11 2023 Publicação ocial da UMA PUBLICAÇÃO PARA QUEM GOSTA E QUER GOSTAR AINDA MAIS DE CACHAÇA! ANO XI E M R E V I S T A Cachaça e religião podem conviver sem pecado? p. 32 Cachaça Revelada: Uma viagem pelos sentidos. p. 40 Reconhecimento da prossão de sommelier de cachaça! p. 44 e mais: 10 anos A discussão de abordagem de gênero tomou força recentemente em outros países e já chegou ao Brasil. p. 21 Cachaça substantivo feminino Retrospectiva da atuação, conquistas, evolução do mercado no período e homenagens. p. 10 Cúpula da Cachaça SAFRA
Perdas e ganhos d epois das comemorações da marca de dez edições consecutivas da Cachaça em Revista, jamais poderíamos imaginar o cenário desafiador que viria a se desenhar nos meses seguintes. De forma abrupta e inesperada, perdemos nosso editor Dirley Fernandes, criador, idealizador e a alma da revista. Profissional de larga experiência, extremamente competente e proativo, conduzia o processo de edição e elaboração da revista com maestria. Nos cobrava reiteradamente a entrega dos artigos no prazo correto, corria atrás das fotos, corrigia a diagramação, dava os retoques finais para que tivéssemos o melhor conteúdo e a melhor apresentação da Cachaça em Revista. Nosso escriba Dirley nos deixou e hoje deve estar gargalhando no Céu nos vendo bater cabeça para, ao menos , nos aproximar da qualidade do seu trabalho. Mal superamos o baque da perda do nosso inestimável editor e, às vésperas da nossa reunião anual, chega de além-mar a notícia da perda do nosso Mestre Derivan, um baluarte da coquetelaria brasileira, incansável defensor da cachaça e dos coquetéis a base de cachaça. Um dos responsáveis pela inclusão da caipirinha na carta de coquetéis da IBA– International Bartenders Association, Mestre Derivan abraçou a causa pela inclusão de outro coquetel brasileiro a base de cachaça, o Rabo de Galo, na carta de coquetéis da IBA e, com o apoio incondicional da Cúpula da Cachaça e seus integrantes, lutou uma verdadeira cruzada Brasil afora, sendo responsável pela Criação do Concurso Nacional do Rabo de Galo, divulgando abrideira
e enfrentando o lobby de algumas associações regionais de bartenders contrárias ao feito. Infelizmente, Mestre Derivan nos deixou antes de ver sua luta consagrada, com a divulgação pela International Bartenders Association da inserção do coquetel Rabo de Galo na carta oficial de coquetéis da entidade. Uma vitória maiúscula com a raça e a cara do nosso querido amigo Mestre Derivan. Por fim, fica também nossa homenagem a Peter Armstrong, um dos fundadores da Cúpula da Cachaça em 2013, que após longa batalha por sua saúde nos deixou também neste ano fatídico. Nada disso, porém, diminui nosso entusiasmo e nossa vontade de seguir em frente, enfrentando novos desafios e divulgando o que de melhor o Brasil produz, a nossa legítima cachaça. Primeira etapa vencida, apesar de todas as dificuldades e contratempos, estamos trazendo a primeira edição da Cachaça em Revista sem nosso editor chefe, mas com a certeza íntima de que se orgulharia de nosso empenho, raça e dedicação. E como somos movidos a desafios e cachaça, em 2024 teremos a 6ª edição do Ranking Cúpula da Cachaça, recheado de novidades e mais uma vez preparado para selecionar e divulgar as 50 cachaças mais queridas do Brasil. Termino com um brinde aos meus companheiros de Cúpula da Cachaça e um brinde especial aos Cúpulos que nos acompanham agora em outro plano. Saúde!!!! Nelson Duarte Presidente da Cúpula da Cachaça
menu 10 10 anos de Cúpula da Cachaça 10 Quem já esteve por aqui 18 21 Cachaça "substantivo feminino" 24 Chão de fábrica, chão de alambique 27 Cachaça e coquetelaria O varejo da cachaça na linha do tempo Meu RG Cachaça revelada: Uma viagem pelos sentidos Reconhecimento da profissão de sommelier de cachaça Uma janela para o mundo Cachaça e religião podem conviver sem pecado? 30 32 37 40 44 47 50 Versinhos caipiras 18 EDIÇÃO Sidnei Maschio COORDENAÇÃO COMERCIAL Nelson Duarte DESIGN & DIREÇÃO DE ARTE Luiz Arkhan EDITORAÇÃO VWZ Comunicação REVISÃO Andréia Gerk JORNALISTA RESPONSÁVEL Sidnei Maschio MTB 12433-SP FOTOS Mateus Verzola e Maurício Motta FOTO CAPA Marcos Zaniboni expediente cupuladacachaca @cupuladacachacaofi c ial cupuladacachaca.com.br 30
1 Altino Farias Engenheiro civil, apreciador de boas cachaças, proprietário da Embaixada da Cachaça, loja varejo/bar localizada em Fortaleza, fundada em dezembro de 2014. 2 Cauré Portugal Responsável Técnico em destilarias, especialista em processos de fermentação, análise sensorial e desenvolvimento de produtos. CEO da Smart Yeast Lab., Biólogo, Doutor em Enologia (Universidad de La Rioja, Espanha) e Ciência de Alimentos (USP), especializado em Microbiologia de Alimentos e Bebidas, com ênfase em leveduras e fermentações. 3 Sidnei Maschio Jornalista especializado em agropecuária, editor e apresentador do Canal Terraviva (Grupo Band), além de poeta, degustador e apreciador de cachaças. 4 Anna Maria Silva | Secretária Executiva Especialista em marketing e captação de recursos para organizações não governamentais e apreciadora de cachaças. 5 Manoel Agostinho Lima Novo Autor dos livros Viagem ao Mundo da Cachaça e A Arte do Blend na Cachaça, atua como professor, consultor e palestrante e é formado em Análise Sensorial pelo Centro Studi Assaggiatori (Brescia, Itália) 6 Nelson Duarte | Presidente Primeiro Master Blender com registro profissional no Brasil, Sommelier de Cachaças, autor do livro “Cachaça de Alambique: uma dose de marketing” e especialista em bebidas destiladas formado pela Wine Spirits Education Trust, de Londres. 7 Jean Ponce Bartender com longa carreira em casas como o DOM e o Brasil a Gosto, hoje comanda o paulistano Guarita Bar, uma das maiores referências da coquetelaria brasileira, entre outras casas. 8 Maurício Maia O Cachacier. Embaixador Global da Cachaça, especialista em cachaças e destilados. Embaixador e jurado do Spirits Selection by Concours Mondial de Bruxelles. Consultor de Destilados. 9 Illan Oliveira Sócio-executivo da Solution Comercial, de São Paulo, distribuidora com um elenco de mais de mil marcas de cachaça. 10 Andréia Gerk Auditora Fiscal Federal Agropecuária do Ministério da Agricultura e Pecuária, engenheira agrônoma, autora e editora de publicações como “A Cachaça no Brasil, Dados de Registro de Cachaças e Aguardentes”, “200anos_200cachaças” (Mapa), atuando em prol da cachaça há 16 anos. 11 Bruno Videira Criador e fundador do Movimento Viva Cachaça, professor, consultor e proprietário do Cachaça Lab, em São Paulo. 12 Nina Bastos Comanda o Bar Jiquitaia, em São Paulo, referência em termos de coquetelaria com cachaça e ingredientes brasileiros. 13 Milton Lima Ativista da Cachaça | criador e proprietário da Cachaçaria Macaúva. a Cúpula 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 8
10 anos de Cúpula da Cachaça capa Por Agostinho Lima Novo 10
udo começou em 2012, numa viagem ao Ceará, quando um grupo de formadores de opinião sobre cachaça foi convidado para uma visita por uma grande produtora daquele estado. Foi o t Um início pretensamente despretensioso :) brilhantismo da organização do evento que chamou a atenção do grupo, em especial, do nosso saudoso Messias Cavalcante, à época, o maior colecionador de cachaças do mundo segundo o "Guiness Book". Uma camiseta "sobrevivente" da primeiríssima reunião, em 2013, que deu origem à revista-piloto. Abaixo o colecionador Messias Soares Cavalcante, também autor do livro "A verdadeira história da cachaça" 12
Messias idealizou a organização de um grande encontro sobre cachaça em São Paulo, mas seu ideal não evoluiu por conta dos altos custos envolvidos, mas a semente foi plantada. Daí pra frente, aconteceu uma reunião despretensiosa e informal em 25 de janeiro de 2013, no Chalé Macaúva, em Analândia, cidade turística do interior de São Paulo, hoje sede oficial da nossa Cúpula da Cachaça. Nesta primeira reunião, o grupo já batizado com o título que o Brasil inteiro conhece, montava e instituía o que é hoje a Cúpula da Cachaça. Ali foi traçada a primeira grande missão do grupo: editar uma revista anual que seria a única a falar somente sobre cachaça. De lá pra cá, ano após ano, a revista trouxe novos e interessantes artigos, envolvendo todos os Integrantes da Cúpula em 2014, ano em que foi realizado o primeiro Ranking 13
Então foi traçada a primeira grande missão do grupo: editar uma revista anual que seria a única a falar somente sobre cachaça. De lá pra cá, ano após ano, a revista trouxe novos e interessantes artigos, envolvendo todos os participantes, dos fundadores até os que foram aos poucos enriquecendo o grupo. participantes, dos fundadores até os que foram aos poucos enriquecendo o grupo. Muitos saíram, outros entraram, o que faz parte do dinamismo de qualquer grupo, incluindo os que, infelizmente, partiram de vez do mundo consagrado da cachaça. Já no segundo ano, ou seja, em 2014, idealizamos o maior e mais abrangente ranking d e c a c h a ç a , e n v o l v e n d o mi l h a r e s d e consumidores Brasil afora, estando hoje já na 5ª edição (este evento acontece a cada dois anos). Com o passar do tempo, a Cúpula da Cachaça foi sentindo a necessidade de ter uma abrangência maior territorialmente falando, com mais representatividade das regiões p r o d u t o r a s , a s s im c o n v i d amo s n o v o s membros. Ainda, a representação feminina também faz parte dos nossos objetivos, o que fez a Cúpula convidar algumas mulheres integradas ao universo etílico da cachaça, que prontamente vieram somar ao nosso grupo. As nossas reuniões presenciais, que ocorrem a cada ano, também tem seu inestimável valor, As 10 edições anuais - 2013 a 2022 - da Cachaça em Revista 14
Reunião na Cachaçaria Macaúva | 2015 15
quando se discute sempre o melhor para o bem da nossa cadeia produtiva. Sem distinção de produtos, já reunimos produtores de vários e s t a d o s e a t é me smo a s s o c i a ç õ e s representativas como o IBRAC (Instituto Brasileiro da Cachaça). Passamos a ter, graças ao nosso trabalho com afinco, transparência e responsabilidade, assento, com direito a voto, na Câmara Setorial da Cadeia Produtiva da Cachaça, do Ministério da Agricultura e Pecuária. Com isto, dentro de nossa evolução, veio a formalização da Cúpula como pessoa jurídica sem fins lucrativos. Que nossa primeira década de CÚPULA DA CACHAÇA tenha contribuído na difusão do consumo responsável e da cachaça de qualidade, produzida em todo o território nacional. Que a nossa Cachaça em Revista e os Rankings da Cachaça sejam instrumentos de veiculação de informação para todos os apreciadores da nossa bebida nacional! Ranking Cúpula da Cachaça 2016 Ranking Cúpula da Cachaça 2014 2018 Ranking Cúpula da Cachaça Passamos a ter, graças ao nosso trabalho com afinco, transparência e responsabilidade, assento, com direito a voto, na Câmara Setorial da Cadeia Produtiva da Cachaça, do Ministério da Agricultura e Pecuária. Com isto, dentro de nossa evolução, veio a formalização da Cúpula como pessoa jurídica sem fins lucrativos. Os selos, conferidos aos rótulos vencedores de cada Ranking, hoje são referência de qualidade no mercado 16
Foto oficial da Cúpula | 2020 A seriedade e a transparência com que é realizado o Ranking chamou a atenção da mídia especializada, como o caderno Paladar, do jornal O Estado de São Paulo (Estadão) 17
O T E M PO PA S S ASabemos que 2023 tem sido um ano difícil e de muitas perdas, não só para este grupo de especialistas, mas para todo o mercado da cachaça. Sem entrar em questões políticas e dificuldades do setor, no ano que a Cúpula comemora 10 anos de sua fundação, achamos que seria importante dar destaque para as pessoas que fazem e fizeram esse mercado e t amb ém p a s s a r am p o r e s t e g r u p o d e profissionais da cachaça. Alguns, apesar de não estarem mais no grupo, continuam por esse Brasil afora prestando importantes serviços ao setor produtivo e ao mercado de forma geral, enquanto outros nos deixaram inexplicavelmente, escreveram seus nomes em pedra na história da cachaça e jamais serão esquecidos. Desde a sua fundação, congregamos as mentes mais brilhantes do universo da cachaça, com notórios conhecimentos e contribuições para o desenvolvimento e crescimento do destilado nacional. Passaram por nossos bancos figuras ilustres como o jornalista e especialista em b e b i d a s Cé s a r Ad ame s , o c o n s u l t o r especializado em cachaça Leandro Marelli, que tem povoado os mais longínquos rincões do país com novas destilarias, o especialista em cana-de-açúcar Glauco Mello, que leva e traz Quem já esteve por aqui Por Maurício Maia omo já cantava em verso e prosa o jingle de um antigo comercial de televisão de um extinto banco gaúcho: “O tempo passa, o tempo voa...” e a Cúpula da Cachaça continua numa boa! c Erwin conhecimento de ponta sobre a produção canavieira de e para os quatro cantos do mundo. Outro membro ilustre que saiu no início deste ano – esperamos que por pouco tempo – é nada menos que o 1º Sommelier de Cachaça do país, Leandro Batista, que faz história e seguidores em diversos bares de São Paulo com suas famosas caipirinhas, quando não visto rodando por aí com sua “bike”. Como foi um ano de perdas para todos nós, gostaríamos de destacar e prestar todas as homenagens aos queridos Cúpulos que, por desígnios da vida, deixaram este plano para estarem em algum lugar apreciando outro tipo de bebida, mas sem nunca deixar de nos guiar e servir de exemplo: Erwin Weimann: falecido em 2019, foi nosso grande mentor e o mais notório Master Blender do país. Deixou um legado de conhecimento e exemplo de conduta que é e deve ser seguido por qualquer profissional que se aventure pelo universo da cachaça. 18
O TEMPO VOADirley Fernandes: nos deixou tragicamente em fevereiro deste ano (2023) e deixa, além de todo o conteúdo de leitura obrigatória em seu site “Devotos da Cachaça”, um curtametragem (o primeiro e único) com o mesmo nome e, seu espírito combativo, justo e democrático. Peter Carl Armstrong: nosso decano da cachaça, que nos deixou em março passado. O mais antigo especialista em cachaça, se manteve em atividade como membro honorário da Cúpula da Cachaça até seus últimos dias e nos deixa um legado de serenidade e amizade. Dirley Peter Derivan Mestre Derivan (Derivan Ferreira de Souza): o maior bartender e profissional de bebidas que já atuou no país, formando gerações d e p r o f i s s i o n a i s e c o n t r i b u i n d o imensuravelmente para a consolidação da cachaça como um destilado global. Foi o único profissional do país a conseguir incluir dois coquetéis com cachaça como drinks clássicos contemporâneos na carta da IBA (da sigla em inglês, International Bartenders Association): a Caipirinha, em 1996, e o Rabo de Galo, em junho deste ano, poucas semanas depois de falecer na cidade de Lisboa, Portugal, após uma bemsucedida passagem pela Europa com o Concurso Nacional Rabo de Galo, criado justamente para dar visibilidade ao drink brasileiro. E ele conseguiu! Deixará seu sorriso, competência e abraço amigo para todos nós. Vale aqui também a lembrança e o carinho a outros dois colegas que, apesar de não serem integrantes da Cúpula da Cachaça, eram membros atuantes da pioneira Confraria de Cachaça Copo Furado do Rio de Janeiro, Paulo Magoulas e José Alberto Kede, que nos deixaram em 2021 e muito contribuíram para o crescimento da cachaça no Brasil e no mundo. Aos que ficam, aos que foram e aos que virão, saúde!
As desigualdades de gênero se fazem cada vez mais presentes em nossa sociedade por uma hierarquia em relação às diferenças entre os sexos, o homem retratado como superior em relação à mulher, com base na natureza anatômica e explicações de caráter religiosoteológico. Isto ajuda a manter as desigualdades, desvalorizando e subalternizando as profissões e as atividades ocupadas por mulheres e pelo gênero feminino permitindo aos homens usufruir melhores salários e oportunidades. A sociedade está ambientada na estipulação de gênero, nas formas assimétricas de como o 'homem' e a 'mulher' devem agir, pensar, se vestir, comer e viver. Aqui, eu acrescentaria BEBER. Um exemplo da abordagem de gênero na cadeia p r o d u t i v a é um e s t u d o r e a l i z a d o p e l a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) no café, onde a mulher está inserida em diversos setores da cadeia produtiva e que estão satisfeitas com a atividade que exercem, conseguindo conciliar trabalho e família, e com elevada autoestima. Outro trabalho foi realizado com a Associação de Mulheres Agroextrativistas do Médio Juruá (AM), no qual as mulheres trouxeram à tona seu incômodo quanto às restrições à participação feminina em etapas específicas das cadeias discussão de abordagem de gênero tomou força recentemente em outros países e já chegou ao Brasil, visto que a Igualdade de Gênero é um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS 5) elencado pela Organização das Nações Unidas (ONU), com vistas a “Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas” (Agenda 2030). O nosso exercício vem sendo como incorporar esta discussão dentro das políticas públicas existentes e, no caso da agropecuária, nas cadeias produtivas. A CACHAÇA não pode ficar de fora desta discussão. a Por Andréia Gerk Cachaça feminino" "Substantivo 21
produtivas e a invisibilização não só dos trabalhos realizados por elas nas etapas das c a d e i a s , m a s t a m b é m d o p a p e l d e mantenedoras da existência dessas atividades através dos trabalhos domésticos de produção e reprodução da vida. A perspectiva da igualdade entre homens e mulheres vem ganhando espaço no que se refere à participação das mulheres no âmbito produtivo, reprodutivo e social. Questões relativas ao acesso e uso da terra e às políticas de fomento às atividades produtivas das mulheres rurais ganharam mais peso no debate sobre alternativas de desenvolvimento. A maior visibilidade e valorização das mulheres nas atividades produtivas poderia trazer benefícios no que diz respeito ao seu bem-estar e, em um ní vel mac ro, ao desenvol v imento rural sustentável com crescimento econômico. Já havia definido o título para este artigo, quando me deparei com um quase homônimo “Cana Substantivo Feminino” que realizou, agora em 2023, junto com CanaOnline e Ação Consultoria de Educação Corporativa a pesquisa “Mulheres da Cana-de-Açúcar”, um estudo inédito sobre a presença das mulheres na cadeia bioenergética – envolvendo unidades produtoras, empresas fornecedoras de produtos e serviços e produtoras rurais. Apesquisa evoluiu para o livro “Mulheres da Cana-de-Açúcar”, por Luciana Paiva, que, já na introdução, traz: “os dicionários definem a cana-de-açúcar como um substantivo feminino. Isso explica a sua vocação em ser a genitora de tantos produtos, além de se destacar nos aspectos: resiliência, transformação e inovação”. O que move o livro, já que a cultura canav ieira é feminina, é saber qual a participação da mulher no mundo da cana-de- açúcar. Aqui, nós queremos ir um pouco além da cana: qual a participação da mulher no mundo da CACHAÇA? Como estratégia para alcançarmos a igualdade de gênero, é possível traçarmos alguns objetivos iniciais, como: combate ao estereótipo de gênero; fim das disparidades no mercado de trabalho, principalmente salariais; participação ativa das mulheres em todos os fóruns de discussão sobre cachaça. Igualdade em direitos, responsabilidades e oportunidades. Segundo dados da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) 2022, o número de mulheres no Brasil é superior ao de homens. Apopulação brasileira é composta por 48,9% de homens e 51,1% de mulheres. Entretanto, no estudo “Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil”, realizado em 2021, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres têm uma menor participação na força de trabalho, apesar de maior escolaridade, participam pouco da ocupação de cargos gerenciais e menos ainda da vida política. A CACHAÇA valoriza suas mulheres? Qual ação você pode fazer na gestão do seu produto/marca para diminuir as disparidades existentes? Como trazer para a participação e dar visibilidade à mulher num universo ainda predominantemente masculino? Por fim, que a discussão de gênero aconteça nas nossas conversas, no nosso cotidiano, quem sabe inspirando pesquisas e trabalhos sobre o tema. O que queremos é que gênero feminino e cachaça não precisem de justificativas para estarem juntos, posto que estamos presentes em todas as fases da cadeia produtiva e pós-produção. Um brinde! Lógico que com cachaça de qualidade, com registro no Mapa, e, de preferência, com a participação da mulher em todos os processos, da cana ao copo. O que queremos é que gênero feminino e cachaça não precisem de justificativas para estarem juntos, posto que estamos presentes em todas as fases da cadeia produtiva e pós- produção. 22
1. Aline Bortoletto, Empresária, Cientista, Sommelière, Responsável Técnica e criadora de conteúdo. 2. Ana Laura Guimarães, Sommelière e criadora de conteúdo. 3. Ana Marta Sátyro, Produtora e Responsável Técnica. 4. Ariane Penna, Empresária. 5. Celia Miranda, Produtora. 6. Claudia Fernandes, Especialista e Confreira. 7. Deise Novakoski, Sommelière. 8. Dirlene Pinto, Produtora, Especialista e Confreira. 9. Fernanda Melo, Consultora, Sommelière e criadora de conteúdo. 10. Gabriela Silva, Alambiqueira e Produtora. 11. Karla Cristina Rodrigues Cardoso Morais, Empresária, Cientista, Sommelière e Responsável Técnica. 12. Letícia Macedo, Mixologista (foto: Junot Lacet Filho). 13. Lorena Simão, Empresária, Cientista, Sommelière e Responsável Técnica. 14. Luiza Saliba, Especialista e Empresária. 15. Maria Julia Baracho, Empreendedora. 16. Rosana Romano, Produtora, Especialista e Confreira. 17. Rosane Corrêa Ferreira, Especialista e Confreira. 18. Rosangela Villar Moretti, Produtora. Mulheres da Cachaça nas suas mais diversas áreas de atuação, da cana ao copo! 1816 15 14 13 12 11 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 17 23
chEntrevistador – Rafinha, conta para a Cachaça em Revista quem foi que te ensinou a alambicar? Rafinha – Tudo que aprendi foi com o técnico Bruno Zille. E – Como foi sua primeira cachaça, alguém conseguiu beber? R– Sim, foi muito boa, lamento não ter guardado um pouco pra provarmos agora na entrevista. E – Conta quais as dificuldades que você tem na profissão e o que te traz satisfação na sua vida profissional. R– Amaior dificuldade é fermentar aqui na baixa temperatura da região e, o mais gratificante, é ver a magia acontecendo na saída do alambique. Chão de fábrica, chão de alambique Por Agostinho Lima Novo p entrevista Rafael Entrevistador – Rafinha, conta para a Cachaça em Revista quem foi que te ensinou a alambicar? Rafinha – Tudo que aprendi foi com o técnico Bruno Zille. E – Como foi sua primeira cachaça, alguém conseguiu beber? R– Sim, foi muito boa, lamento não ter guardado um pouco pra provarmos agora na entrevista. E – Conta quais as dificuldades que você tem na profissão e o que te traz satisfação na sua vida profissional. R– Amaior dificuldade é fermentar aqui na baixa temperatura da região e, o mais gratificante, é ver a magia acontecendo na saída do alambique. ara que a nossa branquinha chegue às nossas tacinhas, ela precisa ser bem elaborada lá atrás nas dornas e destiladores. Uma peça importante num engenho de cachaça é o alambiqueiro, profissional que se encarrega de fermentar e destilar o nosso produto cachaça. Por isso, neste ano, resolvi mostrar para os leitores da nossa Revista quem são esses meninos e meninas que esquentam o umbigo no destilador, para trazer a nossa purinha para a taça. Entrevistei quatro alambiqueiros para falar um pouco sobre a profissão. O primeiro deles foi o alagoano Rafael Antonio da Silva, de 27 anos, que alambica a Cachaça Pindorama, desde 2014, na cidade de Engenheiro Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro: entrevista 24
ãoDepois, fomos a Papagaios, nas Minas Gerais, entrevistar Washington Maciel que coloca na nossa taça a Cachaça Famosinha de Minas. Mineiro de Pará de Minas, com 36 anos, alambicando há quatro anos: Entrevistador – Washington, como você aprendeu a fazer cachaça? Wa s h i n g t o n – F i z c u r s o d e me s t r e alambiqueiro, mas foi o dia a dia no alambique que mais me ensinou. E – Tem mais algum alambiqueiro na sua família? W – Não, somente eu mesmo, mas pretendo ensinar a profissão aos meus filhos para darmos continuidade à produção. E - Conta pra Cachaça em Revista um pouco sobre a sua profissão. W - Me apaixonei pela área quando ainda era cortador de cana, quando fui transferido para a alambicagem, fiz curso e me dediquei ao ofício. Minha maior dificuldade é manter o padrão de qualidade, que é nosso diferencial, e, a g r a t i f i c a ç ã o v e m q u a n d o v e m o s o reconhecimento do nosso produto no Brasil e fora dele. Voltamos para o estado fluminense, indo a Campos dos Goytacazes entrevistar a Maria Júlia Rodrigues Caetano, nossa a l a m b i q u e ir a ( i s t o m e s m o , v a i s e acostumando, temos muitas mulheres na produção de cachaça) da Cachaça Barra Velha. Maria Júlia tem só 21 anos e já alambica cachaça: Entrevistador – Maria Júlia, quem te ensinou a fazer cachaça com qualidade? Maria Júlia – Meu pai, que já produzia cachaça há muitos anos, ele me deu como maior herança a arte de alambicar cachaça. E – Conta para a Cachaça em Revista, como foi sua primeira alambicada, alguém conseguiu degustar? MJ – Foi muito boa, talvez por ser a primeira, acho que a melhor que degustei, fiz sozinha, meu professor-pai apenas assistia. E – Conta um pouco sobre esta profissão que você abraçou recentemente. MJ – Gosto muito do que faço, e assim como meu pai me honrou com esta profissão, quero fazer o mesmo com meus filhos quando vierem. Hoje sinto ainda alguma dificuldade com controle de temperatura, já que nosso alambique é fogo direto, mas esta dificuldade é superada quando vemos gotejar uma cachaça de excelente qualidade e colecionar elogios dos nossos consumidores. Para fechar nossa entrevista, voltamos às Minas Gerais, mais precisamente na cidade de Guarará, onde entrevistamos Patrícia Duim, mais uma mulher entre tantas à frente da produção de cachaça. Patrícia nasceu em Bicas, há 53 anos, e hoje, com muito carinho, alambica a Cachaça Pereirinha: Washington Maria Júlia Depois, fomos a Papagaios, nas Minas Gerais, entrevistar Washington Maciel que coloca na nossa taça a Cachaça Famosinha de Minas. Mineiro de Pará de Minas, com 36 anos, alambicando há quatro anos: Entrevistador – Washington, como você aprendeu a fazer cachaça? Wa s h i n g t o n – F i z c u r s o d e me s t r e alambiqueiro, mas foi o dia a dia no alambique que mais me ensinou. E – Tem mais algum alambiqueiro na sua família? W – Não, somente eu mesmo, mas pretendo ensinar a profissão aos meus filhos para darmos continuidade à produção. E - Conta pra Cachaça em Revista um pouco sobre a sua profissão. W - Me apaixonei pela área quando ainda era cortador de cana, quando fui transferido para a alambicagem, fiz curso e me dediquei ao ofício. Minha maior dificuldade é manter o padrão de qualidade, que é nosso diferencial, e, a g r a t i f i c a ç ã o v e m q u a n d o v e m o s o reconhecimento do nosso produto no Brasil e fora dele. Voltamos para o estado fluminense, indo a Campos dos Goytacazes entrevistar a Maria Júlia Rodrigues Caetano, nossa a l a m b i q u e ir a ( i s t o m e s m o , v a i s e acostumando, temos muitas mulheres na produção de cachaça) da Cachaça Barra Velha. Maria Júlia tem só 21 anos e já alambica cachaça: Para fechar nossa entrevista, voltamos às Minas Gerais, mais precisamente na cidade de Guarará, onde entrevistamos Patrícia Duim, mais uma mulher entre tantas à frente da produção de cachaça. Patrícia nasceu em Bicas, há 53 anos, e hoje, com muito carinho, alambica a Cachaça Pereirinha: 25
Entrevistador – Patrícia, desde quando você alambica e onde você aprendeu a arte do ofício? Patrícia – Desde 2004, quando fiz o curso de mestre alambiqueiro no Senar (Ser v i ço Nac ional de Aprendizagem Rural), depois associei os ensinamentos à prática que meu marido já possuía, e nunca mais parei. E - Tem muita diferença entre a primeira cachaça que você alambicou e a que você produz hoje? P – Sim, claro, parece que a cada alambicada a cachaça vem melhor, a gente vem sempre agregando novos conhecimentos e mais informações, buscando melhoria contínua na qualidade. E – Conte um pouco como é produzir cachaça, dificuldades e gratificações. P – A profissão é gratificante, desempenhada com carinho e prazer, nosso desafio é a mão de obra especializada e qualificada, para superar isto, todos os membros da família estão envolvidos, colaborando em todas as funções desde o plantio da cana até o marketing e comercialização. Meu objetivo sempre foi alavancar e valorizar a cachaça, despertando o consumo responsável e prazeroso, sinto que estou conseguindo, mas ainda temos muito que fazer pela nossa bebida. Patrícia
m uito se diz que cachaça boa é para ser degustada e não para fazer caipirinha. Por que usamos cachaça de pior qualidade para fazer coquetel? Para a cozinha fazemos o oposto. Quando vamos preparar um jantar especial, passamos horas em mercados e feiras escolhendo os melhores ingredientes. Para a coquetelaria não deveria ser diferente. Com ingrediente bom e boa técnica, fazemos maravilhas líquidas e, quando juntamos com o fator ingestão de álcool, deveríamos tomar mais cuidado ainda para decidir o que consumir. Para escolher a cachaça ideal para seu coquetel, é necessário repertório – e repertório se conquista testando e provando. Vamos começar a pensar que tipo de coquetelaria te agrada e iniciar os testes? Se ainda não se aventurou no mundo da cachaça ou quer conquistar alguém que ainda não mergulhou nesse universo, acredito que a coquetelaria é o lugar ideal para iniciantes: quando misturamos frutas e temperos com boa diluição, tudo fica mais fácil e menos agressivo. Difícil quem não aprecie uma boa caipirinha ou uma batidinha de frutas, que são coquetéis de fácil execução e super populares. Para esse tipo de bebidas frutadas e cheias de frescor, as cachaças que melhor desempenham são as brancas, já que o objetivo aqui é que a fruta brilhe e o frescor apareça. Agora vem a parte mais difícil: você já parou para analisar a quantidade de cachaças brancas que existem no mercado? E cada uma tem um tipo de sabor, algumas são bem potentes no álcool, outras nem tanto, algumas tem a cana bem presente, outras têm características mais salgadinhas, que deixam o coquetel bem interessante. De t e r m i n a d a s c a c h a ç a s , m e s m o s e n d o consideradas brancas, descansam algum tempo em madeiras. Isso acontece pois algumas madeiras não passam muita coloração para a cachaça, como, por exemplo, o freijó (muito usado nas cachaças paraibanas) e o jequitibá rosa (visto em cachaças pelo Brasil todo). Esses são dois bons exemplos de madeiras para começar a brincadeira com as frutas. Sobre teor alcoólico, quanto maior o álcool, maior a potência do resultado. Coquetéis que exigem quantidades grandes de gelo normalmente vão melhor com cachaças com maior potência alcoólica – assim não perdem estrutura de corpo e de sabor após a diluição. Quando pensamos em coquetéis mais encorpados, com menos diluição de gelo, como o COQUETELARIA Cachaça e Por Nina Bastos 27
Rabo de Galo, as cachaças envelhecidas em madeiras mais tradicionais são ideais para o preparo. Como exemplo, temos carvalho europeu e americano, que são clássicos mundiais e, não à toa, trazem muita elegância para o produto. Falando em madeiras brasileiras, temos uma variedade infinita para envelhecimento. Segue um breve resumo: escolha o bálsamo quando quiser notas herbáceas no coquetel; carvalho para notas mais amendoadas; amburana traz dulçor e notas de baunilha. Quando falamos de coquetéis mais quentes, a presença da madeira traz mais leveza e elegância, fazendo com que fique mais fácil o consumo. Comece sua aventura nesse mundo da coquetelaria cachaceira com os coquetéis clássicos e, quando se sentir seguro nesse tema, não deixe de se aventurar com novas experiências e sabores. Uma boa dica é pegar receitas internacionais, que levam outros destilados como protagonistas, e trocar pela cachaça. É quase garantido que, se usar a teoria do frescor com brancas e amargor e corpo com envelhecidas, o resultado será um sucesso! Testa e me conta depois? Vou deixar aqui uma receitinha fácil e que agrada todo mundo para você fazer no próximo churrasco em casa: Ba t a todos os ingr edi ent e s na coqueteleira com gelo e bastante força, o chá mate batido com firmeza forma uma espuma natural e com textura deliciosa. Coe e sirva em uma taça coupé. 40 ml Cachaça envelhecida em Bálsamo 20 ml Cachaça envelhecida em Jaqueira (pode substituir por Jequitibá Rosa) 20 ml de limão Tahiti 18 ml mel de mandaçaia (pode substituir por outro mel de abelha nativa) 50 ml de chá mate MANDASOUR receita I N G R E D I E N T E S P R E P A R O
O varejo da cachaça na linha do tempo Por Altino Farias stou há nove anos à frente da “Embaixada da Cachaça” , loja de varejo especializada em cachaças, que fundei em dezembro de 2014. A inspiração veio de um passeio que fizemos, eu e a Gorette, minha mulher e sócia, a Paraty, RJ. O colorido e alto astral daqueles empórios encheram nossos olhos de luz, misturando cachaças, molhos, doces e mais um mundo de variedades. e Passados alguns anos, veio a ideia de montarmos uma loja em Fortaleza, CE, onde se vendesse cachaças de qualidade, exclusivamente, preenchendo um nicho de mercado até então inexplorado nesse formato em nossa cidade. Junto à loja, dispomos de serviço de bar, com petiscos e bebidas em geral, e densa programação cultural. 30
Sempre gostei de cachaça, mas até então era um s imples consumidor. Ao tornar-me revendedor, logo passei à categoria de apreciador. Nosso primeiro estoque foi constituído de rótulos que eu já conhecia, ou ouvira falar muito bem. O ineditismo da casa deslumbrava quem nela chegava, mas… comprar e consumir era outra história, e, nesse primeiro momento, a atividade de bar foi essencial para a casa se manter e se desenvolver. Nossa parceria com o tímido e restrito público consumidor começou de imediato, pois o assunto “cachaça” despertou grande interesse, p r o v o c a n d o uma f r e n é t i c a t r o c a d e informações: nós contribuindo com o básico sobre a bebida, e clientes sugerindo rótulos para aumento do nosso mix. E o tempo foi passando, passando... B a s e a d o n a s i n d i c a ç õ e s d e ami g o s e c l ientes , em pesqui sas de mer cado e bom relacionamento com produtores e distribuidores,aumentamos consideravelmente a oferta de rótulos, porém, como muitos deles eram ilustres desconhecidos nessas terras de Alencar, repousaram em nossas prateleiras por um bom tempo, fazendo uma parte do estoque girar muito lentamente. É notável a mudança na venda de varejo de nove anos para cá. Naquele tempo, nossa clientela era composta de bebedores habituais, muitos curiosos, uns poucos iniciantes e menos jovens ainda. Mas esse panorama mudou! Durante a pandemia, houve uma enxurrada de lives e shows on-line, e algumas marcas de cachaça tiveram uma grande exposição ao serem divulgadas por artistas famosos e populares. A cachaça de alambique, que já vinha ganhando espaço, passou a despertar mais interesse e ter uma maior procura no varejo, ficando mais próxima e conhecida do grande público. Passada a tempestade do coronavírus, a cachaça conseguiu manter posição, pois muitos consumidores passaram a perceber sua qual idade e versati l idade, tornando-se bebedores habituais. Mas ainda há muito o que fazer para expandir o mercado interno consumidor da bebida. Além da qualidade dos produtos, o público precisa ser municiado de muita informação para per ceber es sa qualidade, e os produtores precisam realizar ações institucionais em conjunto para “botar a cachaça na boca do povo”, e o governo precisa entender que o setor merece uma atenção especial para se desenvolver, um tratamento diferenciado, afinal, a cachaça está entre nós há quase quinhentos anos, esteve presente em todos os momentos da nossa história e é a cara do Brasil. Saúde a todos e... Boas doses!
O inciso VIII do artigo 5º da Constituição Federal estabelece que, “- ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;" na prática, declara o Brasil um estado laico, onde impera a liberdade religiosa, prática saudável de coexistência de adeptos dos mais variados credos. Assunto controverso, sempre que se fala em bebida alcoólica e, em especial, na cachaça, logo se associa a práticas pecaminosas e pouco recomendadas aos adeptos das mais diversas correntes religiosas cristãs, foco deste artigo, por representar a grande maioria dos adeptos de alguma forma de prática religiosa. Sendo o próprio autor deste artigo cristão Cachaça e Religião podem conviver sem pecado? Por Nelson Duarte emonta à época do descobrimento o uso, no território brasileiro, de fermentados e aguardentes em rituais religiosos. Os indígenas já utilizavam seu cauim em rituais de purificação e comemorações e, posteriormente, os escravos trouxeram com eles rituais de sua terra natal, que, na maioria dos casos, se valia da aguardente como parte importante do rito. r evangélico praticante, me sinto ao mesmo tempo à vontade e reprimido em minhas manifestações, posto que vão de encontro à opinião da maioria de meus irmãos de fé. A bebida faz parte da religião cristã no Brasil desde a celebração da primeira missa em território brasileiro, celebrada pelo frei Henrique Soares de Coimbra em Porto Seguro, onde o vinho foi usado pelos jesuítas na celebração da comunhão e assim continuou em todas as missas, prática que seguiu atual até a entrada em vigor da Lei nº 11.705, de 19 de junho de 2008, mais conhecida como Lei Seca, quando o vinho usado na missa foi substituído por suco de uva, porém mantendo a simbologia do sangue de Cristo em comunhão com os fiéis. Já pude acompanhar diversas discussões – eu mesmo me envolvi em algumas delas – sobre o antagonismo do consumo de cachaça e a prática da fé cristã. Porém, é falsa a interpretação de que o vinho é mais puro, por isso tolerado nos rituais religiosos. Existem hoje vários estudos que comprovam que o que muda é a concentração alcoólica, porém o álcool presente no vinho, na cerveja e na cachaça é o mesmo: etanol ou álcool etílico. Em uma lata de 350ml de cerveja (teor alcoólico de 5%), em uma taça de 150ml de vinho (teor alcoólico de 12%) ou em uma dose de 40ml de cachaça (teor alcoólico de 40%), a quantidade de álcool é a mesma, ou seja, 14g de álcool, portanto, é necessário desmistificar o senso comum de que existem bebidas fortes e bebidas fracas. Se é assim, por que então demonizar a cachaça? Aí eu pergunto ao amigo leitor: onde diz na Bíblia que não pode beber? A Bíblia, livro sagrado para os cristãos, não 32
condena o consumo do álcool. Diversas são as passagens em que se menciona o consumo do vinho, pois na época era desconhecida a tecnologia da destilação e, assim, não existiam a cachaça, o whisky, o gin e tantas outras bebidas destiladas. Tanto no Antigo Testamento quanto no Novo Testamento, Deus se refere ao consumo de bebida alcoólica, muito embora estabeleça princípios a respeito do seu consumo. Ele não condena o uso e, sim, o exagero no consumo. Mais flexível quanto ao consumo de álcool, a igreja católica orienta seus fiéis a evitarem o exagero e não perderem a linha, porém a igreja evangélica, ou melhor, seus seguidores, condenam, de forma veemente, o consumo de uma gota sequer de álcool, associando a práticas pecaminosas e a um desvio da fé. O primeiro milagre de Jesus foi transformar água em vinho numa festa de casamento a pedido de sua mãe. E transformou no melhor vinho. Os cristãos têm a liberdade de beber de tudo, porém, devem fazer com moderação, sem cair no vício, pois conforme o descrito em 1 Coríntios 6:12, “tudo posso, mas nem tudo me convém”, o que pode ser entendido como tudo posso, mas não permitirei que o vício me domine. Temos o livre arbítrio, o que quer dizer que cada um é livre para decidir se vai tomar bebida alcoólica ou não, mas se decidir beber, deve se cercar de cuidados e autocontrole para não exagerar. Não faz muito tempo, escutei uma pregação de uma famosa pastora brasileira que afirmava acreditar que Jesus transformou a água do casamento em suco de uva, pois não ofereceria uma bebida alcoólica aos convidados e a seus seguidores. Imputar a Jesus um engodo é, no mínimo, uma afirmação perigosa. No entanto, na sequência da mensagem, a pastora revelou um sério p r o b l ema d e a l c o o l i smo em f amí l i a , justificando, compreensivelmente, seu repúdio pelo álcool. Também recentemente, um famoso pastor foi entrevistado em um programa semanal da TV b r a s i l e ir a e , a o s e r c o n fr o n t a d o p e l o apresentador com a pergunta “crente pode beber?”, não ousou responder diretamente. Discorreu sobre os malefícios e prejuízos que o alcoolismo pode causar à saúde e à vida familiar e profissional de quem se excede no consumo de álcool, informações largamente difundidas e de amplo conhecimento geral. Francamente, o alcoolismo é uma doença reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e es sas consequênc ias independem da fé professada por quem bebe, até mesmo ateus devem ter controle e evitar excessos. O referido pastor esquivou-se de r e s p o n d e r à p e r g u n t a d i r e t ame n t e , possivelmente sabedor que sua resposta direta influenciaria o comportamento de milhares de fiéis que o seguem nas redes sociais. Até mesmo o Apóstolo Paulo, principal figura do Novo Testamento depois de Jesus, em diversas passagens bíblicas, faz menção ao consumo do vinho por seus discípulos. Talvez a mais contundente delas esteja em 1 Timóteo 5:23, “Não continue a beber somente água, tome também um pouco de vinho, por causa do seu e s t ô m a g o e d a s s u a s f r e q u e n t e s enfermidades”. Tanto no Antigo Testamento quanto no Novo Testamento, Deus se refere ao consumo de bebida alcoólica, muito embora estabeleça princípios a respeito do seu consumo. Ele não condena o uso e, sim, o exagero no consumo. 33
Como se sabe, assim como em Londres na Idade Média, nos tempos da Bíblia o consumo do vinho era comum e, por vezes, aceito como mais saudável que a água, que não recebia qualquer tipo de tratamento. Porém, sempre se deve cuidar para que o consumo da bebida alcoólica não se transforme em um vício perigoso que pode destruir vidas e casamentos. A linha que separa a diversão do vício é muito tênue. Existe uma diferença gritante entre o consumo para diversão numa ocasião especial e do descontrole emocional que gera a necessidade do consumo diário e leva à bebedeira habitual e descontrolada, sem medida, e que precisa ser combatida e tratada como a doença que de fato é. Não há dúvidas que Jesus, em diversas ocasiões, também comia e bebia muito bem. São várias passagens bíblicas que nos permitem tal afirmação, assim como várias condenam o consumo excessivo do vinho, como a passagem de Provérbios 23:29-30, que condena os que demoram bebendo vinho, ou seja, que se excedem e se embriagam. Já ouvi de muitos a afirmação que a cachaça é instrumento do diabo porque é usada em rituais de umbanda e outros ritos de origem afro. Mas também o são o charuto, a farofa e a galinha, e nunca conheci um católico ou um crente que deixou de comer galinha ou farofa por causa disso. Dois pesos e duas medidas, e mais uma v e z a c a c h a ç a l e v a , n um c o n c e i t o preconceituoso, a condenação de arder no fogo eterno. Até mesmo Jesus sofreu a acusação de ser glutão e beberrão por parte da comunidade da época, como se discorre no livro de Mateus, em 11:19. Porém Jesus nunca pecou e era exemplo de homem moderado, que sabia manter o equilíbrio e o bom senso, sem jamais se embriagar ou se viciar na bebida ou se exceder na comida. Não há nenhum escândalo que envolva Jesus e o consumo de vinho. Em Gênesis 9:21-23, o construtor da arca, Noé, é levado pela tentação, conforme nos ensinam as Escrituras: “Um dia Noé bebeu muito vinho, ficou bêbado e se deitou nu dentro da sua barraca. Cam, o pai de Canaã, viu que o seu pai estava nu e saiu para contar aos seus dois irmãos. Então Sem e Jafé pegaram uma capa, puseram sobre os seus próprios ombros, foram andando de costas e com a capa cobriram o seu pai, que estava nu. E, a fim de não verem o pai nu, eles fizeram isso olhando para o lado.” Embora tenha caído em tentação e pecado pelo excesso de vinho, foi o comportamento de seu filho Cam quem desrespeitou o princípio bíblico d e r e s p e i t a r p a i e mã e q u e l e v o u a consequências mais graves e provocou uma maldição em família. Mais uma evidência de que o consumo de vinho não era considerado pecado está em Levítico 10:8-10, que recomenda aos sacerdotes não consumir vinho antes de entrar no lugar sagrado do templo. Portanto, se existe a advertência de não beber vinho antes de uma situação específica, fica subentendido que nas demais ocasiões não era proibido ao sacerdote o consumo da bebida. No caso do Brasil, a principal influência evangélica vem de pastores de origem norte- americana, numa igreja que foi fortemente influenciada pelo episódio da Lei Seca nos Estados Unidos, que vigorou de 1920 a 1933, que determinava a proibição da produção, venda e transporte de bebidas alcoólicas em todo território norte-americano. Essa lei foi promulgada por pressão de grupos religiosos da sociedade local com o intuito de reduzir a violência e criminalidade, porém o efeito foi justamente o contrário. 34
A produção e comercialização clandestinas fomentaram o crescimento do crime organizado nos Estados Unidos, com o surgimento de mafiosos como o lendário Al Capone, e provocou significativo aumento da criminalidade e violência, com uma redução ínfima no consumo de bebidas alcoólicas, até ser revogada em 1933. Já a vertente evangélica de influência europeia é menos radical no que tange ao consumo de bebidas alcoólicas entre seus seguidores, sempre com a mensagem de que a Bíblia condena a embriaguez e não o consumo da bebida alcoólica, posição hoje já aceita e compartilhada por vários pastores e líderes religiosos no Brasil. Como já dito no começo deste artigo, várias religiões são tolerantes ou até mesmo tem a bebida alcoólica – algumas em especial a cachaça – como parte de seus rituais, assim também deve proceder a igreja evangélica, a que mais combate o consumo do álcool na sociedade e entre seus adeptos. Nesse caso, o autor defende a posição de que cada crente deve se avaliar e decidir se beber é pecado para ele ou não. Mas também deve ser prudente antes de condenar a posição de outras pessoas. Já ouvi de muitos a afirmação que a cachaça é instrumento do diabo porque é usada em rituais de umbanda e outros ritos de origem afro. Mas também o são o charuto, a farofa e a galinha, e nunca conheci um católico ou um crente que deixou de comer galinha ou farofa por causa disso.
RG meu Por Milton Lima Pressionados a encontrar uma alternativa, no melhor estilo da expressão “se você não pode com eles, junte-se a eles” o plano dos estrategistas foi criar um coquetel juntando a tradição com a novidade. Definidas então as proporções da mistura, surgiu logo a ideia de se desenvolver um copo especial para garantir que o drink fosse bem executado, com uma marca dosadora pra não ter erro: dois terços de história começa em 1950, com a chegada da Cinzano, indústria italiana que, com olhos na intensificação do movimento de imigração daquele país em direção ao Brasil, que já era uma realidade, não demorou para tentar plantar aqui suas bebidas. No entanto, ao chegarem em São Paulo, os dirigentes da empresa descobriram, com grande surpresa, que o seu vermute já não era mais tão querido pelos italianos que viviam em nossas terras, que tinham sido facilmente seduzidos pela cachaça. E agora, José? a cachaça para um terço de vermute. Ah, lembrou alguém assim de última hora, mas o problema é que aqui no Brasil existe um estranho costume de bater o copo no balcão. Pois então, vamos colocar um fundo grosso no copo para não quebrar, certo? Aí, estando quase tudo resolvido, faltava ainda um nome. E foi assim que, batizado à lá forró (for all), nasceu o Rabo de Galo, tradução ao pé da letra de cocktail, que rapidamente conquistou corações e paladares pelos bares, bodegas e botequins, primeiro da capital paulista e, depois, do Brasil. A minha relação pessoal com o rabo de galo começou no início dos anos 2000, quando eu entrei na faculdade. Eu já tinha lá os meus momentos de escape num botequinho de esquina no Largo 13 de Maio, no bairro de Santo Amaro, na Zona Sul paulistana, e foi lá que eu acabei sendo conquistado, da mesma maneira que os italianos de cinquenta anos antes. Lá pelo final do meu tempo na faculdade, eu conheci o Mestre Derivan, e a sinergia foi tão rápida quanto o preparo de um rabo de galo. Somos taurinos de 10 de maio, fazemos aniversário no mesmo dia. A ficha técnica da O 37
Ramizade estava pronta. Nos encontramos anos depois, já no segundo ano da Cúpula da Cachaça, quando o Mestre começou a semear a ideia de colocar o rabo de galo na IBA, a International Bartenders Association, uma organização internacional que classifica, regulamenta e divulga os clássicos da coquetelaria mundial. Até então, o Brasil só tinha conseguido incluir na lista da IBA a caipirinha, que foi inserida em 1997, com muito limão macerado e muito esforço justamente do mesmo Mestre Derivan. Em pouco tempo, o rabo de galo mudou de patamar e começou a frequentar, além dos balcões das padarias e botecos, também a barra da alta coquetelaria brasileira, caindo no gosto dos bartenders e do público em geral. O Concurso Nacional de Rabo de Galo é hoje uma franquia de sucesso, e eu tive a oportunidade e a honra de participar como jurado em praticamente todas as edições. Um caso curioso aconteceu em 2017, na primeira edição do certame. Estando em São Paulo para compor o júri do concurso, recebi o convite de uma marca de cachaça pra fazer uma rota em bares da capital (rota é uma visita a alguns bares, provando coquetéis com ingredientes da empresa). Juntando uma coisa com a outra, eu tive a boa ideia de beber um rabo de galo em todos os bares da rota! Isso me ajudaria a calibrar o paladar para o dia seguinte e serviria de preparação para a votação. Já no primeiro bar veio a grande surpresa, pelas mãos de Diogo Sevilho (Diogro): ao tomar o primeiro gole eu me vi de volta ao botequinho da faculdade, lá no Largo 13, bem no estilo do desenho animado Ratatouille. Pronto, eu já tinha definido a minha sistemática de votação: o bartender que conseguisse me levar pra mais perto da faculdade teria a minha melhor nota. E quem conseguiu fazer isso foi o capixaba Rafael Welbert, o primeiro vencedor do Concurso Nacional de Rabo de Galo. De lá pra cá muitos rabos de galo encheram meus copos e foram bebidos nos botequinhos das esquinas da vida e também nos estrelados Michelin. E também foi aí que começou uma grande viagem, tanto no sentido literal quanto no figurado. Junto com o meu amigo polonês Leszek Wedzicha, viajei por vários países levando e divulgando a cachaça brasileira, e juntando nesta empreitada a missão de pôr o rabo de galo em evidência lá fora. O sucesso foi enorme, não só pela facilidade de fazer o drink e pela disponibilidade dos insumos necessários para o preparo, mas principalmente pela sua qualidade e capacidade de agradar aos paladares mais exigentes. Preparamos muitos rabos de galo em bares pelo mundo afora, em países como Inglaterra, Alemanha, República Tcheca, Polônia, Portugal, Noruega, Suécia e Áustria, neste último, ao lado da amiga Letícia Nöbauer, a Frau Cachaça, que, aliás, em 2021 foi a primeira mulher vencedora na Quarta Edição do Concurso Rabo de Galo. Nem foi muito difícil fazer os gringos se apaixonarem pelo nosso rabo de galo, que acabou entrando em várias cartas de drinks de bares dos lugares por onde passamos. Anossa história chegou ao seu ponto culminante q u a n d o o Me s t r e De r i v a n , n um f e i t o extraordinário para a cachaça e para a coquetelaria brasileira, realizou o primeiro Concurso Internacional de Rabo de Galo. Foi em Portugal, em pleno Lisbon Bar Show, que é um dos maiores eventos de bebidas do mundo, mais uma vez com um sucesso retumbante! E o Mestre, que sempre teve plena certeza de que o rabo de galo merecia um lugar na IBA, e trabalhou intensamente para isso, finalmente c o n s e g u i u e s s e f e i t o , d e i x a n d o e s t e 38
RG reconhecimento como um legado seu para a cultura brasileira, no seu mais amplo sentido! Mas na vida, assim como num drink, sempre chega a hora em que o copo se esvazia. Na madrugada de 18 de junho de 2023, justamente depoi s da premiação do rabo de galo internacional, lá em Portugal, a bebida acabou no copo, o coração falseou e o Mestre Derivan foi pra barra lá de cima. Há quem diga que ele transbordou de tanta felicidade após a finalização do evento. Claramente sua missão foi cumprida por aqui, com a sua família e com a imensa legião de amigos que ele fez, pelos bares por onde passou e pelo legado que deixou. E o Mestre viu, do seu camarote celestial, no dia 14 de junho, menos de um mês após a sua morte, a IBA anunciar a entrada do rabo de galo na lista oficial dos Clássicos Mundiais da Coquetelaria. A nossa história chegou ao seu ponto culminante quando o Mestre Derivan, num feito extraordinário para a cachaça e para a coquetelaria brasileira, realizou o primeiro Concurso Internacional de Rabo de Galo. Foi em Portugal, em pleno Lisbon Bar Show, que é um dos maiores eventos de bebidas do mundo, mais uma vez com um sucesso retumbante! Agora a nossa caipirinha tem um parceiro para sambar junto nas barras do mundo inteiro! Viva a Cachaça! Viva o Rabo de Galo! Viva o Mestre Derivan! Um brinde!
Por Cauré B. Portugal domínio da análise sensorial é uma pedra angular na avaliação técnica e apreciação de bebidas espirituosas destiladas. Quando se trata do intrincado mundo da cachaça, essa técnica assume um papel ainda mais significativo. A cachaça, profundamente enraizada na herança brasileira, convida conhecedores e entusiastas a embarcar em uma viagem através de suas nuances sensoriais, com direito a todos os símbolos de tradição, cultura e ancestralidade. Convido você, leitora, leitor... a um breve mergulho na arte da análise sensorial especificamente adaptada à cachaça. o A t r a v é s d e a n á l i s e s s i s t e m á t i c a s , desvendamos as sutis complexidades de aparência, aroma, sabor e sensação na boca da cachaça, lançando mão de descritores sensoriais que nos permitem apreciar e comunicar os atributos e virtudes, ou mesmo os defeitos, desde a pureza cristalina da cachaça branca às complexas e matizadas versões envelhecidas. De modo amplo, a análise sensorial é uma avaliação sistemática das características de um produto, incluindo aparência, aroma, sabor e sensação na boca. Quando aplicada com precisão, a degustação técnica pode revelar as camadas de complexidade da cachaça, oferecendo insights profundos sobre sua qualidade geral, caráter e, inclusive, técnicas de produção envolvidas. Assim como outras bebidas espirituosas, a cachaça exibe aromas e sabores complexos devido aos “congêneres voláteis”, derivados de centenas de compostos, como álcoois, acetonas, ésteres, ácidos graxos de cadeia média, compostos de enxofre, taninos e aldeídos aromáticos...compostos que vão emergindo ou se modificando durante a fermentação, desti lação, maturação e, eventualmente, envelhecimento. Como o álcool pode dessensibilizar o olfato e o paladar, em análises mais técnicas, as amostras costumam ser diluídas a 20–23% v/v e preenche-se cerca ¼ do copo para que haja um espaço livre relativamente grande acima do líquido. Geralmente, cobre-se a taça com uma tampa ou vidro de relógio para reter os voláteis nesse espaço superior. Mas, à parte com os tecnicismos, a análise sensorial de cachaças pode ser uma jornada emocionante que envolve a exploração dos sentidos - visão, olfato, paladar e retronasal - Cachaça Reve lada Uma viagem pelos sentidos 40
para desvendar os segredos de cada gota da bebida. Vamos mergulhar em uma breve trajetória didáti ca para aprimorar sua apreciação de forma simples e cativante, oferecendo dicas e técnicas que tornarão sua experiência ainda mais enriquecedora. Na análise visual examinamos aspectos como cor, clareza, brilho e viscosidade. A cachaça branca deve ser cristalina, indicando sua pureza e, no caso da cachaça armazenada ou envelhecida, pode-se analisar uma ampla gama de cores, do amarelo-palha ao âmbar profundo, dependendo da madeira utilizada para o envelhecimento. No aspecto visual, a coloração dá indicações do processo de envelhecimento associado e, muitas vezes, até oferece um preâmbulo do buquê de aromas e do sabor da cachaça. Além da coloração central, podemos ainda diferenciar certos matizes, ou variações de cores, que podem ser observadas na circunferência do líquido ao se inclinar a taça horizontalmente. Outra ideia importante da etapa visual é identificar itens que não deveriam estar no líquido, entendidos como defeitos, que podem incluir partículas flutuando no topo do líquido, partículas semelhantes a flocos de neve em suspensão ou sólidos que precipitaram no fundo da taça. Então, fiquem atentos a esses detalhes! Os aromas de uma cachaça derivam dos seus processos de produção e envelhecimento. Alguns especialistas aconselham adicionar um pouco de água ao copo para reduzir alguns vapores de álcool e, assim, propiciar a liberação mais equilibrada dos aromas. Para simplificar, existem três categorias de aromas que podem ser detectados na cachaça, sendo os aromas primários provenientes basicamente da essência da matéria-prima, a cana e das influências diretas ou indiretas do solo e do clima. Os aromas secundários são aqueles que vêm da fermentação e da destilação, com notas herbáceas, frutadas, florais, dentre outras. Finalmente, os aromas terciários são aqueles providos pelas mudanças e trocas do contato com a madeira e surgem a partir do processo de envelhecimento; por exemplo, notas de baunilha, caramelo, café, chocolate, especiarias, etc. Mas, para experimentar o máximo possível destes aromas, você precisará do copo certo – e da técnica certa. O erro mais comum que as pessoas cometem ao cheirar uma cachaça é usar o tipo errado de copo ou taça. Os melhores copos são aqueles que realçam o aroma. Um conhecedor de cachaça experiente sabe como pegar um copo em forma de tulipa, já que sua haste evita problemas com contaminantes de odor ou calor das mãos. A sua base mais larga propicia uma melhor agitação do líquido, enquanto a borda estreita do copo promove a retenção dos aromas. O que o cheiro te lembra? Um passeio por um jardim? Um sorvete de quando era criança? O bolo de banana da sua avó? Não importa quão abstratas ou pessoais sejam, as visual olfativo 41
memórias olfativas podem nos ajudar a decifrar aromas complicados. Use esse ponto de referência para aprender mais sobre as notas da cachaça que você está avaliando. Particularmente, gosto de dividir a análise olfativa em duas etapas: taça descansada e após agitação. Com a taça em descanso, busca-se fazer uma olfação direta, sem medo de colocar o nariz na taça - tomando o cuidado para não saturar o olfato - para perceber o potencial aromático da bebida e ter uma ideia preliminar da complexidade de seu buquê. Posteriormente, agita-se a taça para promover liberação dos compostos voláteis e, pouco a pouco, promovendo diversas e curtas olfações para tentar discriminar esses elementos encriptados em sua essência. No entanto, devido à facilidade com que o “nariz se cansa”, é recomendável não colocar muita pressão nesta etapa, já que o s i s tema olfati vo es tá intimamente conectado com o gustativo. gustativo A percepção do sabor é a última etapa do método tradicional. Um conhecedor de cachaça experiente recomendará beber um pouco de água à temperatura ambiente antes de provar a cachaça para limpar o paladar. Deve-se levar uma pequena quantidade à boca, deixando o destilado assentar na frente, no centro e na parte de trás da língua para experimentar sua variedade de sabores. É importante cobrir toda a boca para experimentá-la plenamente! Assim como cheirar, você vai querer estar atento ao que está provando. As mesmas regras se aplicam. Não importa quão estranho ou específico seja o sabor, confie no seu paladar e s i g a e s s a memó ri a p a r a e n c o n tr a r a característica que você está experimentando. Retronasal e Retrogosto! A etapa retronasal talvez seja a que requer mais treinamento e concentração. Refere-se à percepção olfativa de aromas que ocorre durante e após a deglutição da bebida. Ela ocorre quando a cachaça é degustada e os vapores aromáticos são liberados na cavidade bucal e na parte posterior da garganta. Basicamente, é como se a cachaça fosse “mastigada e cheirada” ao mesmo tempo, permitindo que o olfato desempenhe um papel significativo e muito mais apurado na percepção do sabor. Já o retrogosto refere-se às sensações gustativas que persistem na boca após a deglutição da bebida. Além da percepção de amargor, acidez, dulçor, salinidade e outros A roda de aromas é uma ferramenta que auxilia os apreciadores da bebida, sejam eles iniciantes ou grandes conhecedores, a treinar o nariz e conseguir exprimir o melhor do rótulo. 42
elementos que continuam deixando impressão na boca, o retrogosto é avaliado considerando a duração e a qualidade dessas sensações após a ingestão do destilado. Pode ser um elemento crucial na apreciação do equilíbrio e da complexidade de uma cachaça. Descritores sensoriais Mas como se comunicar nesse instigante universo da análise sensorial de cachaças? Us a n d o e a b u s a n d o d o s de s c ritor e s sensoriais! Aqui vale tudo para tentar se expressar, usar referências de ervas, frutas, flores, frutos secos, especiarias... enfim, elementos que tenham deixado alguma impressão sensorial em você e que possam servir de referência para comunicar compostos identificados e discriminados na cachaça degustada. Qual a temperatura ideal para degustação? Para se apreciar devidamente uma cachaça, é importante uma atenção especial à temperatura d e s e r v i ç o . Ca c h a ç a s b r a n c a s , q u e geralmente possuem predominância de aromas herbáceos e frutados, devem ser degustadas a uma temperatura entre 14°C e 18°C. Essa faixa de temperatura permite que os aromas frescos e frutados se des taquem, tornando a degustação mais agradável. J á a s c a c h a ç a s e n v e l h e c i d a s , c om p r e d omi n â n c i a d e a r oma s t e r c i á ri o s provenientes do envelhecimento em madeira, poderão ser mais bem apreciadas a uma temperatura ligeiramente mais elevada, entre 18°C e 22°C. O calor adicional realça os aromas complexos e os sabores adquiridos durante o e n v e l h e c ime n t o , p r o p o r c i o n a n d o uma experiência sensorial mais rica e completa. Então, lembre-se, resfriar demais pode entorpecer os aromas e sabores, enquanto servir muito quente pode intensificar a queimação do álcool e sobrecarregar seus sentidos! Uma p'ro santo! E o fato é que cada gole de cachaça revela um mundo de sabores e aromas, convidando a mente a uma viagem pelos sentidos. A capacidade de perceber e apreciar as nuances sutis de cada cachaça é uma forma de arte em si mesma. Convida-nos a explorar a riqueza e a diversidade da cultura brasileira, enraizada na tradição da produção desse destilado icônico. O degustar a cachaça transcende a simples apreciação de uma bebida alcoólica, mas ressignifica a experiência de uma jornada de descoberta que nos leva a d e s fr u t a r a ri q u e z a d o s s e n t i d o s e a complexidade da tradição cachaceira. Um brinde à rica tapeçaria sensorial que a cachaça nos oferece! Uma degustação às cegas acontece quando os participantes não sabem quais são os rótulos que irão experimentar. Ideal para aguçar os sentidos, especialmente o olfato e o paladar, a experiência pode ser realizada profissionalmente ou em momentos de diversão. Imagem de FREEPIK
Reconhecimento da profissão de sommelier de cachaça Por Maurício Maia partir de 2022, a atividade do Sommelier de Cachaça passa a ser oficialmente reconhecida pelo Governo Federal como profissão. O reconhecimento faz parte de um amplo trabalho de revisão das atividades profissionais do país, realizado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) e pelo Ministério da Economia desde 2021, e reconhece, também, as atividades do Sommelier de Cerveja e Sommelier de Saquê. aAo contrário de muitas pessoas nesse nosso sofrido Brasil, tive o privilégio de escolher o que iria fazer da vida. Cogitei ser médico, jornalista e até músico, mas acabei na publicidade, onde fui feliz profissionalmente durante mais de 25 anos. Sempre levei a Cachaça junto comigo nessa jornada. Uma paixão. Um propósito. E a Cachaça me levou para dentro da sala de aula. Ensinar e compartilhar o conhecimento me enche de alegria e, hoje, posso dizer que vivo para esse propósito. Nada me dá mais satisfação do que incentivar outras pessoas. Mais que qualquer reconhecimento, contribuir para o crescimento profissional daqueles que me cercam é a minha recompensa. Hoje, não poderia estar mais feliz e compartilhar com vocês que depois de mais de 20 anos a t u a n d o e d e s e n v o l v e n d o a á r e a d e sommelieria da cachaça e outros 10 anos atuando na educação, formando novos profissionais, fico orgulhoso e até emocionado com o reconhecimento da atividade profissional de Sommelier de Cachaça. Após mais de um ano de um trabalho impecável da Sommelière Priscilla Colares, para o reconhecimento da atividade do Sommelier de Cerveja como profissão, fui chamado para participar da reunião de validação de outras especialidades da sommelieria, que também confirmou a atividade do Sommelier de Saquê e, claro, do Sommelier de Cachaça. Participei juntamente com profissionais que admiro e respeito: Bia Amorim, Jayro Pinto Neto, Fernanda Bressiani, Yasmin Yonashiro, Pedro Barcellos e José Padilha. Além disso, a lista conta com uma sinonímia para a atividade de Sommelier de Cachaça que constará como: Cachacier e Cachacista. É muito orgulho! Não posso deixar de mencionar, também, meu professor e amigo Arnaldo Ribeiro, da Fazenda Escola Cana Brasil, em Itaverava, MG, que sempre acreditou e apoiou minhas ideias, abrindo as portas da escola para montarmos juntos o único curso de formação profissional de Sommelier de Cachaça do mercado, pois cursos existem muitos, mas com o conteúdo necessário para a profissão de sommelier não. A profissão trata de atendimento e serviço. Como confiar em um professor que nunca trabalhou em um bar ou um restaurante? Que não possui a experiência necessária na profissão? Gente!!!! Agora Sommelier de Cachaça é oficialmente uma profissão!!! Dá para bater no 44
peito e dizer: Eu sou Cachacier! Coisa que sempre fiz, por sinal... Saúde! Para saber mais: O Ministério da Economia está dando continuidade ao Projeto de Atualização da CBO - Classificação Brasileira de Ocupações, obra de referência para classificar os empregos do mercado de trabalho brasileiro. A FIPE, da Universidade de São Paulo (USP), participou na elaboração da CBO. A Classificação Brasileira de Ocupações é o documento onde estão classificadas e descritas todas as profissões do mercado de trabalho no Brasil. É o documento normalizador que reconhece, nomeia e codifica os títulos e conteúdo das ocupações existentes no mercado de trabalho brasileiro. Trata-se do reconhecimento da existência de uma determinada ocupação no mercado de trabalho, para fins exclusivamente classificatórios, sem função de regulamentação profissional. A CBO tem como unidade de descrição a Família Ocupacional, um conceito ampliado de emprego, que abrange várias ocupações sob um mesmo título. Cada Família Ocupacional é descrita por meio da aplicação de um método intitulado DACUM, que permite o amplo levantamento de um conjunto de atividades realizadas pelo profissional. Segundo o método, a descrição e a análise ocupacional são desenvolvidas por meio de dinâmicas de grupo, denominadas Painéis de Convalidação, com profissionais que efetivamente trabalham na ocupação a ser descrita, reconhecidos como profissionais de alto desempenho em suas funções. O resultado dessas dinâmicas são des c ri ções detalhadas de cada Famíl ia Ocupacional e suas ocupações, como pode ser conferido no site disponível para consulta www.mtecbo.gov.br Foram convidados a participar do projeto CBO do Ministério da Economia para a inclusão das t i t u l a ç õ e s SOMMEL IER DE CERVEJA, SOMMELIER DE CACHAÇA e SOMMELIER DE SAQUÊ os profissionais: Priscilla Colares, Beatriz Amorim, Jayro Pinto Neto, Fernanda Bressiani, Maurício Maia, Yasmin Yonashiro, Pedro Barcellos e José Padilha. O Painel de Convalidação foi substituído por reuniões virtuais com os profissionais citados a c i m a e c o m a r e a l i z a ç ã o d e u m a videoconferência realizada no dia 11 de março de 2 0 2 1 . A r e u n i ã o c o n t o u t amb ém c om a participação da equipe técnica e do coordenador técnico do Projeto CBO da FIPE e da equipe da CCBO - Coordenação da Classificação Brasileira de Ocupações, do Ministério da Economia. As t i t u l a ç õ e s SOMMEL IER DE CERVEJA, SOMMELIER DE CACHAÇA e SOMMELIER DE SAQUÊ foram assim incluídas: Ocupação: SOMMELIER Código: 5134-10 Família Ocupacional: 5134 D e s c r i ç ã o : T R A B A L H A D O R E S N O ATENDIMENTO EM ESTABELECIMENTOS DE SERVIÇOS DE ALIMENTAÇÃO, BEBIDAS E HOTELARIA. 45 Fonte: http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/home.jsf
MUNDO Uma janela para o Por Altino Farias O primeiro cliente foi um freguês habitual. Vestido de forma simples e elegante, que sempre chega silenciosamente em sua BMW branca. Fala baixo e pausadamente, é objetivo e rápido. Sabe o que quer. Compra umas dez ou doze garrafas das excelentes, sejam mais caras ou mais em conta. No meio, uma ou duas que ele ainda não conhece. Sempre quer experimentar e conhecer mais. Garrafas embaladas, paga a conta e some da mesma forma que chegou: silenciosamente. Em seguida, entra uma jovem senhora, também muito elegante. Despachada e jovial, avisa logo que não entende patavina de cachaça, mas precisa presentear um amigo que é fino apreciador. Adona da loja sonda se a pessoa tem preferência por madeira, região, e qual a faixa de preço. Ajovem só sabe dizer que não há problema com preço, contanto que a cachaça tenha ótima apresentação e qualidade. Adona da loja inicia o atendimento, apresentando cachaças diferenciadas e com aqueles encantos especiais. A compradora chama o maridão ao vivo em vídeo e, enfim, eles decidem. Surpresa! A cachaça eleita tem um preço abaixo da previsão da compradora. Resultado: a fim de surpreender o marido, a jovem levou outra excelente cachaça para presenteá-lo. E eis que surge mais um cliente. Este vem à procura de uma cachaça “artesanal”. A dona da loja logo percebe que o cliente entende por artesanal aquela bebida sem registro legal, achando que esse detalhe confere um charme especial ao produto. Com jeito e didática, ela explica ao cliente que somente comercializa bebidas com todos as licenças legais, sobre os perigos que rondam o consumo de uma bebida ilegal, que pode ser de excelente qualidade, ou um autêntico veneno. “Como você pode consumir uma bebida que o próprio produtor não sabe o que é, pois nunca mandou fazer uma análise química dela?”, indaga. Meio sem graça, e ao mesmo tempo agradecido pelo esclarecimento, o cliente concorda, e o atendimento prossegue, agora direcionado para a apresentação de vários rótulos, cada um com suas qualidades. Mais um cliente bem informado, mais uma venda realizada, menos uma bebida ilegal vendida. Crônica aquele dia, as portas da loja especializada em cachaça foram abertas pontualmente às dez da manhã, iniciando mais um dia de trabalho, expectativas e vendas. n 47
A tarde transcorre tranquila entre uma venda e outra, e clientes com perfis bem diferentes, como o que vem todo mês repor seu estoque, o que quer apenas conhecer a casa e prosear um pouco, o turista que quer levar uma cachaça do local para sua terra, o brasileiro que reside no exterior e quer levar uma boa pinga para enfrentar o frio de outras terras, os jovens que compram cachaça para fazer caipirinhas e coquetéis... A v e n d a n o v a r e j o d e c a c h a ç a s c om atendimento personalizado é uma janela para o mundo, pois a cachaça, pela sua simplicidade e simpatia, é um excelente catalisador para promover a aproximação das pessoas. Para uma loja como essa, convergem clientes com os mais variados planos, sonhos, expectativas e experiências. A cada atendimento aprendemos um pouco com eles, e eles conosco, tudo de uma forma descontraída e natural, e a compra de uma boa cachaça muitas vezes representa o início de uma nova amizade. E viva a cachaça! A venda no varejo de cachaças com atendimento personalizado é uma janela para o mundo, pois a cachaça, pela sua simplicidade e simpatia, é um excelente catalisador para promover a aproximação das pessoas. 48
saideira Por Sidnei Maschio A minha lida no sertão não é leve, mas a vida aqui é boa num tanto que me serve. De madrugada a minha patroa Maria Rita, eita cabocla bonita, me acorda com café e uma tantada de broa, depois eu passo o dia na roça e ela fica cuidando da choça. E quando, com o sol já quase descambado, chego cansado do serviço, de longe me alcança o cheiro do tempero variado do arroz, do virado de feijão e da linguiça que eu fiz da carne de uma leitoa mestiça. E pra completar minha felicidade, cachaça, um pito com fumo de qualidade, uma lua serena e o amor dessa morena. No tempo das antiqueras, naquele mundão do sertão pioneiro, coisa mais difícil era fazer reunião e juntar os companheiros pra prosear a respeito da situação da lida e do andamento da vida. Mas apesar do sacrifício eu mais o compadre Ciço e o Chico Santana, a gente não passava uma semana sem parar um pouco o serviço pra visitar o Zé Mineiro, que era alambiqueiro afamado na região, pra não deixar o coitado largado lá sozinho padecendo de solidão no seu ranchinho. Os tocadores e cantorinos tavam afinando as vozes com a viola caipira e os dançarinos combinando os passos do catira, quando o Tião Quirino, vindo lá da roça, foi chegando pelo fundo do salão pra descarregar a carroça. Era pro povo continuar ensaiando, mas na hora em que o portão abriu o Hildebrando viu e, sabendo o que é que ele tava trazendo, já saiu correndo e perguntando que cachaça era aquela, se era da branca ou da amarela, e aí todo mundo se abraçou num garrafão e não sobrou ninguém pra continuar com a função. Eu não sou caboclo de ter ambição e querer o mundo na minha mão, porque aqui neste meu sertão ninguém tem precisão de muita coisa. De madrugada, quando a passarada anuncia a alvorada, já tô em pé coando café e apreciando a barra do dia se alevantando. Bem antes que o sol esquente eu tô no batente, montado no meu alazão tostado, o cachorro perdigueiro na frente, correndo os trieiros e costeando o gado. E quando a lua vem despontando por detrás do chapadão, pra solidão não me fazer trapaça quem me consola é a viola e um gole de cachaça. O compadre Zé Amado e a comadre Mariquinha mandaram avisar que no sábado eles vêm aqui pra visitar, e vão ficar pra almoçar. Pois então eu já escolhi um capado que tá bem cevado e uma galinha gorda, passei no sítio do Dito pra deixar um palmito encomendado e agora vou pegar um punhado de pimenta que não seja muito ardida pra Margarida, que é a minha mulher, temperar a comida. E pra quem quiser ainda vai ter cachaça, doce de abóbora pra comer com queijo e, de sobejo, macaia pro pito e café. Tendo cachaça de qualidade e a minha viola, a saudade não me amola, lá nos ermos onde eu vivo sozinho, sem ter vizinho perto, eu encosto o pinho no peito e é ele que me consola. Mas na festa do padroeiro decerto que vou passar uns dias na freguesia, pra encontrar o Dito sanfoneiro, que é meu companheiro em versos e goles, pra puxar o fole e ser parceiro de novo na lida de ajudar o nosso povo a tocar a vida com mais harmonia, leveza e alegria. Eu vou nesta vida estradeira descendo ladeira, vencendo ribanceira, rebatendo as trapeiras e levando sempre em frente a boiada e a nossa gente em toada segura na hora presente e na direção das lidas futuras. Mas estando vencida uma jornada, e antes da próxima empreitada, eu me largo na varanda do meu ranchinho querido, lá no sertão mais fundo, assuntando o mote do cantar de um canarinho, abraçado num corote da melhor cachaça e esquecido das pirraças e trapaças do mundo. 50