram cunhados, ao que parece, pela
mesma pessoa, Karl Kertbeny, um escritor austro-
húngaro, e foram usados pela primeira vez
publicamente, por ele, em 1869. O contexto no qual
esses neologismos emergiram é importante: eles foram
desenvolvidos em relação a uma tentativa anterior de
colocar na pauta política da Alemanha (que em breve
seria unificada) a questão da reforma sexual, em
particular, a revogação das leis antissodomitas. Eles
eram parte de uma campanha embrionária,
subsequentemente assumida pela disciplina da
sexologia, então em desenvolvimento, de definir a
homossexualidade como uma forma distintiva de
45
sexualidade: como uma variante benigna, aos olhos dos
reformadores, da potente mais impronunciada e mal
definida noção de ―sexualidade normal‖ (aparentemente,
outro conceito usado pela primeira vez por Kertbeny).
(...) O desenvolvimento desses termos deve ser visto,
por conseguinte, como parte de um grande esforço, no
final do século XIX e no começo do século XX, para
definir mais estreitamente os tipos e as formas do
comportamento e da identidade sexuais; e é nesse
esforço que a homossexualidade e a heterossexualidade
se tornaram termos cruciais e opostos. Durante esse
processo, entretanto, as implicações das palavras
mudaram de forma sutil. A homossexualidade, em vez de
descrever uma variante benigna da normalidade, como,
originalmente, pretendia Kertbeny, tornou-se, nas mãos
de sexólogos pioneiros como Krafft-Ebing, uma
descrição médico-moral. A heterossexualidade, por
outro lado, como um termo para descrever a norma até
então pouco teorizada, passou, lentamente, a ser usada
ao longo do século XX – mais lentamente, devemos
notar, do que a palavra que era seu par. Uma norma
talvez não necessite de uma definição explícita; ela se
torna o quadro de referência que é tomado como dado
para o modo como pensamos; ela é parte do ar que
respiramos. (..) a discussão sobre termos, no final do
século XIX, assinala um novo esforço para redefinir a
norma. Uma parte importante desse processo centrava-se
na definição do que constitui a anormalidade. Os dois
esforços – a redefinição da norma e a definição do que
constitui anormalidade – estão inextricavelmente
ligados. (...) Essa definição era, em parte, um
empreendimento sexológico. A sexologia tomou a si
duas tarefas distintas ao final do século XIX. Em
primeiro lugar, tentou definir as características básicas
do que constitui a masculinidade e a feminilidade
normais, vistas como características distintas dos
homens e das mulheres biológicos. Em segundo lugar,
ao catalogar a infinita variedade de práticas sexuais, ela
produziu uma hierarquia na qual o anormal e o normal
poderiam ser distinguidos. Para a maioria dos pioneiros,
os dois empreendimentos estavam intimamente ligados:
a escolha do objeto heterossexual estava estreitamente
ligada ao intercurso genital. Outras atividades sexuais
ou eram aceitas como prazeres preliminares ou eram
condenadas como aberrações. (LOURO et al., p. 61-63)
Para este segmento da sociedade – população LGBT - formas de
enfrentamento se expressaram e se expressam diante de uma sociedade
machista e moralista. O movimento de gay e lésbicas estabelece uma
46
luta histórica no enfrentamento do HIV/AIDS e na busca por direitos
iguais na década de 80 do século passado.
Richard Parker (2015) recupera a militância do movimento
gay que desde a década de 60, principalmente nos Estados Unidos,
lutam por direitos civis como o direito ao casamento, herança,
compartilhamento de planos de saúde, direitos reprodutivos, direito à
adoção e consequentemente o direito à licença paternidade.
Sobre essa militância durante a década de 1980, um dos filmes
mais recentes é The Normal Heart (Ryan Murphy, 2015) que mostra a
luta dos homossexuais para obter apoio do Estado de Nova Iorque e do
Governo dos Estados Unidos denunciando assim a omissão das
autoridades diante da “peste gay”. Neste mesmo filme a fala de um
dos personagens é marcante ao dizer: ―somos bombas-relógio
ambulantes à espera de algo que nos estabilize‖.
Essa fala evidencia o medo que assolava os gays diante,
principalmente, do sintoma de maior visibilidade, o Sarcoma de
Kaposi, tipo de câncer que atinge o sistema imunológico debilitado.
Os efeitos devastadores de uma doença que ainda não se conhecia
nenhum tratamento eficaz e os medicamentos retrovirais ainda não
existiam, faz com que a população conservadora dos Estados Unidos
chame a AIDS vulgarmente de peste gay.
Pensamos ser de grande importância retomar brevemente um
pouco dessa história de luta política que este segmento da sociedade
travou nas ruas, nas instituições e nos próprios redutos gays dos
Estados Unidos. Para isso vamos nos ater a tese de doutorado de
Thiago Felix Pinheiro apresentada em 2015 a Universidade de São
Paulo. Ao trazer a história do termo ―homossexualidade‖ este
pesquisador enfatiza a área da medicina que retira o julgamento com
base na moral cristã e enquadrava os homossexuais no conceito de
―pessoas doentes ou anormais‖.
47
Identificar-se com a cultura e com a ideologia naquele momento
representava uma ―declaração sobre pertencimento‖ um ato político em
relação aos códigos e condutas dominantes. A partir daí estrutura-se
uma vida coletiva articulada por meio de organizadas redes
comunitárias – redes essas que na década de 1980 representaram papel
fundamental no enfrentamento a epidemia de HIV/AIDS – a partir de
um grande movimento pela liberdade gay que culmina com o motim de
stonewall em 1969 onde todo o público do famoso bar nova-iorquino
se organiza, ou não, e reagem contra a polícia que mais uma vez
tentava prender os travestis sob a alegação de que não tinham licença
para comercializar bebidas alcoólicas.
Depois de dois dias de resistência, 28 de julho de 1969 é
considerado um marco na história do movimento gay. No Brasil, a
organização política do movimento gay só foi possível com o
enfraquecimento da ditadura militar no final da década de 1970. O
movimento brasileiro recusa o termo gay para se diferenciar do
estadunidense e passa a adotar o termo entendido.
Como consequência dessa luta o movimento gay coleciona
ganhos históricos como, por exemplo, a despatologização da
homossexualidade retirando essa categoria da lista de doenças mentais
da Organização Mundial da Saúde e no Brasil retira-se essa mesma
classificação do Código de Saúde do Instituto Nacional de Assistência
Médica da Previdência Social (INAMPS) que era fixada como
transtorno sexual.
Na década de 1980 o Conselho Federal de Medicina e o
Conselho Federal de Psicologia deixam de considerar a
homossexualidade como transtorno orientando assim, a prática de seus
profissionais para a não proposição de tratamento e cura da
homossexualidade. (PINHEIRO: 2015, p.46)
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Diante do preconceito a comunidade gay dos Estados Unidos se
vê forçada a criar estratégias de enfrentamento à epidemia de AIDS na
década de 1980 e também, uma década antes, a enfrentar a proliferação
das DST‘s, pois ao sentirem-se discriminados em hospitais públicos
procuravam clínicas particulares onde teriam maior privacidade e
sabiam que seriam atendidos por médicos também gays conforme
indicação de amigos e conhecidos.
Como afirma Pinheiro (2015) apud Brier (2009), Batza (2011) e
King (1993) os ativistas e membros dos grupos gays eram em sua
maioria profissionais da saúde que criaram serviços comunitários,
destinados a atender o público gay em suas demandas relativas ao
tratamento de várias DST‘s incluindo a vulgar ―peste gay‖.
Além dos serviços comunitários, como alternativa de assistência,
a equipe viajava em vans até estabelecimentos gays como bares,
boites, bathhouses e, com o apoio interativo de uma drag queen
ofereciam informações testagem e tratamento relativos à DST se
tornando assim o modelo mais efetivo de prevenção naquele momento.
Essas ―vans‖ são mencionadas também no filme Holding the man
que conta a história de dois jovens que ao entrarem na faculdade em
uma grande cidade australiana entram na militância em favor dos
direitos dos homossexuais no campus da universidade.
O Diretor australiano Niel Armfield em filme produzido para a
televisão mostra a história real do escritor Timothy Conigrave que
durante o ensino médio se apaixona pelo seu colega de turma Jhon
Caleo em 1976.
Jhon está inserido em um ambiente normalmente estigmatizado
como ambiente ―masculino‖ convive com seus colegas do time de
futebol da escola, Timothy, está inserido no ambiente das artes, seus
amigos são os que fazem parte da companhia de teatro, porém, os dois
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estudam num ambiente extremamente conservador: uma escola católica
onde os seus professores são Padres.
O ambiente conservador fica evidente na fala do professor ao
questionar a relação dos dois personagens: ―há pessoas dispostas a
corrigir vocês‖. Em 1988 o casal, já morando em outra cidade e
cursando o nível superior ao fazerem o teste de HIV descobrem que
são portadores do vírus da AIDS.
A partir daí o filme aborda muito mais o sofrimento de um dos
personagens, Jhon, que sofre todas as consequências do sistema
imunológico destruído pelo vírus. O diretor consegue trazer cenas
impactantes como, por exemplo, a demência de uma personagem
coadjuvante durante uma entrevista.
Além disso o modo de uma das mães ao dizer que a cidade de
Sidney, para onde seu filho estava indo morar era ―sinônimo de
AIDS‖. Outra mãe, ao descobrir que o filho tem HIV diz a seguinte
frase: ―que desperdício‖.
Porém o que impressiona mesmo nesse filme é o sofrimento de
Jhon, pois em uma das cenas, os médicos retiram o líquido acumulado
em um de seus pulmões por causa da pneumocócitose, uma das doenças
que geram o quadro clínico para se dizer que o portador de HIV tem
AIDS.
Importante lembrar que, o portador de HIV não desenvolverá
necessariamente a doença: AIDS. Para isso, os mesmos hoje em dia
fazem uso do coquetel imediatamente após a descoberta da infecção
pelo vírus, o que inibe significativamente o desenvolvimento da
doença.
Outra forma de enfrentamento na época foi a utilização de mídia
especializada onde, jornais e revistas gays passaram a publicar
matérias sobre sexualidade saudável articulando cuidado em saúde,
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prazer e comprometimento comunitário visto que a maioria valorizava
a liberdade sexual conquistada pela comunidade gay nas décadas
anteriores.
Pinheiro (2015) apud Batza (2011) afirma que as DST‘s se
agravaram entre os gays devido à falta de uma política de assistência à
saúde capaz de acolhê-los e tratá-los de forma adequada e respeitosa.
―Desse modo, ao custo de muitos embates ideológicos internos, a
comunidade gay pôde desenvolver uma estratégia efetiva de prevenção,
antes mesmo que as instâncias governamentais e acadêmicas
conseguissem fazê-lo.‖ (PINHEIRO 2011, p.57).
Assim:
Outra característica importante do processo de invenção
do sexo seguro diz respeito à articulação entre os
achados científicos e o conhecimento prático e cotidiano
da comunidade gay. Para construir uma resposta a
epidemia, os/as ativistas alimentaram-se de dados
epidemiológicos e informações de outras pesquisas
médicas. Ao mesmo tempo, assim como antes da AIDS,
desafiaram os discursos médico-científicos e
evidenciaram algumas de suas lacunas e inadequações.
Além disso, tais ativistas acionaram o próprio
entendimento sobre suas experiências com doenças
infecciosas, com a sexualidade e com o impacto social e
psicológico do estigma. Lançaram mão, assim, de um
conhecimento ―vernacular‖ acumulado acerca das
práticas, códigos, scripts, dinâmicas etc. da cultura gay.
Esse conhecimento. Além de orientar as iniciativas
comunitárias, possibilitou o trabalho epidemiológico
dos oficiais de saúde pública, a quem os menbros da
comunidade tentavam explicar as convenções sociais
gays, assim como os comportamentos sexuais e sua
geografia urbana. (Pinheiro, 2015 apud Escoffier, 1998
p.59).
A militância do movimento gay efetiva-se ao longo das últimas
três décadas através de ações estratégicas no combate à crise de