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Revista Philosofia - Colégio Manuel Bernardes

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Published by admin, 2017-06-05 19:19:08

Revista Philosofia

Revista Philosofia - Colégio Manuel Bernardes

Maio de 2017 ∫ Publicação Anual Revista de Filosofia do Colégio Manuel Bernardes

PHILOSOPHIA
N.º 01 – Ano Letivo 2016/2017

Rfinesepmice

Toma atenção
ao fim a que te
propões

IElnussatriaoç&ão

www.cmb.pt/philosophia

COLÉGIO MANUEL BERNADESREVISTA PHILOSOPHIA

PHILOSHOPHIA

ESTATUTO
EDITORIAL

A Philosophia é uma revista anual de Filosofia do
Colégio Manuel Bernardes aberta e destinada a toda
a comunidade escolar, que se rege pelos princípios
preconizados no seu Projeto Educativo.
Tem como objetivo a divulgação de artigos e tra-
balhos produzidos pelos alunos e professores do
Colégio Manuel Bernardes, partindo sempre do seu
principio básico do “amor à sabedoria”, incentivando
a pensar e refletir sobre o mundo que nos rodeia e
tentando cativar e motivar todos a saberem um pou-
co mais sobre o que é a Filosofia.
Todos os trabalhos publicados na revista serão devi-
damente revistos por forma a respeitar os princípios
acima mencionados.

(ficha técnica)
Título
Philosophia – n.º 1 – 2016/2017
Autores
Vários autores
Direção
Luís Lóia
Vice-Diretores
Emanuel Oliveira, Maria João Carvalho
Direção de Arte
Tiago Pereira

1ª Edição: Maio de 2017
© Colégio Manuel Bernardes

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REVISTA PHILOSOPHIA

ÍNDICE COLÉGIO MANUEL BERNADES

FILOSOFANDO

7 O que é a Filosofia? – Margarida Pereira
8 Multiculturalismo e relativismo cultural – Maria Pinto
10 Ética, Moral e Política: Kant, Mill e Aristóteles - Inês Cartaxeiro e João Barba
16 Empirismo – Inês Galvão
20 Descartes e as provas da existência de Deus – Teresa Moreira
23 A Fabilidade do Conhecimento Cientíco – João Alves
26 Fingir é conhecer-se – Beatriz Adão, Leonor Gonzalez, João Alves, José Maria

Maldonado, Mateus Rodrigues, Catarina Valente

DIDASKALIA

29 Carlos Francisco – Deus e o sentido da vida
31 Carlos Bernardino – O tempo, esse conceito estranho
33 Emanuel Oliveira – Os números 0 e 1
37 Gil Garcia – A Filosofia como fundamental numa filosofia de vida
39 Maria João Carvalho – Lanternas nos olhos. A Origem e a importância da Palavra
41 Patrícia Alves – O conhecimento do passado como condição de um futuro melhor
41 Pedro César – Só alguns a desejam habitar
43 Rafael Fernandes – O que é a matéria?
46 Tiago Pereira – Educação para os media

ENTRE VISTAS

48 Entrevista a Pedro Macor, Licenciado em Filosofia, antigo aluno do Colégio
Manuel Bernardes

OUTRAS DEAMBULAÇÕES

50 Palestra: “Why Politics Matters” – Dr. Duarte Pacheco
52 Dia Mundial da Filosofia
56 Visita à Assembleia da República

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COLÉGIO MANUEL BERNADES
REVISTA PHILOSOPHIA

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Fotografia: Tiago Pereira

REVISTA PHILOSOPHIA

EDITORIAL embora com pendor filosófico. Não tendo um objeto
específico de estudo, a inquirição filosófica pode
De acordo com o seu Estatuto Editorial, estender-se a todas as áreas do saber; neste sen-
Philosophia é uma revista anual de Filo- tido, a colaboração dos docentes do Colégio é dar
sofia do Colégio Manuel Bernardes aberta corpo à amplitude temática da revista, bem como
e destinada a toda a comunidade escolar, ao espírito de comunidade que a informa desde a
tendo como finalidade geral favorecer o sua criação.
crescimento e o amadurecimento integral do aluno Em cada número da revista destacaremos, em for-
dentro de uma visão cristã da vida e da cultura, ado- mato de entrevista, uma personalidade ligada ao
tando o projeto educativo herdado do seu Fundador. Colégio. Neste número inaugural, dando reflexo ao
Philosophia articula-se em secções temáticas propósito maior de que esta é uma revista também
organizadas de acordo com a natureza dos seus dos alunos e sobretudo para os alunos,escolhemos
colaboradores e do público a quem se destina. Em o antigo aluno Pedro Macor que está presentemente
primeiro lugar, os alunos: é uma revista dos alunos e a concluir a sua Licenciatura em Filosofia na Uni-
para os alunos; em segundo lugar, os docentes que versidade Nova de Lisboa. A rúbrica, intitulada Entre
aqui colaboram cumprindo a sua missão de educar; vistas, pretende ser isso mesmo, uma troca de olha-
e, finalmente, toda a restante comunidade escolar res entre nós e os nossos entrevistados tendo como
do Colégio que tem aqui também um espaço de referência o ensino e a aprendizagem da Filosofia.
liberdade para se expressar. Assim, compõe-se a
Philosophia das seguintes secções:

Filosofando é uma secção dedicada aos artigos Outras deambulações é, como o nome indica, um COLÉGIO MANUEL BERNADES
de alunos de Filosofia, embora possa contar com a espaço de criatividade e de exploração que se con-
contribuição de outros alunos e antigos alunos do cretiza nas notícias das atividades que são desen-
Colégio. Nesta secção, dar-se-á mostra de trabalhos volvidas com os alunos ao longo do ano letivo, mas
realizados ao longo do ano letivo, assim como ou- também com outras colaborações de membros
tros trabalhos que os alunos apresentam no âmbito da nossa comunidade académica, como os mem-
das temáticas curriculares da disciplina, não haven- bros do corpo disciplinar, pais e encarregados de
do por isso uma organização interna predefinida ou educação.
uma temática específica. A coerência interna desta É com orgulho que publicamos este primeiro nú-
secção é dada pelo próprio programa curricular da mero, na esperança que cumpra os seus objetivos
disciplina de Filosofia do 10º e 11º anos. e que seja apreciado por todos aqueles que veem o
Didaskalia é um espaço reservado aos docentes saber como horizonte fundamental no desenvolvi-
do Colégio. Dar-se-ão à estampa artigos de carác- mento integral da Pessoa.
ter científico das mais variadas áreas disciplinares,
O Diretor: Luís Lóia

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COLÉGIO MANUEL BERNADESREVISTA PHILOSOPHIA

PREFÁCIO

AFilosofia constitui-se como a disciplina reflexiva por exce-
lência. Essa é a sua natureza e o seu propósito. Na antigui-
dade, a Filosofia era a Ciência Primeira, não porque tinha
um método superior ou instrumentos mais precisos, mas
porque recolhia a informação das múltiplas áreas do conhecimento
para integrar um corpo de conhecimento que facultava uma visão
de síntese sobre a realidade humana.
Se a dimensão de “ciência” contemporânea não deve predicar a
Filosofia, por não possuir um objeto de estudo preciso, a sua cons-
tituição enquanto disciplina que analisa, debate e aprofunda uma
reflexão sobre o mundo que nos rodeia torna-a, por inerência, na
área do saber que se debruça sobre as grandes configurações do
saber humano: Ciência, Arte, Religião.
É este, pois, o real contributo que a Filosofia nos pode proporcio-
nar e é, justamente, nesta medida, que a revista Philosophia pro-
curará, humilde, despretensiosa, mas conscientemente, divulgar
trabalhos de ordem filosófica, científica e artística, no sentido de
integrar uma visão holística sobre a diversidade de acontecimen-
tos e fenómenos que nos circundam, que nos fazem indagar e,
em última instância, “espantarmo-nos” com o mundo. Esta é uma
condição humana que urge nunca esquecer, estabelecendo a pon-
te que permite atravessar o fosso que o aglomerado de sofismas,
paralogismos, em boa verdade, num uso retórico do discurso que
pode levar (ou não) ao engano e ao desvirtuar do caminho último
que reúne o ser humano, a saber, a busca pela verdade.
Pela sua via eclética, a Philosophia conta com os artigos da sua
comunidade educativa: Alunos, docentes, não docentes, de todos
os que, de forma válida e aprofundada, se juntam a quem, de for-
ma sistemática e esforçada, prossegue o caminho da indagação
pela verdade. Seja sob a forma de artigos críticos, sob a forma da
expressão artística, seja pela fotografia e de ensaios científicos ou
especulativos, este projeto dinamizado pelo núcleo de Filosofia do
Colégio Manuel Bernardes obedece aos princípios essenciais cuja
área do saber representa.
É, como tal, com enorme satisfação que observo a génese deste
caminho que sustenta a intenção, clara e inequívoca, de dinamizar
a essência e a natureza da Filosofia pela Philosophia. Bem hajam!

O Diretor Pedagógico
Hugo Quinta

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REVISTA PHILOSOPHIA

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COLÉGIO MANUEL BERNADES

REVISTA PHILOSOPHIA

FILOSOFANDO

O QUE É A FILOSOFIA

MARGARIDA PEREIRA (Nº 1326, 10º E)

Filosofia… Como é possível resultados têm de ser válidos
que uma simples palavra para todos; objetiva, pois deve
suscite tanta curiosida- definir-se o objeto de forma im-
de, tantas dúvidas, tantas parcial e autónoma, ou seja, não
questões? “Amor à sabedoria”, se deve efetuar plágio e deve
segundo a sua origem grega, é ter-se ideias ou teorias próprias.
isto que significa, um amor que Ao pensarmos de forma objetiva
nasce da nossa relação enquanto e autónoma, a nossa resposta
homens com o mundo que nos vai ser considerada válida a nível
rodeia e daquilo em que ele nos universal, logo estas duas ca-
leva ou não a acreditar. No entan- racterísticas influenciam a uni-
to, não parece ser suficiente; esta versalidade da nossa resposta.
resposta conduz a mais infinitas Ilustração: Joana Santos Outra das características da ati-

perguntas sem resposta. vidade filosófica é a radicalidade, ir à raiz, ou seja,
aprofundar as questões, procurar fundamentos que
O objeto de estudo da Filosofia é o Ser, ou seja, tudo expliquem determinados fenómenos. A radicalidade
aquilo que é… A atitude filosófica é algo possível e tenta, portanto, responder à pergunta “Porque é?”.
comum a qualquer ser humano; se pararmos por A atividade filosófica deve ainda ser argumentativa,
um segundo, olharmos à nossa volta e repararmos sendo que as respostas têm de ser construídas por
no mais ínfimo pormenor instantaneamente uma argumentos que funcionam como um meio de jus-
quantidade de questões e pensamentos aleatórios tificação da verdade das teses. Devem por isso se-
vão inundar a nossa mente. Ao tentarmos encontrar lecionar-se argumentos de extrema relevância para
as respostas a estas perguntas, estamos a fazer Fi- fundamentar a posição em questão. A importância
losofia. Ao escrever este trabalho, eu mesma estou a destes argumentos em Filosofia está diretamente
fazer Filosofia… ligada à relação entre o pensamento e a linguagem;
por isso, devemos pensar com rigor e expressar com
“O que é?” é a pergunta que é a base da Filosofia o mesmo rigor estes pensamentos. Assim sendo, os
e está oculta por detrás de qualquer ação, qualquer argumentos que cada um usa, sejam ditos ou escri-
objeto, qualquer sentimento… O ser humano tenta tos, são a expressão linguística de operações men-
desesperadamente descobrir as diversas respostas tais. Ao nível do pensamento, utilizamos conceitos,
a esta pergunta em relação a tudo, mas independen- e expressamo-los através de termos linguísticos; ao
temente do quão próximas da realidade estas res- relacionarmos, dentro da nossa mente, dois concei-
postas possam estar, nunca a serão por completo. A tos, criamos um juízo. À expressão de um juízo dá-se
Filosofia é, portanto, uma atividade interrogativa não o nome de proposição. Quando relacionamos dois
solucionante, dado que não possui respostas defini- juízos, obtém-se um raciocínio, ao expressarmos um
tivas ou absolutas… raciocínio surge, assim, finalmente, um argumento.
Os termos dentro de um determinado argumento
Relativamente à realidade, existem dois planos: o são os conceitos que constroem e fundamentam o
sensível, ou seja, as coisas reais e físicas; e o inte- mesmo.
COLÉGIO MANUEL BERNADES ligível, que engloba ainda as coisas abstratas para
além de integrar nele o plano sensível. A Filosofia es- Volto agora a questionar-me, “O que é a Filosofia?”.
tuda ambos e tenta descobrir respostas para todas Encontrei a resposta correta a esta pergunta? Não!
as pergunta efetuadas em relação a qualquer objeto, Mas aproximei-me da Verdade, fiquei um pouco mais
entidade ou ser inserido em cada um deles. próxima de descobrir realmente aquilo que é. Não
existe uma definição exata para Filosofia, e talvez,
A atividade filosófica é universal sendo que os seus por vezes, até os próprios filósofos se interroguem.

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REVISTA PHILOSOPHIA

FILOSOFANDO

MULTICULTURALISMO E
RELATIVISMO CULTURAL

MARIA PINTO (Nº 2883, 10º E)
Nos nossos dias, ao contrário do que aconte-
cia até há bem pouco tempo, há uma maior únicos, traz muitas consequências negativas para as
preocupação e respeito pela diversidade sociedades, pois não permite a diversidade e o en-
riquecimento de uma cultura, ideologia e credo em
cultural. Esta diversidade cultural, quando particular, antes, pelo contrário, cristaliza os valores
aceite e promovida, dá origem ao multiculturalismo, e os princípios culturais intrínsecos a uma determi-
que representa a convivência pacífica entre culturas, nada sociedade.
com base no respeito e tolerância pelas diferenças,
sejam elas linguísticas, religiosas, de tradições, de Duas dessas consequências, que acabam por se as-
hábitos, ou de qualquer outra natureza. A multicul- sociar uma à outra, são o racismo e a xenofobia.
turalidade descreve a coexistência pacífica de várias
culturas numa certa cidade, região ou país, sem O racismo é a teoria que defende a superioridade
que nenhuma dessas culturas predomine sobre as de certas raças relativamente a outras. Nesta teo-
outras. Exemplos disso são, por exemplo, a cidade ria acredita-se que existe o direito de dominar ou
de Lisboa, de Paris ou de Nova Iorque, locais onde mesmo suprimir outras raças, condenando ou elimi-
existe multiculturalidade, pois encontramos pessoas nando alguém apenas por ser de uma raça diferente.
com diferentes culturas a viver no mesmo espaço Hoje em dia, o racismo é recriminável e legalmente
social e democrático, sem punível, no que toca à dis-
que nenhuma das culturas se criminação relacionada com
sobreponha às outras. No en- a cor da pele, a raça, etnia
tanto, esta multicultularidade ou religião de alguém ou de
também pode levar a confli- alguma comunidade. O ra-
tos de diversa ordem, quan- cismo engloba o preconceito,
do a diferença de valores em Através da História podemos um pré-julgamento acerca
vez de ser respeitada é vista perceber que ter uma posição de alguém ou de alguma co-
como uma ofensa ou um de- etnocêntrica, ou seja, ter uma ideia munidade, através de uma
safio aos valores da maioria. de valores absolutos e únicos, traz visão pouco fundamentada
A aceitação e reação do ser muitas consequências negativas e, normalmente, deturpada. O
para as sociedades racismo pode implicar ainda
humano a culturas diferentes uma discriminação cultural
da sua são muito variadas. No assente nas diferenças dos
entanto, há, sobretudo, duas formas de encarar a re- hábitos, valores e formas de estar e pensar de cada
lação entre a nossa cultura e cultura dos outros, que cultura. Por outro lado, o racismo pode também es-
traduzem a forma de pensar, os comportamentos e tar associado à xenofobia, que é a aversão ou repú-
as atitudes em relação à realidade cultural e social. dio a tudo o que é estranho, diferente ou estrangeiro.

A primeira forma é o etnocentrismo, que consiste A segunda forma é o relativismo cultural, conceito COLÉGIO MANUEL BERNADES
numa visão centrada/egocêntrica de uma cultura em que defende a diversidade cultural como algo neces-
relação às outras, ou seja, o etnocentrismo traduz-se sário, que se deve respeitar as diferenças culturais
pela centralização dos próprios valores, princípios e e aceitar as diferentes culturas e as suas particu-
,padrões culturais, de modo a que estes funcionem laridades, defendendo que estas só devem ser ava-
como referência absoluta daquilo que é aceitável e liadas pelos seus próprios valores, ideias e padrões
correto para nós e para os outros. O etnocentrismo é, de comportamento. O relativismo cultural defende a
talvez, a forma mais antiga de relacionamento entre existência de diferentes culturas e que as regras de
culturas, que procuravam afirmar a supremacia e a cada cultura refletem o que é moralmente correto e
imposição da lei do mais forte. Através da História, incorreto para essa mesma sociedade, que nenhuma
podemos perceber que ter uma posição etnocên- cultura é mais importante do que outra, que é erra-
trica, ou seja, ter uma ideia de valores absolutos e do julgar-se outras culturas a partir de uma cultura

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REVISTA PHILOSOPHIA

Fotografia: André Escobar assume a universalidade dos direitos humanos e
defende, por isso mesmo, os direitos constantes na
supostamente superior, que não existem valores ab- Declaração Universal dos Direitos do Homem como
solutos e que se deve praticar a tolerância. Através os limites intransponíveis para a tolerância, exigindo
destas ideias, pode-se perceber que o relativismo ao mesmo tempo a prevenção de conflitos, apostan-
cultural representa uma posição contrária à postu- do na educação e no diálogo como forma de alcançar
ra etnocêntrica de supremacia de uma só cultura. A uma interculturalidade plena. Este parece ser o ca-
atitude relativista recusa a ideia de valores absolutos minho mais indicado para reforçar a nossa huma-
e defende a apreciação de uma cultura de forma crí- nidade e tornar o nosso planeta, a nossa casa co-
tica e cautelosa, apelando à tolerância e ao respei- mum, um lugar pacífico e em que todos os homens,
to pelas diferenças. Esta tolerância só pode existir independentemente da cultura a que pertençam, são
se houver um diálogo e uma relação justa entre as tratados como iguais e merecem igual respeito.
culturas. Convém, no entanto, ter presente que, caso A interculturalidade tal como a multiculturalidade,
esta tolerância seja levada ao extremo, pode criar-se se não forem praticadas de forma equilibrada e com
uma indiferença total em relação a todas as práticas limites que nenhuma cultura possa exceder ou des-
culturais e uma visão cética dos valores e princípios, respeitar, podem ser fonte de conflitos e guerras, e
impedindo-nos, assim, de pensar em encontrar um podem ainda gerar a aculturação. A aculturação, que
caminho partilhado e respeitado por todos e que é a absorção por uma cultura de elementos, aspetos
represente um progresso da própria humanidade. e características culturais de outra, pode, por sua
Devido a este facto, e a este risco, surgiu uma nova vez, conduzir à criação de uma só cultura, o que sig-
atitude, uma nova forma de pensar, a intercultura- nificaria uma perda irreparável para a grande riqueza
lidade. O relativismo cultural pode, quando aceite humana que é a diversidade.
de forma acrítica, pôr em causa o fundamento dos A conhecida frase de que “somos todos diferentes e
nossos próprios valores, pois, ao dizer-nos que tudo todos iguais” só continuará a fazer sentido se essas
é relativo e que o maior valor é o de cada um poder diferenças não colocarem em causa os valores que
escolher os seus próprios valores, cria por essa sub- nos definem como seres humanos e não como ani-
jetividade a total indiferença, uma vez que todas as mais irracionais e pelos quais a humanidade se tem
culturas podem reclamar com igual direito os valo- batido ao longo de toda a sua história.
res que socialmente partilham, independentemente
de agradarem ou desagradarem aos outros, mesmo
que não respeitem os direitos humanos.

COLÉGIO MANUEL BERNADES A interculturalidade defende que diferentes culturas Fotografia: André Escobar
se devem entender entre si, salientando e valorizan-
do aquilo que as aproxima, promovendo o contacto
entra as mesmas e afirmando que é possível com-
partilhar valores e estabelecer normas de convivên-
cia comuns. Esta atitude, por partir do pressuposto
de que é possível um entendimento intercultural,

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REVISTA PHILOSOPHIA

FILOSOFANDO

ÉTICA, MORAL E POLÍTICA:
KANT, MILL E ARISTÓTELES

INÊS CARTAXEIRO (Nº 1086, 10º D) E JOÃO BARBA (Nº 1170, 10º D)

Apalavra “ética” provém do étimo grego para a Animalidade, e age em função dessa dispo-
“ethos”, que se traduz como carácter, hábi- sição. Como, para além de animais, somos seres
tos e costumes. A ética associa-se, assim, a sociais, apresentamos a disposição para a Huma-
uma dimensão mais interior e de reflexão do nidade, pois por natureza somos animais sociais e
ser humano, que se caracteriza pelo uso da razão. estabelecemos relações com outros seres humanos.
A ética é, portanto, uma disciplina filosófica com Mas, para além de sermos animais sociais, somos
pretensões de universalidade que vai comparar, fun- ainda racionais, o que, consequentemente, leva a
damentar e refletir em códigos morais de diferen- que sejamos morais. Como seres racionais e seres
tes comunidades e no porquê de os considerarmos morais apresentamos, então, uma disposição para a
válidos. Procurando encontrar critérios universais do Personalidade, pois, apesar de estarmos sujeitos à
que é moralmente válido, a ética subdivide-se em nossa condição animal e social, somos pessoas in-
três categorias principais: a ética normativa; a ética dividuais com capacidade para fazer as nossas pró-
aplicada; a metaética. prias escolhas e, assim, desenvolver a nossa própria
A ética normativa é a subcategoria da ética que personalidade.
procura estudar as normas morais das diferentes Devido à nossa condição animal, estamos subme-
comunidades e visa estabelecer os princípios éticos tidos às leis da Natureza. Por sermos sociais e es-
que justificam a existência de normas morais e ava- tabelecermos relações com outros seres humanos,
lia se estas ações estão de acordo com as normas surgem as leis jurídicas. E, ainda, por sermos um ser
morais. A ética aplicada, tal como o nome indica, racional e moral encontramo-nos submetidos às leis
aplica-se às mais diferentes áreas da ação humana, morais.
como, por exemplo, código ético dos profissionais
de saúde, entre outros. A metaética é a subcatego-
ria que pretende definir os conceitos essenciais da
ética, independentemente das suas interpretações e
aplicações, como, por exemplo, a definição de justi-
ça, a definição de bem, entre outros.

A moral é a aplicação das normas morais na ação Fotografia: André Escobar
humana. A palavra moral deriva do étimo latino mo- COLÉGIO MANUEL BERNADES
res e traduz-se como os hábitos e costumes de ação
de uma comunidade. Ao contrário da ética que se
caracteriza pela sua dimensão reflexiva e interior, a
moral apresenta uma dimensão mais prática e mais
exterior. A moral define-se, então, como sendo o
conjunto de normas morais que regulam as nossas
ações. Ou seja, a moral é o conjunto de normas que
regulam as nossas ações e a ética é a reflexão filo-
sófica acerca da moral. Na reflexão sobre a moral,
ou seja, a ética, iremos abordar dois filósofos com
perspetivas diferentes. Primeiro Immanuel Kant e
depois Stuart Mill.

Immanuel Kant foi um filósofo alemão do século
XVIII, que refletiu sobre a ética. Segundo Kant, como
o ser humano é um animal, possui uma disposição

10

REVISTA PHILOSOPHIA

Estas leis pertencem a diferentes planos da dimensão lações são: 1ª) “Age apenas segundo uma máxima
humana. Enquanto as leis jurídicas e as da nature- tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se
za, por serem heterónomas, pertencem ao plano da torne uma lei universal.”; 2ª) “Age como se a máxima
legalidade, as leis morais, por serem autónomas, da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em
pertencem ao plano da moralidade. Mas, qualquer lei universal da natureza.”; 3ª) “Age de tal maneira
lei, independentemente do plano em que se insere, que uses a Humanidade, tanto na tua pessoa como
implica um dever, e implica, consequentemente, uma na pessoa de qualquer outro, sempre e simultanea-
ação para cumprir esse dever. No entanto, essa ação mente como fim e nunca simplesmente como um
pode ser conforme o dever (ação legal) ou contrá- meio”. Logo, uma ação só pode ser moral se cumprir
ria ao dever (ação ilegal) dependendo se cumpre, ou estes critérios. No entanto, o dever no plano da mo-
não, a lei. Pode ser uma ação pelo dever (ação moral) ralidade é um duplo dever, porque, como no plano da
se cumprir o dever que a lei me impõe pelo desejo moralidade as leis são autónomas, sou eu, o autor
de cumprir o dever. O que determina o cumprimen- das mesmas que possuo, assim, não só o dever de
to, ou não, do dever é o cumprimento do imperativo cumprir o dever que é inerente a qualquer lei, como
hipotético, no plano da legalidade, e do imperativo possuo também o dever de me impor, o dever de
categórico, no plano da moralidade. Um imperativo, cumprir o dever porque sou eu o autor das mesmas.
seja hipotético ou categórico, caracteriza-se como Logo, eu possuo um duplo dever. Possuo o dever de
o sentido de obrigação a que o dever impõe. Um im- me impor o dever de cumprir o dever. O que Kant
perativo hipotético distingue-se de um categórico mais valoriza é, não o que sucede após a ação, mas
porque, enquanto o imperativo hipotético é o cum- sim a intenção que lhe antecede.
primento do dever devido a uma condição (ou seja,
cumprir o dever para evitar ser punido ou receber
uma recompensa) (“como meio para uma outra in-
tenção”), o imperativo categórico é o cumprimento
do dever pelo simples dever de cumprir o dever que
a lei me impõe. Ou seja, cumpro o dever não porque
espero alcançar algo com a minha ação, mas porque
desejo cumprir o dever que a lei me impõe (“sem se
basear como condição em qualquer outra intenção”).
Pelo que, enquanto o imperativo hipotético se baseia
na intenção de não ser punido ou ser recompensado
(correspondendo este ao plano da legalidade), o im-
perativo categórico cumpre o dever que a lei moral
me impõe só por a lei me impor o dever, correspon-
dendo ao plano da moralidade. Kant possui, assim,
uma moralidade deontológica baseando-se no cum-
primento do dever.

No plano da moralidade, todas as ações são julga-
das moralmente, podendo ser morais ou imorais,
mas nunca amorais. Uma ação é moral se a lei que
presidiu à ação for moral ou não. Para uma ação ser
moral, a lei que presidiu à minha ação tem de respei-
tar uma das três formulações a seguir apresentadas
e outros subcritérios como ser “universalizável”, ou
seja, se nas mesmas circunstâncias a que eu estou
a ser chamado a agir, toda a Humanidade pode es-
colher agir da mesma forma que eu. As três formu-

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COLÉGIO MANUEL BERNADES
Fotografia: Tiago Pereira

REVISTA PHILOSOPHIA

Segundo Stuart Mill, um filósofo britânico do século dois pontos de vista: a Qualidade e a Quantidade. No
XIX, como a sociedade não tem acesso direto às in- ponto de vista qualitativo, quanto melhor for o prazer,
tenções com que cada indivíduo age, uma ação não mais moralmente válida a ação se torna. Pode rela-
pode ser julgada de acordo com a intenção com que cionar-se esse princípio com o hedonismo, em que
é realizada, mas deve ser julgada através das con- todo o prazer é bom e só o prazer é bom. O prazer é
sequências desta ação. Logo, segundo Mill, julga-se intrinsecamente bom enquanto a dor é má, tal como
as consequências das ações. Uma consequência da a ausência de dor o é. Para um hedonista, mesmo
ação é boa quando provoca num maior número de que cause prazer a mim e dor aos outros, a ação é
pessoas prazer ou ausência de dor, sendo que o re- moralmente válida. Logo, o utilitarismo assemelha-
sultado ideal de uma ação será trazer prazer a todos -se a um hedonismo, pois ambos procuram o prazer,
os indivíduos afetados direta ou indiretamente pela afirmando que os indivíduos vivem à procura de pra-
ação. Ou seja, segundo Mill, quando a minha ação zer e, quanto mais prazer alcançarem, melhor. Como
provoca prazer nuns, ausência de dor noutros e dor resposta a esta crítica, Mill afirma que o ser humano
noutros, o critério que me permite perceber se a mi- tem dois tipos de prazer, os prazeres inferiores que
nha ação é moral ou imoral é o princípio da maior fe-
licidade. A moralidade, segundo Mill é, portanto, uma
moralidade utilitarista porque se foca na utilidade
destas ações. Uma ação é útil enquanto promover a
felicidade para um maior número de pessoas, sendo
inútil se promover a dor. Atinge-se a felicidade atra-
vés da ausência de dor ou através do prazer.

Nesta sociedade global, é necessário ter em consi- Figura 1. Descrição da intensidade e duração dos prazeres COLÉGIO MANUEL BERNADES
deração que toda e qualquer ação que um indivíduo inferiores.
tome afeta direta ou indiretamente um grande con-
junto de pessoas. No entanto, como cada indivíduo Figura 2. Descrição da intensidade e duração dos prazeres
é uma pessoa diferente, a forma como as conse- superiores.inferiores.
quências da minha ação afetam esses indivíduos
diferem. A noção fundamental, segundo Mill, é que são os prazeres físicos, que estão associados aos
o ser humano, como ser racional que é, só age em valores materiais, e os prazeres superiores que são
função daquilo que ele considera ser um bem para os prazeres espirituais, que estão associados aos
si. É, portanto, impossível ao ser humano agir em valores espirituais. Os prazeres inferiores, que são
função de algo que lhe traga dor. Logo, a moralidade o que nos dá prazer fisicamente e que se encontra
é importante para regular as relações entre as pes- ligado à dimensão corpórea do ser humano, são os
soas, pois cada um age segundo um bem individual. prazeres mais intensos, mas que apresentam uma
Portanto, a moralidade é importante como forma de menor duração e podem causar dor na sua ausência
harmonizar as relações entre as pessoas. A morali- (Fig.1). Os prazeres superiores que são os prazeres
dade de Mill é, assim, uma moralidade teleológica.
Por teleologia entende-se o discurso racional sobre
o fim ou a finalidade do objeto em questão, neste
caso do ser humano. A finalidade do ser humano é
conseguir alcançar a felicidade independentemente
do que se interpreta como felicidade; logo, todas as
nossas ações tem um único fim: a felicidade.
A perspetiva de Mill sobre a moralidade em que se
aplica o princípio da maior felicidade pode levantar
duas críticas. Pode-se analisar esse princípio sob

12

REVISTA PHILOSOPHIA

espirituais, que se encontram associados à dimen- ver, e que esse cumprimento do dever deve ter uma
são espiritual, são os prazeres menos intensos mas “intenção santa” (cumprimento do dever pelo desejo
de uma maior duração em que a sua ausência não de cumprir o dever). A moral kantiana foca-se, assim,
causam dor (Fig.2). No ponto de vista quantitativo, na intenção com que uma ação é tomada, enquanto
surge a ideia de que uma ação é valida se causar a moralidade de Mill assenta na noção de que uma
prazer ou ausência de dor pelo menos a 51% da po- ação e moralmente válida, ou não, dependendo da
pulação afetada (direta ou indiretamente) pelas con- sua utilidade. Uma ação é útil ao trazer prazer ou au-
sequências de uma ação. Em termos ideais, o prazer sência de dor. Como tal, verificamos que Mill se foca
seria para 100% da população. Logo, se num total na utilidade das ações, pelo que podemos afirmar
de 20 pessoas, 19 pessoas decidissem escravizar 1 que, enquanto a moral kantiana é uma moral forma-
pessoa, essa ação, segundo o princípio da maior feli- lista que avalia as ações à priori, a moral de Mill é um
cidade, seria moralmente válida. E isto é uma crítica moral com conteúdo material e, portanto, avalia as
severa porque é uma incongruência a nível moral. ações à posteriori.
Como resposta a esta crítica, Mill afirma que, como Em ambos os autores, existe uma reflexão sobre
se está a analisar a moralidade de uma ação, a mo- a moralidade. E sendo a moralidade o conjunto de
ralidade assenta em alguns princípios cristãos, que normas morais que visam regular as relações entre
se encontram na base de qualquer sistema moral, indivíduos, então perante a insuficiência da dimen-
que são “Ama o outro como a ti mesmo” que irá im- são punitiva da moral - caso algum individuo no uso
plicar “não faças aos outros aquilo que não queres do seu livre-arbítrio quebre uma norma moral - sur-
que façam a ti”. Logo, só é moralmente válido o que gem as leis jurídicas. E essas leis serão aplicadas por
está de acordo com os princípios cristãos.
um Estado com autoridade
legitima.

COLÉGIO MANUEL BERNADES O Estado surge, então,
Fotografia: André Escobar como a forma de regular
um território até então não
politicamente organizado.
Essa organização será ne-
cessária na manutenção
da paz num território não
organizado politicamente,
como seria o caso de uma
ilha até então inabitada,
onde surgem indivíduos
sem qualquer força de Es-
tado autoritária que regule
as suas relações. Nessa
ilha onde, ainda, não existe
nenhum Estado com auto-
Opondo estas duas visões sobre a moralidade, ve- ridade legítima sobre os indivíduos, como parte da
mos que, enquanto a moral kantiana é uma moral natureza humana, os indivíduos irão organizar-se e
deontológica, que se traduz como sendo um dis- criar um Estado.
curso racional sobre o dever, a moral de Mill é uma
moralidade utilitarista, que se traduz na utilidade de Esse Estado que os indivíduos vão criar de forma livre
uma ação para alcançar a felicidade. Ou seja, a moral poderá admitir diversas formas, como por exemplo:
kantiana assenta na noção de que devemos cumprir uma Monarquia (o governo de um sobre todos); uma
a lei pelo dever que a lei me impõe de cumprir o de- Aristocracia (o governo de alguns sobre todos); uma

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REVISTA PHILOSOPHIA

Democracia (o governo de todos sobre todos). Qual- amor, a satisfação da necessidade individual de um
quer uma destas três formas de configuração de Es- corresponde à satisfação das necessidades daquele
tado é legítima desde que ajam em função do bem que ama. No entanto, esta comunidade não con-
comum. No entanto, estas três formas possíveis de segue satisfazer todas as necessidades dos seus
organização política podem degenerar, tornando-se membros pelo que surge, assim, a aldeia. Na aldeia,
ilegítimas surgindo, por exemplo: uma Tirania (o go- relacionam-se diferentes famílias, diferenciando-se
verno de um sobre todos); uma Oligarquia (o gover- ainda da família, pois o laço afetivo que une os mem-
no de alguns sobre todos); uma Anarquia (o governo bros da aldeia, em vez de ser o amor, passa a ser
de todos sobre todos), sendo o critério de distinção a amizade. Tal como na família, também na aldeia
entre um Estado com autoridade legítima de um Es- existem regras e normas para promover e regular as
tado com autoridade ilegítima a noção duma ação relações entre os membros dessa comunidade. Na
do Estado que promova o bem comum, não agindo aldeia, cada indivíduo procura satisfazer os seus in-
em favor do bem privado dos teresses particulares e, como
governantes. A Anarquia é um tal, torna-se mais fácil o sur-
caso extremo, pois o Estado gir de conflitos de interesses,
deixará mesmo de existir. gerando confrontos entre
membros desta comunidade.
A origem desse Estado, se- Tal acontece, porque os in-
gundo Aristóteles, filosofo divíduos sobrepõem as suas
da Antiga Grécia do século IV necessidades individuais às
a.C., começa com a noção de O Estado surge, então, para dos outros, o que pode levar
que a comunidade é anterior regular a coexistência pacífica à quebra dos laços de amiza-
ao individuo e que este nasce entre os membros da cidade, de que inicialmente uniam os
já inserido na mesma. Aristó- membros desta comunidade.
teles justifica esta afirmação E é, portanto, na tentativa de
fundamentando que o ser pois é a partir do momento da regular uma boa convivência
humano é um ser racional só criação de um Estado que uma na aldeia, satisfazendo as ne-
podendo existir numa comu- cessidades particulares sem
nidade. Visto que este nasce aldeia se transforma numa conflito, que surge o Estado.
como ser irracional, só se cidade.
torna racional ao estabelecer O Estado surge, então, para
relações com outros seres regular a coexistência pa-
humanos que levem ao seu cífica entre os membros da
desenvolvimento enquanto membro dessa comuni- cidade, pois é a partir do momento da criação de
dade. Aristóteles justifica que o ser humano é um ser um Estado que uma aldeia se transforma numa ci-
racional, pois é um ser dialógico (dialoga com outros dade. No entanto, no momento de transformação
seres humanos, estabelecendo relações através do de uma aldeia em cidade, o laço afetivo que une os
diálogo). Numa primeira fase, o ser humano irá re- seus membros deixa de ser a amizade e passa a ser
lacionar-se primeiramente com a sua família, sendo a justiça. E é, assim que, com esta conceção natura-
esta a primeira comunidade em que o ser humano se lista, Aristóteles justifica a origem dum Estado, pois
insere, fazendo parte desta desde o seu nascimento. afirma que o Estado decorre da própria natureza
humana. Como tal, Aristóteles aponta o ser humano COLÉGIO MANUEL BERNADES
Nesta comunidade, existem regras e normas que vi- como um ser racional, social, moral, e ainda, político.
sam promover e regular as relações entre os seus Aristóteles aponta então para o telos da natureza
membros. Essas relações existem de forma a possi- humana, que é a finalidade do ser humano atingir
bilitar, a cada membro, a satisfação das necessida- a felicidade. No entanto, a finalidade do ser huma-
des individuais de cada um. No entanto, como estes no, que é felicidade, só se consegue atingir através
membros se encontram unidos pelo laço afetivo do do bem comum. A autoridade do Estado criado só

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REVISTA PHILOSOPHIA

FILOSOFANDO

O EMPIRISMO

INÊS GALVÃO (Nº 671, 11º D)

AGnosiologia, do grego gnosis que significa Os empiristas ingleses não saem da mentalidade
conhecimento com logos que designa dou- racionalista, que é geral da filosofia moderna, ape-
trina/teoria, é a disciplina filosófica que se nas pretendem também encontrar a verdade numa
ocupa do estudo do conhecimento humano, análise da razão e supõem assim que a realidade em
refletido sobre a origem, a essência e os limites do si possui uma estrutura racional. No entanto, não se
conhecimento, e procura estabelecer uma coerên- dedicam a um entendimento de ideias já elaboradas,
cia do pensamento entre o sujeito e o objeto (tudo que a razão possui; examinam a forma como a razão
aquilo que é exterior ao espírito). Relativamente a elabora os seus conteúdos e procura saber de que
esta disciplina, emergem diversas teses, das quais elementos iniciais parte. Para estes filósofos, a razão
somente se abordará, neste trabalho, o Empirismo. não será já “um depósito de ideias e princípios, que
As ideias divergem quando se fala de Empirismo; seriam também princípios da realidade, mas uma
no entanto, há certas características fundamentais máquina cuja estrutura tem que se conhecer, para
desta corrente filosófica que se mantêm, indepen- assim ser conhecida a génese geral”. O Empirismo
dentemente do autor que a defenda ou da época caracterizou-se então por ser uma corrente que era
inserida. Apesar de muitos filósofos estudarem e simultaneamente o racionalismo, uma vez que ti-
abordarem este tema de diferentes maneiras, este nham um objetivo comum - fazer com que a filosofia
trabalho incidirá especialmente sobre o Empirismo tivesse um método que proporcionasse o mesmo
defendido por David Hume; no entanto, terá ainda sucesso que a ciência da época conseguiu.
algumas referências aos principais representantes Os principais representantes desta corrente foram
desta corrente como John Locke, Thomas Hobbes e John Locke, Thomas Hobbes, George Berkeley e Da-
George Berkeley. vid Hume.

O Empirismo sofreu algumas alterações ao longo da
Idade Média e Moderna; porém, há características
fundamentais que, apesar das diferentes manifes-
tações e perspetivas de encarar esta corrente filosó-
fica, se mantiveram, como o facto de que todo o co-
nhecimento tem origem na experiência e só é válido
quando verificado por fatos metodicamente obser-
vados; no entanto, a sua validade pode transcender
o plano dos fatos observados. É, então, juntamente
com o Racionalismo, uma das grandes correntes
formadoras da filosofia moderna (século XVI-XIX).

É a segunda grande corrente filosófica da moder- Fotografia: André Escobar
nidade, tendo-se desenvolvido ao longo dos sécu- COLÉGIO MANUEL BERNADES
los XVII e XVIII, nas ilhas britânicas. O Empirismo
inglês não nasce por causalidade nestas ilhas; já
desde o século XIV que a filosofia britânica vinha a
demonstrar uma certa desconfiança relativamente
à mentalidade puramente abstrata, bem como al-
gum interesse empírico, encontrando-se por isso
alguns antecedentes desta corrente na filosofia dos
intelectuais de Oxford. Mais precisamente, nasceu
em Inglaterra, durante a segunda metade do século
XVII (época de Leibniz), opondo-se ao racionalismo
ocidental.

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REVISTA PHILOSOPHIA

Evolução do termo «Empirismo» máticos, são reduzidos a uma fonte empírica, aquilo
O método empírico de Francis Bacon e de Thomas que é produto do contacto direto e imediato com a
Hobbes influenciou em grande parte muitos filósofos experiência. Segundo Stuart Mill, na sua obra Siste-
da Inglaterra e em especial do Reino Unido, a partir ma de Lógica, quando a redução é feita a uma mera
do século XVII, acabando por se estender até o sécu- experiência sensível, estamos perante o sensismo,
lo XVIII. No entanto, o termo “Empirismo” foi definido ou sensualismo. Por outro lado, o Empirismo pode
pela primeira vez de modo formal pelo inglês John ser considerado como moderado, ou genético-psi-
Locke (1632-1704), no seu “Ensaio Acerca do En- cológico, onde a origem temporal dos conhecimen-
tendimento Humano” (1690). tos parte da experiência, não lhe reduzindo a validez
O britânico encontrava-se saturado do ensino com- do conhecimento; logo, podem ser considerados
plexo que recebia em Oxford e procurou a simplicida- conhecimentos e não têm necessariamente de ser
de e clareza de uma verdade imediata que mudasse empiricamente válidos (juízos analíticos e formula-
aquela mentalidade, característica do povo britânico ções kantianas). John Locke defende, na sua obra
- a paixão pelas coisas concretas, imediatas, práticas acerca do entendimento humano, que as sensações
e eficazes. Este filósofo foi considerado o fundador são apenas pontos de partida para tudo aquilo que
desta corrente, ficando, devido à sua nacionalida- se conhece a respeito das ideias. Para os modera-
de, conhecida como Empirismo britânico. De acordo dos, às verdades universalmente válidas, como as
com John Locke, a experiência não são as experiên- matemáticas, cuja validez assenta no pensamento,
cias de vida, mas as nossas sensações (sentidos); desenvolve-se assim a epistemologia. Por fim, ainda
a partir da sensação há a reflexão; logo, as nossas se considera a existência de um Empirismo científi-
ideias são uma reflexão daquilo que os nossos sen- co, que admite como válido o conhecimento oriun-
tidos perceberam do mundo. Após esta constatação, do da experiência ou verificado experimentalmente.
Locke afirma que todos os seres humanos nascem Atribui-se aos juízos analíticos significações de or-
com a mente em branco, por outras palavras, lim- dem formal enquadradas no domínio das fórmulas
pa, sendo que com as experiências e conhecimentos lógicas, ou seja, todo o conhecimento vem apenas da
adquiridos ao longo da vida a personalidade vai-se experiência verificada pela observação, onde os fac-
formando, ou seja, a mente vai ficando “colorida”. tos daí oriundos são atribuídos aos juízos analíticos.

COLÉGIO MANUEL BERNADES Depois de Locke, o Empirismo britânico sofreu a
reformulação feita pelo irlandês George Berkeley
(1685-1753). Para este, o que conhecemos do
mundo não é realmente o que o mundo é, ou seja,
podemos perceber o mundo através dos sentidos,
mas isso não significa que o conhecemos de verda-
de. Mais radical do que o Empirismo de Berkeley é o
Empirismo de David Hume (1711-1776). De acordo
com o filósofo escocês, só existe o que percebemos,
todas as relações que fazemos entre o que conhece-
mos não são conhecimentos verdadeiros.

Três linhas empíricas

Devido a uma divergência de pensamentos, podemos Fig. 1 - Cinco sentidos, base do conhecimento empírico
considerar a existência de três linhas empíricas. Pri-
meiramente, a existência de um Empirismo integral,
onde todos os conhecimentos, inclusive os mate-

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REVISTA PHILOSOPHIA

Hume realizou uma investigação sobre a origem, palavras, uma ideia é verdadeira se advém de uma Fotografia: André Escobar
possibilidade e limites do conhecimento. A sua teo- impressão ou mesmo se expressa um conhecimento
ria não depende do psicologismo de Locke nem do de relação de ideias. COLÉGIO MANUEL BERNADES
espiritualismo de Berkeley; no entanto, segue como Natureza Humana como limite de conhecimento
sendo uma psicologia da natureza humana. O es- David Hume considera que a capacidade cognitiva
cocês, na sua obra “Tratado de Natureza Humana”, da razão humana é limitada e por isso não existe
desenvolve um empirismo radical. Critica a noção de nenhum fundamento objetivo para o conhecimento.
«ideia» que defende Locke no seu «Ensaio» e aca- O filósofo demonstra “pouca simpatia” pelo Racio-
ba por acusá-lo de ter influências racionalistas. O nalismo, género filosófico que dita não haver limites
filósofo considera que não podemos aplicar o termo para as capacidades cognitivas da razão, sendo pos-
«ideia» para designar todos os nossos conhecimen- sível ter-se conhecimento dos assuntos mais com-
tos como faziam os racionalistas, reservando-a so- plexos e difíceis.
mente para considerar alguns tipos.
Segundo Hume, todo o conhecimento Hume considera que a natureza humana constitui a
deriva da experiência, todos os nossos ciência fundamental, uma vez que todas as outras
conteúdos mentais são perceções. Estas ciências, como são o resultado do raciocínio huma-
podem ser de dois tipos ou impressões, no, de uma forma ou de outra, dependem dela. O fi-
caracterizando-se como sendo perceções lósofo pretende fazer naquilo a que se chama uma
vivas e mais fortes, as unidades básicas filosofia moral (as atuais ciências humanas como a
que acabam por formar as ideias, que economia, psicologia e disciplinas que hoje incluimos
são perceções mais fracas ou menos vi- na filosofia como a epistemologia, lógica, metafisi-
vas. Qualquer ideia que não tenha uma ca), o que Newton fez com a filosofia natural (física)
impressão que lhe corresponda é consi- e, assim, libertar o estudo da natureza humana da
derada falsa e, desta forma, David Hume especulação e torná-lo uma investigação empírica,
rejeita a existência de ideias inatas, pois com base na observação e experiência, chegando a
“as impressões são a causa das nossas princípios que permitam explicar o conhecimento.
ideias e não as nossas ideias das nossas Tanto no método de Newton como de David Hume, é
impressões”. As impressões sensíveis são considerado que a busca destes princípios deve ter-
por isso, para além de um critério de ver- minar quando se atingem os princípios mais gerais
dade, o limite do conhecimento humano. que a experiência permite; logo, os limites do conhe-
A partir desta distinção, Hume estabelece um critério cimento passam a ser os limites da experiência e as
de certeza, ou seja, uma ideia tem de preceder de
uma impressão, caso contrário, não pode ser consi-
derada conhecimento. Este critério é o ponto de par-
tida para a classificação de, por um lado, a existência
de conhecimentos de factos, e por outro, a existência
de conhecimentos que advêm da relação existente
entre ideias. Ao nível do primeiro, tal conhecimento
provém diretamente da experiência sensível, ou seja,
das nossas impressões; por outro lado, o segundo
é um conhecimento referido a ideias mais gerais e
abstratas, não sendo por isso um conhecimento de
factos concretos, mas sim a relação de certas ideias,
apesar de estas, como todas, permanecerem com
base na experiência. Assim, Hume consegue ter um
critério mais preciso do que o de Locke, por outras

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REVISTA PHILOSOPHIA

hipóteses sobre algo não observável ou certas cren- não existindo nenhum fundamento que conecte as
ças são excluídas. Este estudo vai revelar as capaci- perceções e se distancie delas; logo, não há realidade
dades e os limites da mente e desse modo estabe- exterior ou substâncias pensantes. Por outro lado,
lecer o que é possível conhecer. A filosofia de Hume o Ceticismo de Hume divide-se em dois aspetos:
tem assim uma fase crítica, cujo objetivo é eliminar por um lado, um ceticismo relativamente às teorias
as teorias erradas da filosofia tradicional, e uma fase metafísicas, que procuraram ultrapassar o âmbito
construtiva, constituída pelos princípios e teorias a da experiência e observação, havendo a crença na
que chega por intermédio da ciência do Homem. existência de algo para lá dos fenómenos; e, ainda,
O empirismo de David Hume considera a experiência um ceticismo mitigado ou moderado, uma vez que
sensível como limite e fundamento do conhecimen- defende que o conhecimento dos factos é possível,
to; na perspetiva humana, existem duas consequên- sendo que as limitações das capacidades cognitivas
cias caracterizadoras que se designam por Fenome- humanas e a propensão para o erro são reconheci-
nismo e Ceticismo. das. Hume apresenta-se por isso como cético mo-
O Fenomenismo esclarece que apenas conhecemos derado, não afirmando a impossibilidade de conheci-
as perceções, isto é, tudo o que se apresenta à men- mento, mas sim a de um saber rigoroso; no entanto,
te e, como tal, a realidade reduz-se aos fenómenos, afasta-se do ceticismo radical, aquele que dita não
ser possível qualquer conhecimento, pois não exis-
tem justificações suficientes para as nossas crenças.

COLÉGIO MANUEL BERNADES
Fotografia: Alexandre Sousa

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REVISTA PHILOSOPHIA

FILOSOFANDO

DESCARTES E AS PROVAS DA
EXISTÊNCIA DE DEUS

TERESA MOREIRA (Nº 2312, 11º D)

Fotografia: André Escobar

Foram vários os que também tentaram provar a toda uma obra dedicada a este tema que se chama COLÉGIO MANUEL BERNADES
existência de Deus. Um deles foi São Tomás de Proslogion: nesta obra, retrata Deus como aquilo so-
Aquino que se referiu a Deus com o “primeiro bre o qual nada de maior pode ser pensado, daí que
motor”: o movimento é-nos percetível através forçosamente existe.
dos sentidos e também, através dos mesmos, com- «Isto <que “alguma coisa maior do que a qual nada
preendemos que para que algo se mova é necessário pode ser pensado” existe tanto no intelecto como na
que algo/alguém mova esse algo. A pergunta situa- realidade>, em todo o caso, é tão verdadeiro que nem
-se no seguinte: quem terá movido o ser humano? se pode pensar que não exista. Porque pode-se pen-
E aqui surge a referência a Deus como um motor e sar que existe alguma coisa que não se pode pensar
o primeiro, pois foi ele que proporcionou o início do que não existe; o que é ser maior do que aquela que
movimento, isto porque, subjetivamente, Deus é po- se pode pensar que não existe. Daí que, se se pode
tência, o que se reflete na sua entidade como ato, pensar que “alguma coisa maior do que a qual nada
movimento, tempo. Esta é apenas uma das provas pode ser pensado” não existe, <então> aquilo mes-
elaboradas por São Tomás de Aquino. Santo Anselmo mo “maior do que o qual nada pode ser pensado” não
tentou provar, assim como os anteriores, e escreveu

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REVISTA PHILOSOPHIA

é “aquilo maior do que o qual nada pode ser pen- 4. O conceito de Deus analisa o mesmo como o ser
sado”; o que não pode convir. Assim, pois, “alguma que possui todas as perfeições; Deste modo, como
coisa maior do que a qual nada pode ser pensado” a existência é uma perfeição, Deus tem que existir.
existe tão verdadeiramente que não se pode pensar
que não existe. O facto de Descartes aparentar, pelo meio do seu
raciocínio, que todas as ideias, tanto inatas ou não,
«E este ser és tu, Senhor, nosso Deus.» existem, pois tem de haver uma causa maior para a
existência destes conceitos, pode parecer que não
tem nenhum sentido. Apesar de o ser racional ter
(S. Anselmo, Proslogion seu Alloquium de Dei existentia, 1078)

ideias de variadas e quase infinitas coisas diferen-
Descartes, com recurso às ideias inatas de perfeição tes, entre as quais algumas que sabemos que não
e infinito, começou a construir o seu raciocínio para existem, por exemplo, um unicórnio, observando o
proceder à elaboração das provas da existência de raciocínio do filósofo, percebemos que, sendo Deus
Deus: a perfeição, e esta representa a maior possível cau-
sa da existência de algo, todos estes conceitos que
1. Sabendo que tudo o que existe tem uma causa que o ser humano tem possibilidade de observar na sua
explica a sua existência, que é maior ou da mesma mente provêm do facto de Deus existir, o que justifi-
ordem de grandeza dessa existência, pois não é pos- ca que possamos ter ideias factícias – ideias basea-
sível encontrar algo que tenha uma causa de menor das na nossa imaginação e que, dessa forma, não
ordem de grandeza do que a existência desse algo, constituem uma realidade física.
então para ser possível termos presentes os con-
ceitos de infinito e perfeição, sendo nós, humanos, Problema do Génio Maligno
imperfeitos e finitos, obrigatoriamente não podemos
ser nós a causa dessa mesma ideia, pois não temos Ao provar a existência de Deus através do método
uma maior ordem de grandeza que a perfeição ou cético e racionalista, deparou-se com um problema:
infinito; logo, a existência destas ideias inatas foi e se a entidade que reconhecíamos como Deus, ge-
criada por algo ou alguém perfeito e infinito. A enti- nericamente a perfeição, fosse um génio maligno?
dade cujas características são estas é a entidade a
que chamamos Deus, logo Deus existe. Se isto se verificasse, então invalidaria todas as
nossas ideias inatas, pois conduziria à retirada de
2. Sendo que Deus é um ser infinitamente perfeito, credibilidade destas, tal como todas as outras já de-
os humanos não poderiam ter essa ideia de Deus se sacreditadas pelo filósofo. Se realmente houvesse a
não houvesse nenhum, ou seja, nenhum ser infinita- possibilidade de haver um Génio Maligno, então as
mente perfeito, logo Deus existe. ideias inatas que teríamos seriam enganadoras, pois
estas levariam ao raciocínio da validação da existên-
3. Os seres humanos nascem com a ideia de Deus e, cia de Deus.
como vimos, tudo o que existe tem uma causa que
causou a existência de algo e preserva a sua exis- Como podemos reparar, Descartes voltou a utilizar
tência; se os seres humanos fossem capazes de a dúvida como método para adquirir conhecimento
prolongar a sua existência infinitamente, então te- absoluto e, da mesma forma, notamos o caráter ra-
riam como saber. Visto que não sabemos, podemos dical e hiperbólico da dúvida de Descartes ao sus-
COLÉGIO MANUEL BERNADES concluir que não somos a causa da nossa própria peitar que as ideias inatas podiam ser postas em
existência e preservação. Então, qualquer que seja causa pela existência deste Génio Maligno quando
o ser que criou o ser humano também tem de ser ele próprio já tinha enunciado as ideias inatas como
causa da ideia de Deus nos humanos; a única coi- as únicas capazes de fornecer conhecimento e, des-
sa capaz de criar e preservar o ser humano, sendo te modo, também descreu das mesmas ideias que
este aquele cujo contém a ideia de Deus, é Deus, logo anteriormente tinha assumido como verdadeiras.
Deus existe.

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REVISTA PHILOSOPHIA

Porém, chegou à conclusão de que o princípio da não a interação metafísica e abstrata que a igreja
causalidade não permite a realidade de um Génio idealiza entre o mesmo e nós, humanos. É também
Maligno, uma vez que todos os conceitos formados relevante acrescentar que, ao demonstrar que Deus
na cabeça do ser humano, reais ou não, exijam que é um raciocínio lógico, implica que este seja perfeito,
haja uma causa para a sua formação maior ou da obviamente, o que leva a que quer o Deus judeu como
mesma ordem de grandeza que esse conceito; o o muçulmano e os restantes sejam todos iguais, isto
conceito de perfeição não poderia ser formado sem é, Deus é o mesmo para todas as diferentes religiões.
a existência dum ser perfeito,
como já foi provado; contudo,
um ser perfeito não pode ser
mau; logo, isso impossibilita
que exista então uma entidade
de caráter maligno que subs-
titua Deus no seu fim de ser a
causa para criação das ideias
inatas e mesmo do mundo e, de
outro modo, também faz com
que seja impossível a não rea-
lidade de Deus.

Assim, para além de reforçar
a sua tese de que Deus existe
com argumentos lógicos e ra-
cionais e desencorajar a crença
num Génio Maligno, a sua dú-
vida fez também com que pro-
vasse que as ideias inatas são
indubitavelmente aquelas que
acrescentam conhecimento ao
ser humano.

É igualmente importante men- Este descaramento que Descartes teve em desa- Ilustração: Tiago Pereira
cionar que Descartes não pen- creditar os dogmatismos da igreja levou a que fos- COLÉGIO MANUEL BERNADES
sa que o fundamento do co- se perseguido e impedido de publicar várias obras
nhecimento é a razão, apesar devido ao seu caráter bastante científico, que muito
de muito fazer parecer. O facto contraria os ideais religiosos.
de ele provar a existência de
Deus duma forma lógica e por
processos dedutivos da razão
transparece que o fundamento
do conhecimento é verdadei-
ramente a razão; este mesmo
facto fez com que insultasse
tanto o Deus cristão como o/s de todas as outras
religiões, visto que Deus é apenas uma dedução ló-
gica e não aquela figura com que se cria uma rela-
ção e empatia ou que nos ajuda em tempos difíceis,
ou seja, está provada a existência de um Deus, mas

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REVISTA PHILOSOPHIA

FILOSOFANDO

A FALIBILIDADE DO
CONHECIMENTO CIENTÍFICO

JOÃO ALVES, (Nº 258, 12º B)

Ao longo dos últimos anos, a ciência, aliada ser humano até um cientista, Isaac Newton, formu-
ao desenvolvimento tecnológico, tem vindo lar uma hipótese que, de facto, se verifica. Newton
a desvendar antigas questões e a descobrir analisou e observou tão detalhadamente e tão repe-
novos conhecimentos, utilizando-os, mui- tidamente a queda dos corpos que concluiu que esta
tas vezes, para solucionar problemas do dia-a-dia, dependia da sua massa e distância à Terra. Tendo so-
melhorando desta forma o conforto, comodidade e frido alguns aperfeiçoamentos com o passar do tem-
estilo de vida das pessoas. Por esta razão, a ciência po, esta teoria tem-se aplicado a todas as quedas de
e os seus métodos têm vindo a ser cada vez mais corpos no nosso planeta, sendo por isso considerada
utilizados sob o pretexto da fiabilidade e segurança conhecimento científico sólido e verdadeiro.
dos seus resultados.

O conhecimento científico pode definir-se pela in-
formação e o saber sobre toda a realidade que nos
envolve, que resulta de um processo conciso e rigo-
roso de análises, observações e experimentações,
as quais permitem a elaboração de hipóteses e a
consequente verificação da sua veracidade ou falsi- O conhecimento científico pode
definir-se pela informação e o
dade. Em ordem a obter este tipo de conhecimento, saber sobre toda a realidade
os cientistas seguem uma série muito bem definida que nos envolve, que resulta de
e programada de passos que constituem o Método
Científico.

Em primeiro lugar, existe uma observação rigorosa e um processo conciso e rigoroso
objetiva de um certo acontecimento e situação du- de análises, observações e
rante um determinado período de tempo considerado experimentações, as quais
adequado. De seguida, dá-se a formulação de uma permitem a elaboração de
hipótese baseada em conhecimentos pressupostos hipóteses e a consequente
que possa encontrar uma resposta para o novo pro- verificação da sua veracidade ou
blema desconhecido. Após a elaboração da hipótese,
é necessária a sua corroboração, a qual se dá através
de diversos processos de experimentação labora-
torial, novas observações e análises lógicas. Depois falsidade.

de diversos testes, se a hipótese for compatível com
todos eles e se mostrar logicamente aplicável à si- No entanto, tal como sobre todos os aspetos e dados
tuação em questão, esta é formalizada e dá origem a adquiridos, é razoável fazer uma análise mais crítica
uma teoria científica. Todo o conhecimento científico à legitimidade incontestável por vezes atribuída ao
é baseado neste tipo de teorias que são, na maior conhecimento científico. Apesar deste conhecimen-
parte das vezes, consideradas seguras e fiáveis de- to ser frequentemente o mais exato e rigoroso no
vido à constante aplicabilidade das mesmas nas di- que toca à análise e estudo da natureza e realidade
COLÉGIO MANUEL BERNADES versas vezes que um dado acontecimento se repete. envolvente, este é sempre baseado numa perspetiva
Tomemos por exemplo a força gravítica. Desde sem- empírica. Se observamos X após Y e esta observa-
pre que o homem vive com os pés assentes na Terra ção se repetir inúmeras vezes, acabamos por fazer
e verifica que qualquer objeto ou partícula largada no uma inferência causal, ou seja, associamos os dois
ar terá exatamente o mesmo comportamento: cairá. acontecimentos pela ordem tão frequentemente ob-
Deste modo, a questão sobre as razões pelas quais servada e damo-la como um dado adquirido para o
tal acontecia sempre esteve presente na mente do futuro, tornando-a conhecimento. A este processo

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REVISTA PHILOSOPHIA

chamamos relação de causa- -efeito e, apesar de intemporalmente verdadeiro, visto que nunca pode-
usualmente bem experimentada e exaustivamente mos estar certos de acontecimentos futuros.
testada, esta relação é inevitavelmente assumida Filósofos como Karl Popper procuraram tornar o
durante o método científico, sendo por isso a ori- conhecimento científico mais fiável e menos falível,
gem de todo o conhecimento científico. Por sua vez, apresentando certas alternativas a determinados
esta relação de causa-efeito seguida da inferência processos do método científico. Tomando o exem-
causal, embora seja muitas vezes verificada e em plo deste pensador do século XX, ele criou um tipo
certos casos nunca contrariada, não pode passar de de validação de hipóteses científicas alternativo e
uma suposição forte, uma vez que não é logicamen- possivelmente mais eficaz do que o próprio critério
te válido prever e conhecer com exatidão eventos da veraficabilidade: o critério da falsificabilidade.
futuros através da indução dos mesmos, visto que Segundo esta ideia, as hipóteses científicas não de-
não temos dados empíricos do que ainda não acon- viam ser sujeitas a testes empíricos com o intuito de
teceu. Este é o problema da indução, o qual constitui serem confirmadas para os casos testados, mas de-
o principal pilar da potencial falibilidade de todos os viam sim ser refutadas, enfraquecidas, falsificadas,
conhecimentos científicos. pois apenas assim é possível detetar os seus erros e
Tomemos agora como exemplo o movimento dos corrigi-los. Deste modo, a teoria científica mais fiável
astros no sistema solar. Na Antiguidade, julgava-se e sólida é a mais resistente às tentativas empíricas
que o Sol girava à volta da Terra, uma vez que era de a falsificar. No entanto, mesmo seguindo este
isso que era sugerido pela observação, ou seja, pela
verificação empírica. No entanto, mais tarde, com o
desenvolvimento científico e o acesso a aparelhos
cada vez menos rudimentares, o universo começou
a ser estudado a fundo e chegou-se à conclusão
que não só era a Terra que girava à volta do Sol, mas
também que, tomando como perspetiva todas as
galáxias e infinidades conhecidas e desconhecidas,
o nosso planeta se afigura algo totalmente ínfimo
e insignificante, apesar de assumir obviamente um
papel central e indispensável na vida humana.

Ora, analisando este exemplo em particular, com- Fotografia: André Escobar
preendemos que a nossa visão, que até à altura da COLÉGIO MANUEL BERNADES
formulação da teoria geocêntrica havia experiencia-
do diversos movimentos semelhantes ao que parecia
exercer o Sol e havia verificado que estes descreviam
sempre uma órbita circular de um objeto em volta
de outro, levou a que pensássemos que efetivamente
o Sol girava à volta da Terra e que o considerásse-
mos conhecimento científico verdadeiro, apesar de
este vir a ser futuramente contrariado, abandonado
e substituído por um mais fundamentado e credível
com base em observações mais exatas. Então, o que
garante que as perspetivas e teorias sobre a realida-
de que temos hoje não são também ilusórias e não
serão completamente descartadas e substituídas
no futuro? Nada. Tendo em conta as ideias apresen-
tadas anteriormente, concluímos a impossibilidade
de obter conhecimento científico invariavelmente e

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REVISTA PHILOSOPHIA

processo não é possível afirmar a infalibilidade de modo, para encontrar a solução para um problema
nenhuma teoria, visto que, mesmo que esta não seja ou uma explicação para uma incógnita, a ciência es-
refutada e falsificável atualmente, nada garante que tuda e analisa os acontecimentos passados relacio-
não o será no futuro. nados com a mesma, formulando uma teoria tão só-
Concluindo, o que a ciência faz através do método lida quanto o número de vezes que se verifica e que
científico ou mesmo doutros métodos alternativos é resiste à falsificação, mas nunca isenta de falhas,
encontrar a explicação mais credível para entender visto que é impossível prever o futuro e, por isso, di-
os acontecimentos não previstos e não compreen- tar a priori uma teoria que seja invariavelmente um
didos. No entanto, muitas vezes vem-se a descobrir acontecimento ainda por se dar.
mais tarde que as teorias criadas se mostram incor- O conhecimento científico, sempre limitado pelo obser-
retas e completamente afastadas da verdade. Deste vável é, por natureza, falível.

COLÉGIO MANUEL BERNADES
Ilutração: Pedro César Teles

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FILOSOFANDO

FINGIR É CONHECER-SE
FERNANDO PESSOA

A propósito do estudo da poe- Nós, seres humanos e ra-
sia pessoana, várias questões cionais, passamos grande
são levantadas, nomeada- parte da nossa vida a “fin-
mente no que toca à forma gir” para ocultar aquilo que
como nos conhecemos. Co- sabemos que faz parte de
nhecer-nos-emos assim tão nós.
bem ao ponto de nos descrevermos tal como somos? Em suma, não sentimos necessidade de fingir os
Pessoa afirma que só fingindo nos conhecemos, o nossos sentimentos ou pensamentos, se não os co-
que levanta sempre aos alunos uma série de dúvidas nhecermos na sua plenitude. Por outro lado, fingir as
e questões que se prendem, em grande parte, com emoções traduz-se em trabalhar e intelectualizar os
o conceito de “fingimento”. Mas logo Pessoa, para- mesmos, recorrendo a memórias mais profundas,
doxal e polémico, antecipa a afirmação dos céticos: resultando num processo de autorreflexão e auto-
“quando finjo, estou a mentir!”, quando em “Isto”, descoberta, que nos leva a entramos em contacto
esclarece: “Dizem que finjo ou minto/ Tudo o que es- com a nossa razão, conhecendo, assim, o nosso ver-
crevo. Não.” dadeiro íntimo.

Foi, precisamente, a partir deste conceito do fingi- Leonor Gonzalez, nº 595, 12º B COLÉGIO MANUEL BERNADES
mento e do que realmente é importante no processo
de autoconhecimento que os alunos do 12º ano ela- Fingir algo consiste em transmitir uma mensagem na
boraram pequenas reflexões, tentando desvendar o qual não acreditamos realmente que expressa sen-
que é, afinal, conhecer-se. timentos que não sentimos realmente. Desta forma,
ao fingir, reconhecemos aquilo que não sentimos e,
Maria João Carvalho consequentemente, somos obrigados a conhecer
aquilo que de facto é característico da nossa pes-
Fingir é ser algo que não se é, e para o sermos temos soa. Assim, torna-se claro que o fingimento requer
de o conhecer, mas para o sentirmos precisamos de sempre um conhecimento prévio do verdadeiro, sen-
nos conhecer. Eu conheço-me se souber fingir. Se do por isso perfeitamente plausível afirmar, tal com
o souber fazer é porque me conheço, pois sou ca- Fernando Pessoa fez, que “Fingir é conhecer-se”.
paz de ocultar o que sou e fazer-me passar por algo
que não sou. Conheço os meus limites, porque me João Alves, nº 258, 12º B
conheço. Segundo o que sei dos meus limites finjo.
Quanto melhor me conheço melhor sei fingir, uma Ao fingirmos algo não estamos necessariamente a
vez que ao me conhecer melhor sei aquilo que sou, conhecer-nos nem precisamos realmente de nos
logo posso fingir, porque também sei aquilo que não conhecer totalmente. Talvez por não nos conhecer-
sou. Posso fingir que não me conheço, mas para isso mos fingimos as nossas emoções, por não sabermos
preciso de me conhecer. Fingir é conhecer-se. na totalidade o que são as verdadeiras emoções.

Beatriz Adão, nº 759, 12º B

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Para fingir apenas necessitamos de saber o estado tadores, embora desconhecidos. É como se existisse
emocional instantâneo da nossa pessoa e não de um outro “eu” que se sobrepõe à nossa verdadeira
conhecer na totalidade a pessoa que há dentro de identidade, tomando o controlo de tudo. Por exem-
nós. plo, o dinheiro “fácil” é um caminho que deslumbra
com frequência o homem, que o cega, impedindo-o
José Maria Maldonado, nº 479, 12º B de ver as “ratoeiras” escondidas nesse percurso.

Por outro lado, mesmo quando nos sentimos dividi-
dos e não sabemos que caminho seguir, quando se
depara na nossa vida uma encruzilhada, o mais sen-
sato é “ouvirmos” aquele outro “eu” que se chama
“voz da consciência”, ainda que por vezes esta não
seja a mais aliciante. Por exemplo, se estou numa
festa com amigos e todo o ambiente me chama para
a voragem dos excessos (álcool, estupefacientes, …),
aí, devo ouvir a voz da minha consciência, esse outro
“eu” sensato que me aconselha a não seguir o cami-
nho da euforia desregrada, mas levando-me a “viver”
essa alegria festiva, com bom senso e equilíbrio.

Em conclusão, todos temos dentro de nós mais do
que um ser que, com frequência, trava lutas, provo-
cando inquietação e desorientando-nos. É necessá-
rio que fiquemos atentos a essa disputa, para que
não haja uma rutura interior e a voz da consciência
prevaleça sobre o outro “eu” que me conduz para
uma satisfação efémera.

Mateus Rodrigues, nº 576, 12º B

Como diria Fernando Pessoa “o Poeta é um fingidor”COLÉGIO MANUEL BERNADES
que se conhece tão bem que consegue fingir senti-
mentos que na realidade não sente. Poderemos não
ser poetas, mas somos observadores e testemunhas
da vida e do mundo. Sentimos de acordo com que o
que vivenciamos.

Pensamos que nos conhecemos integralmente e que
compreendemos todo o nosso funcionamento. Na
Todo o homem, como ser racional que é, tem a sua realidade, é exatamente nesse momento que surge
própria identidade, orientando a sua vida segundo os algo de novo em nós. Abre-se mais uma porta do “Eu”,
princípios que aprendeu desde a mais tenra idade. algo mais para desvendarmos… algo que nos faz re-
fletir sobre quem somos na verdade. Será que somos
Por um lado, às vezes esses princípios orientadores a pessoa que pensávamos ser há segundos, minutos,
desviam-se daquilo que a moral e o civismo ditam, horas? De facto, somos, sem dúvida, moldados pelo
encaminhando-nos para “atalhos” confusos que meio no qual estamos inseridos e pelos sentimentos
ameaçam a nossa estrutura interior, porque são ten- que experienciamos ao longo da nossa vida.

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REVISTA PHILOSOPHIA

Ilustração: Rafaela Duarte (nº 1434, 10ºC)

Sempre que “sentimos” - palavra utilizada no nosso lidade não é o nosso. Fazemo-lo porque os nossos COLÉGIO MANUEL BERNADES
quotidiano, ou porque sentimos frio, calor, dor, ou sentimentos desafiam-nos diariamente a procurar-
porque nos sentimos alegres, entre outros - estamos mos formas de os transmitir.
a fixar o momento e a expressá-lo interiormente. Para fingir, teremos de nos conhecer muito bem,
Quando chega a hora de passar tudo o que senti- para distinguir o sentimento real, aquele que é in-
mos para o exterior, as palavras escorregam-nos, comunicável, do sentimento fingido, aquele que é
escapam-nos, escondem-se, ou simplesmente so- trabalhado pelo Poeta. Assim, poderemos considerar
mem-se. Após longas horas de esforço para que os que “Fingir é conhecer-se”.
demais percebam verdadeiramente o que sentimos, Será que algum dia chegamos a conhecer-nos ple-
compreendemos que a nossa procura das ditas pa- namente, ou simplesmente a saber o que se passa
lavras certas fora infrutífera. Apenas nós conhecere- dentro de nós a cada momento? Será que sentimos
mos as emoções experimentadas em cada momen- aquilo que pensamos ou ficamo-nos apenas pela ilu-
to, as quais guardaremos para sempre. Cada um de são, pelo vazio, pelo nada? Será que apenas damos a
nós terá na “caixinha das memórias” sentimentos esse “ nada” os significados que nos convêm?
intocáveis e intransmissíveis que representarão a Talvez sim, talvez não… fica na consciência de cada
verdadeira base do “Eu”. um de nós, a decifração dos sentimentos vivencia-
Fingir é sentir algo que deveras não se sente, algo dos e que só nós saberemos interpretar. Uma coisa é
simulado. Muitas vezes, essa simulação é tão bem certa, ninguém nos conhece melhor do que nós pró-
feita que nós próprios acreditamos que a mesma prios. Mas será que, ao expressar a minha opinião,
é real. Sentimo-nos dentro de uma pele que não é também eu estive a fingir?
nossa. Face à dificuldade de expressar o que real-
mente sentimos, recorremos ao fingimento, ou seja, Catarina Valente, nº 641, 12º B
colocamos em palavras um sentimento que na rea-

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DEUS E O SENTIDO DA VIDA

CARLOS FRANCISCO - PROFESSOR DE EMRC

Ilutração: Pedro César Teles

COLÉGIO MANUEL BERNADES Pe d i r a m - m e vida: as minhas perdas
que escrevesse e os meus ganhos, os
acerca de Deus meus bens e as pes-
e do sentido da soas que partilham as
vida. Como devo ligar suas vidas comigo, o
estas questões? Que meu trabalho e o des-
relação poderá existir entre elas? Que importância canso, as minhas alegrias e tristezas, em suma, tudo
têm estas questões para a minha maneira de viver a o que me é dado viver. Pensar sobre o sentido da vida
vida? Que utilidade existe numa reflexão sobre estes é extremamente importante e deveria ser uma disci-
assuntos? Há sentido para a vida? A vida faz senti- plina obrigatória na medida em que é a partir daí que
do? E Deus faz sentido nesta reflexão? Tem sentido tudo faz sentido e tudo é sentido de forma diferente.
falarmos de Deus? Passar ao lado desta reflexão é vaguear sem direção,
Em primeiro lugar, há que pôr em evidência uma é correr o risco da errância e não saber para onde
questão decisiva que coloca tudo em jogo na nos- se vai. Esta ausência de reflexão não compromete,
sa experiência de existir. Que orientação devo dar à em princípio, os meus parâmetros biológicos mas
minha vida? Mais do que fazer a pergunta no plural, começa a empobrecer a rica experiência de existir, a
importa fazê-la na primeira pessoa porque sou eu desertificar o espaço que é habitado por sensações,
que construo a minha existência e sou eu o principal relações, perceções e configurações da realidade.
interessado em dar sentido à minha vida. Não parece muito, mas para mim é tudo, e por ser
tudo é que se torna tão importante e decisivo.

A experiência de existir ganha sentido e significado Estar desorientado causa confusão, fica-se cansa-
humano quando me apercebo de que fui chamado a do, com a sensação de andar às voltas, desanimado
existir, que a minha existência é limitada, que existe e triste porque a nossa vida não está definida, não
uma finalidade para a vida e que não existo por acaso. existe reflexão ou, por outro lado, existe uma orga-
Neste dinamismo constante, vai-se percecionando a nização sobre os nossos afazeres diários, sobre as
necessidade de pensar tudo o que integra a minha obrigações quotidianas que a vida nos impõe. Mas

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Deus surge de uma relação ção de amor, puramente afetiva, muito acolhedora, COLÉGIO MANUEL BERNADES
afetiva que se desenvolve a gratificante e compensadora nos limites das rela-
partir de dentro do nosso ser e ções humanas que integram uma vida de constante
sem a qual nos iria fazer sentir comunicação.
vazios e povoados por um Deus surge de uma relação afetiva que se desenvolve
silêncio que incomoda porque a partir de dentro do nosso ser e sem a qual nos iria
nada diz. fazer sentir vazios e povoados por um silêncio que
incomoda porque nada diz. Não é como o silêncio
tudo está pensado de uma forma vaga deixando a que fala e cria possibilidades novas e entusiasman-
sensação de que é demasiado complexo pensar com tes, que faz ressoar a presença de alguém que dese-
profundidade a vida, e essa atitude até acarreta ris- ja entrar em relação que nos puxa para a vida e nos
cos, porque nos faz cair na perceção do absurdo e desafia a continuarmos a acreditar.
para arranjarmos mais problemas já temos muitas Deus comunica horizontes de existência que ultra-
preocupações para resolver. passam os limites da vida e dá à vida um sentido que
Sou habitado pela ideia de que existe um sentido ultrapassa a simples abordagem biológica. A vida
profundo para tudo o que existe. Uma existência ao ganha outros significados quando é vista a partir dos
acaso transformaria tudo num acaso e retiraria a olhos de Deus. Ele dá-nos os Seus olhos para ver-
possibilidade da existência de um sentido para tudo. mos e as Suas mãos para tocarmos a realidade de
Desta forma, tem sentido pensar-se em dar ordem uma forma mais intensa e enriquecedora na nossa
a tudo o que aparentemente está mergulhado no maneira de sentir.
caos e é fruto do acaso e parece ser absurdo. Mas Quando precisamos de sentir mais e mais para acre-
fica aqui em evidência a ideias de que este sentido ditarmos que estamos vivos e que a vida tem senti-
profundo que se quer dar à vida depende do grau do, só a confiança em alguém infinitamente bom em
de vontade que revelo e do desejo que manifesto, quem nos podemos fiar, alguém a quem damos cré-
juntamente com as razões que estão subjacentes à dito e juramos fidelidade porque sabemos que não
minha maneira de ser e estar. nos abandonará, não nos vai deixar sozinhos, não
Se centro a questão do sentido da vida apenas no nos vai julgar nem cobrar alguma dívida que contraí-
horizonte do meu universo pessoal, estou desde logo mos, só uma pessoa assim merece a nossa entrega
a limitar algo que ultrapassa a minha contingência, a total e a entrega total da nossa vida.
capacidade do meu intelecto limitado, a minha per- Uma vida sem amor não faz sentido, sem o prazer e o
ceção da realidade. É por causa desta perceção que êxtase de amar e se sentir amado faz com que a vida
o sentido da vida está relacionado com o Transcen- fique sem interesse. O amor pelo Amor é fundamen-
dente, o Mistério, o Absoluto, o Infinito, Deus. Colocar tal para aprender a amar de diversas maneiras, com
o sentido da vida no horizonte de Deus é atribuir-lhe criatividade, potenciando as palavras e os gestos no
dimensão infinita, horizonte sem ocaso, realidade sentido de nos darmos inteiramente sem reservas
que ultrapassa a dimensão física e justifica todo o nem cobranças e deixando-nos encantar com quem
meu plano existencial. está na nossa vida. Esta afeição é essencial para que
Que representação posso ter de Deus sem a trans- a vida tenha sentido, porque viver isolado, virado para
formar em discurso manipulado pelo meu intelecto, si mesmo, na autorreferencialidade, irá trazer a an-
em referencial intelectual neutro, de relação difícil, gústia, o absurdo, o vazio. Deus é O amor que enche a
antipática ou apática, desligada e nada afetiva? nossa vida de sentido, é uma pessoa viva que vive em
Deus dá-se à minha perceção da existência como nós, pela qual sintimos afeto e somos afetados pelo
possibilidade de sentido que se constrói numa rela- seu amor, que derramamos nas nossas relações.
Que sentido isto faz? Para mim, faz todo o sentido.

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O TEMPO,
ESSE ESTRANHO CONCEITO

CARLOS BERNARDINO – PROFESSOR DE FÍSICA E QUÍMICA
Se perguntarmos a um amigo “O que é o tem-
po?” iremos, muito provavelmente, obter a degradar-se. Com o tempo acumula sujidade, fica
uma resposta do género “o tempo é marca- com algas, a água fica pútrida, os peixes acabam
por morrer e o que era um bonito aquário não passa
do pelo relógio”. No entanto, esta resposta agora de um líquido fétido, com restos apodrecidos
pode não ser satisfatória, pois ela apenas indica é de plantas e de cadáveres decompostos. Este exem-
uma das formas de medir o tempo. Afinal, o que é plo pode ilustrar de forma simples a tendência para
tempo? Gostava de avisar o leitor que aqui não será o aumento da entropia. Pode o leitor argumentar
dada uma resposta cabal a esta questão mas antes que, se houver um filtro para a água, uma lâmpada
apresentar uma pequena reflexão. E este pode ser para as plantas fazerem fotossíntese e um minuto
um excelente ponto de partida para aprender algu- por dia para manutenção, esse aumento de entropia
ma Física ou repensar aquilo que assumimos saber não ocorreria. Enganoso esse argumento. A entropia
sobre o assunto. aumenta sempre. A energia luminosa fornecida pela
lâmpada nunca é aproveitada na sua totalidade, a
A noção de tempo está muito associada a regula- eletricidade usada pelo filtro não terá retorno, a nos-
ridades, seja o movimento dos ponteiros do relógio, sa mão-de-obra e o tempo que gastamos também
seja a sucessão do dia e da noite ou o tempo que não podem ser regenerados. Ou seja, houve uma de-
demora a areia a escorrer entre as âmbulas de uma gradação da energia; ela continua existir mas já não
ampulheta de areia. Se pensarmos bem, esses even- é reaproveitável (pelo menos na sua totalidade).
tos regulares e previsíveis podem ser usados para
medir o tempo, mas o tempo a medir não tem de ser A evolução de sistema em direção ao caos pode as-
regular e previsível, até porque a natureza se encon- sim ser uma assinatura de que o tempo existe.
tra repleta de fenómenos aleatórios que não obede-
cem a uma realidade determinística. Por exemplo, A evolução da Física leva-nos a uma série de ativi-
para um participante regular em jogos de azar, tipo dades experimentais que tentavam medir a variação
Euromilhões, não há hipótese de saber exatamente da velocidade da luz, no final do século XIX. Essas
o tempo que medeia entre prémios que lhe são atri- experiências abriram a porta à teoria da relativida-
buídos. Aliás, nem sequer há a certeza de saber se de de Einstein e com ela o tempo começou a ser
ganhará algum prémio. Por isso, a noção de tempo tratado como mais uma dimensão, acrescendo às
transcende claramente a periodicidade. três dimensões espaciais, e o mais fantástico é que
o tempo é afetado pela gravidade. Ou seja, se tiver-
A noção de tempo foi encarada pelos Físicos clás- mos dois relógios iguais em que um dos relógios fica
sicos como um fluxo linear, como um rio que corre na Terra e outro vai para o espaço (longe de forças
num só sentido, e posteriormente usada de forma gravíticas), o relógio que fica na Terra vai atrasar-se
operacional para uma série de outros conceitos, face ao relógio que foi para o espaço. Desta forma, a
como por exemplo, a velocidade, fluxo de um gás ou noção de tempo como um fluxo linear fica compro-
a aceleração. metida. O tempo medido por dois observadores dife-
rentes não é igual! Esta previsão da teoria de Einstein
O tempo tem um só sentido, e essa característica do foi verificada experimentalmente e marcou o fim da
tempo é marcante. E aqui podemos introduzir outra Física clássica.
visão sobre o tempo: a visão termodinâmica.
COLÉGIO MANUEL BERNADES O tempo é relativo, varia com a intensidade do campo
O tempo é uma grandeza que pode ser definida pela gravítico onde o observador se encontra e também
degradação da energia, aquilo que chamamos entro- com a velocidade a que este se desloca. Com o au-
pia. Num sistema, a entropia tem sempre tendência mento de velocidade, o tempo dilata-se e o espaço
a aumentar. Tomemos como exemplo um aquário. contrai-se. O tempo dilata-se…!
Se tivermos um aquário com peixes e plantas, e se
nada fizermos para a sua conservação, este começa A mecânica quântica, um notável feito da Humani-

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dade, também usa o tempo em inúmeras relações REVISTA PHILOSOPHIAFotografia: Tiago Pereira
matemáticas. Uma delas é a interessante relação
de incerteza (ou indeterminação) de Heisenberg que 32 COLÉGIO MANUEL BERNADES
pode ser escrita da seguinte forma

ΔE Δt ≥
constante positiva
O que esta expressão nos diz é que a incerteza da
energia de uma partícula a multiplicar pela incerteza
do instante a que essa energia diz respeito é maior
que zero. Isso significa que, se conhecermos exa-
tamente a energia do sistema, não teremos a mais
pequena ideia do instante (tempo) para o qual esse
valor é aplicado! Apesar do tempo não ser um opera-
dor na mecânica quântica, esta expressão é um dos
resultados da mesma.
Em cosmologia, o tempo pode ser referenciado
como a dilatação do espaço entre as galáxias, ou
talvez possa ser medido através desse afastamen-
to, mas também não é dai que temos uma definição
de tempo. Podemos defender, como o faz Stephen
Hawking, que o tempo começou no Big Bang. Apesar
de concordar totalmente com este ponto de vista,
esta afirmação refere-se à origem do tempo como
dimensão. Não será uma definição do mesmo. Aliás,
a própria noção de dimensão dá que pensar.
Chego ao fim do artigo com uma curiosidade: neste
momento, a unidade de tempo no sistema interna-
cional (SI) é o segundo, e este é definido pelo inter-
valo de tempo em que se verifica um determinado
(e elevadíssimo) número de transições entre níveis
hiperfinos do isótopo de Césio 133. Ora, a transição
entre níveis é de natureza estocástica, aleatória; só
os grandes números exigidos pelo standard interna-
cional nos garantem a solidez da unidade mas, ainda
assim, a unidade de tempo que encaramos como
algo seguro e determinístico tem como unidade de
referência fenómenos, em si, aleatórios.
Chegamos ao fim sem uma resposta definitiva, tal
como avisou este vosso escriba, apesar de ter apre-
sentado vários pontos de vista sobre a grandeza a
que chamamos tempo, certamente uma dimensão,
diferente das outras dimensões. Uma dimensão em
que nos podemos deslocar num único sentido.

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OS NÚMEROS 0 E 1
EMANUEL ESTRELA DE OLIVEIRA – PROFESSOR DE MATEMÁTICA

Quando falamos em «números», imediatamente Assim sendo, podemos ver e compreender que, tal
os associamos a duas outras palavras: «mate- como a «escrita» evoluiu ao longo dos tempos,
mática» e «contas». No entanto, os números a representação dos números acompanhou essa
propriamente ditos surgem antes de qualquer uma evolução, precisamente por ser isso mesmo, uma
destas duas coisas e neste pequeno artigo gosta- representação ou uma forma de escrever. Hoje em
va de falar um pouco sobre estes dois números, tão dia, a escrita dos números através do nosso sistema
próximos… mas tão distantes um do outro. de numeração está amplamente difundida por todo
o mundo, inclusivamente pelos países que, original-
1. «Números» vs «Algarismos» mente, tinham os seus próprios sistemas de nume-
ração, como a China, a Índia ou os países Árabes.
Desde já, penso que é bom distinguir dois concei-
tos que, normalmente por abuso de linguagem, os Este artigo, porém, não pretende ser um artigo histó-
confundimos ou assumimos como sendo o mesmo, rico sobre a evolução da escrita ou sobre a evolução
que são os «números» e os «algarismos». Os nú- dos sistemas de numeração, mas antes o de pro-
meros representam uma quantidade, são a medida curar explorar um pouco como surgiu o conceito de
de uma certa grandeza. Note o leitor que medir não é «número» propriamente, em particular do 1 e do 0.
uma coisa que se faz apenas com uma régua ou com
uma fita-métrica, mas sim tudo aquilo que pode ser Com excepção do sistema babilónico e do sistema
comparado dentro de alguma unidade e conceito. grego posterior ao século IV a.C., que evoluiu para a
Por exemplo: a temperatura, a distância, o tempo, a escrita de números através das letras por influência
densidade, a pressão atmosférica… são tudo gran- da Escola da Jónia (fundada por Tales), todos os ou-
dezas (físicas) susceptíveis de serem medidas, cada tros sistemas de numeração representam o número
uma delas na sua própria unidade de medida (a qual, 1 com uma figura “sem partes”, ou seja, com um
por sua vez, pode não ser única). Por seu turno, os ponto ou com um traço. Se recuarmos ainda mais
algarismos são representações dos números. São no tempo, para o início da história da humanidade,
uma espécie de «fotografia» de uma pessoa. Como o homem primitivo identificava «uma» coisa com
se a pessoa fosse o número e o algarismo fosse uma «uma pedra», um pequeno seixo que representaria,
sua fotografia. por exemplo, um animal. Temos, portanto, que o nú-
mero 1 sempre foi representado por uma forma que
2. O número 1 pretendia representar algo «único» e «indivisível».
Daí que, quando nos referimos a uma «unidade», es-
Antes de existirem algarismos já existiam números. tamos a considerar aquilo que é a base de qualquer
Com efeito, o número 1, por exemplo, teve várias coisa, aquilo que é a representação perfeita do que
representações antes de surgirem os algarismos, o queremos exprimir.
que aconteceu apenas no século X:
Ora, o número 1 foi, enquanto número, o primeiro a
Egípcios: I surgir. Quando o Homem (a humanidade) começou
COLÉGIO MANUEL BERNADES Maias: ¬ a contar, começou por identificar «coisas» como
Babilónios: contendo «unidades», estabelecendo assim a noção
Gregos (antes do séc. IV a.C.): I de «unidade» em relação às diversas «coisas» com
que se começava a deparar. Por exemplo: ao conviver
Gregos (depois do séc. IV a.C.): α socialmente com outros homens, compreendeu que
cada pessoa é «uma unidade» dentro de um conjun-
Chineses:
Romanos: I
Árabes (numeração actual, após alguma evolução…): 1 to de outras pessoas como ele. Assim, ao começar a

33

REVISTA PHILOSOPHIA

contar as pessoas, estabeleceu uma correspondên- comparado com outros de épocas vizinhas, mas COLÉGIO MANUEL BERNADES
cia biunívoca entre «uma pessoa» e «uma unidade», sobretudo porque estes tinham um sistema de con-
concluindo, por exemplo, que se contasse 10 unida- tagem «vigesimal», ou seja, só tinham 20 símbolos
des à sua volta, então quer dizer que estava rodeado diferentes, para representarem os números até 19.
por 10 pessoas. Associando «uma pessoa» a «uma O número 20 era, portanto, uma espécie de “novo ci-
pedra», podia estabelecer a tal correspondência clo de contagem”, que se dava com a repetição dos
uma-a-uma, obtendo, no final da sua contagem, mesmos símbolos. A título de exemplo, o número 20
10 pedras, equivalendo às 10 pessoas que foi capaz era representado por
de contabilizar. E repare o estimado leitor que essa
contagem é iniciada com «uma pedra», ou seja, com ¬
o número 1. Não há contagem se não existir o nú-
mero 1! Para que se dê início a uma contagem será A ideia é: tem-se um ciclo completo (e esse ciclo é
sempre necessária a existência da «unidade», quer representado pelo ponto, que representa «uma uni-
conceptual, quer a sua representação (leia-se, quer dade», ou, o «1») e… mais nada (representado pela
a pessoa, quer a pedra). concha vazia, pelo «0»). Como último exemplo, o nú-
3. O incrível número 0 mero 56 era representado por
Por outro lado, o número zero foi, enquanto número,
o último a surgir, precisamente pelo que acabei de ¬———¬¬
referir. Se uma contagem só se inicia quando temos
um elemento, um objecto, uma «coisa» para lhe fa- Ou seja: dois ciclos completos (2 × 20) mais 16
zer associar a representação da unidade, não haven- unidades.
do nenhum objecto… não há lugar a qualquer corres-
pondência. Por este facto, quase nenhum sistema de Dos povos nossos vizinhos, nenhum tinha represen-
numeração representava a ausência de quantidade. tação para o «zero», nem mesmo os Romanos, com
Ainda assim, foram os Maias o primeiro povo que todo o seu progresso científico, conseguiram ter arte
teve a ousadia de representar a ausência de quan- e engenho para criar tal coisa. É bom fazer notar ao
tidade. Incrivelmente, porque este não era um racio- leitor que, na época do Império Romano, não se co-
cínio natural, tiveram a ideia de, mesmo não sendo nhecia o povo Maia, nem tampouco que este tinha
o resultado de uma contagem nem correspondendo existido!
a nenhuma medida, representar essa mesma não-
-quantidade por um símbolo, semelhante a uma Só no século X é que, com o surgimento dos «alga-
concha vazia, com a concavidade voltada para cima rismos» – nome dado às diversas representações
para evidenciar esse mesmo facto, ou a um recipien- dos números pelos Árabes devido ao seu “criador”,
te semelhante a uma taça ovalada, vazia. o senhor Al-Khwarizmi – volta a aparecer uma re-
presentação para a ausência de quantidade. Este
ou sistema acabou por ter forte impacto e dominar –
Foram encontradas ambas as representações (onde por assim dizer – sobre todos os outros sistemas de
a única diferença é apenas na existência ou não das numeração, sobretudo sobre o sistema ainda em vi-
“listas” que lhe conferem semelhança com uma gor na Europa (o Romano), porque, tal como o eram
concha). os sistemas Maia e Babilónico, era cíclico, contendo
Esta representação foi-lhes bastante útil não ape- apenas alguns símbolos, os quais se podiam repetir
nas pelo degrau qualitativo que subiram no que para formar números maiores. Além disso, era um
diz respeito ao seu sistema de contagem, quando dos mais pequenos sistemas de contagem criados,
pois continha apenas 10 símbolos (sistema «deci-

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REVISTA PHILOSOPHIA

COLÉGIO MANUEL BERNADESmal»). Só o sistema romano continha menos (ape-primeiro e o último a serem representados na escrita
Ilutração: Pedro César Telesnas 7). Mas este sistema de contagem foi ainda maisdos números. Mas, com a evolução da Matemática, e
poderoso pelo facto de permitir efectuar cálculos de com o surgimento da Álgebra e da Análise, surgiram
uma forma mais expedita do que qualquer outro sis- as propriedades das operações (adição e multiplica-
tema. Foi sobretudo este facto que fez com que o ção), as quais vieram trazer a estes dois irmãos um
sistema decimal ganhasse predominância e acabas- enlevo especial: compreendeu-se que a ausência de
se por conquistar o mundo. Com efeito, imaginem a quantidade tem um efeito nulo na adição de outras
dificuldade (no contexto de “tempo despendido”) quantidades; por seu turno, a unidade tem o mesmo
para efectuar o cálculo 329+1204+45… em nume- efeito na multiplicação por outra qualquer quanti-
ração romana: dade. Desta forma, designou-se o «zero» (0) como
sendo o «elemento neutro da adição» e o «um» (1)
CCCXXIX como sendo o «elemento neutro da multiplicação».
MCCIV Estes elementos são únicos para estas operações,
o que faz com que estes números sejam realmente
+ XLV especiais… e únicos.
???

Meu Deus!... Várias são as aplicações destes dois números… e
apenas estes dois. Dou dois exemplos que julgo
4. Últimas novidades do 0 e do 1 serem representativos: 1. «Sistema Binário», mui-
to associado à programação informática, no qual
Embora estejam bem perto um do outro na escrita escrevemos qualquer número natural apenas e só
ordinária dos números, são os mais afastados “na como sequências formadas por algarismos 0 e 1
fotografia”. Com efeito, foram – por assim dizer – o (ex: o número «30» do nosso sistema decimal es-

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creve-se, em binário, «11110»); 2. «Valores lógicos justificou-se na simplificação da escrita de números
de proposições», onde representamos o valor lógico grandes e afirmou-se sobretudo na simplificação
«verdade» por «1» e o valor lógico «falso» por «0», e rapidez do cálculo aritmético quando inserido na
(esta representação é muito utilizada sobretudo na numeração árabe e no seu sistema decimal, dando
programação informática). posteriormente origem a outras criações e abrindo
5. O enorme «dom» dado ao Homem novos mundo ao conhecimento e à tecnologia.
Em jeito de conclusão, podemos ver como os núme- Um dia, um grande matemático do século XIX cha-
ros 0 e 1 têm origens temporais diferentes e histórias mado Kronecker fez a seguinte afirmação: “Deus
de vida diferentes, de tal forma que o «zero» nem se- criou os números naturais; tudo o resto é obra do
quer pode ser considerado um «número natural». Na Homem”. Sempre achei esta afirmação muito inte-
verdade, a natureza não tem «zero coisas criadas». ressante, e com ela quero deixar o estimado leitor,
Continua, porém, a ser um feito incrível o Homem ter pois, de facto, Deus criou o mundo e dotou-o da «lei
criado uma representação para algo que “não está lá”, natural», mas deixou ao Homem a capacidade de
que “não existe” e que por isso “não permite dar iní- criar e de colaborar continuamente na obra da cria-
cio à contagem”. No entanto, tal criação provou a sua ção. E o mais maravilhoso é ver quão belas coisas
utilidade para além de uma simples representação: consegue criar quando dá continuidade à obra que
Deus começou.

Ilustração: Pedro César Teles
COLÉGIO MANUEL BERNADES

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DIDASKALIA

A FILOSOFIA COMO FUNDAMENTAL
NUMA FILOSOFIA DE VIDA

GIL GARCIA – PROFESSOR DE FILOSOFIA

COLÉGIO MANUEL BERNADES
Ilustração: Beatriz Lóia
Muitos de nós, cidadãos comuns, utilizamos marquem muitos golos. Indo para áreas (ainda) mais
a palavra (ou o termo, como se designa em sérias, diríamos que no nosso colégio (no CMB) há
Lógica) Filosofia, não no sentido teórico do uma filosofia (também se lhe chama ‘projeto’) de en-
conceito, mas na sua expressão prática. É, sino. Eu creio que existe mesmo um a priori kantiano
talvez, um dos maiores triunfos da Filosofia: chegar a (‘antes da experiência sensível’), um conceito puro e
todos. Assim, um treinador de futebol explica aos seus produto do ‘entendimento’ (outro conceito teórico do
jogadores que tem uma ‘filosofia de jogo’. Todos criti- filósofo alemão) ou de um entendimento de ensino, ou
cam Jorge Jesus por ser ‘desleixado’ com a linguagem seja, uma filosofia de estar, estudar, exigir resultados,
e o português. Mas seja em qual dos clubes por que ‘performances’ e de relacionamento. É esta filosofia
passou, é inegável (goste-se ou não do homem e do de escola que faz do colégio um êxito. Se todos nos
treinador) que ele tem uma inegável ‘filosofia de jogo’. limitássemos a ‘debitar’ aulas, seríamos uma escola
Há até analistas do desporto-rei que dizem que se ba- como as outras e não a de excelência que todos re-
seia em ‘transições rápidas’, de modo a que as suas conhecem, mesmo sem rankings. O colégio tem uma
equipas e jogadores sejam sempre muito ofensivos e filosofia de ensino e de há muitos anos.

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A Filosofia, todos sabemos, mesmo sem estudarmos universidade norte-americana, um dos principais Fotografia: Tiago Pereira
filosofia, é amor à sabedoria: Fhilos – amor/ Shofia conhecedores do (‘funcionamento’ do) cérebro hu-
- sabedoria. Nada do que conhecemos ou queremos mano nos disse que a intuição de Descartes era fa- COLÉGIO MANUEL BERNADES
conhecer escapou em tempo algum à Filosofia e bulosa mas incorporava um erro, explicável à época
aos filósofos. A Filosofia é, de facto, e não semente por o conhecimento do cérebro humano (e não só)
em teoria, a mãe de todas as ciências. Interrogar- estar ainda muito rudimentar: não há decisões, boas
mo-nos, submeter à dúvida, procurar respostas ou más, ‘racionais’ sem que as ‘emoções’ interfiram.
ou elaborar teorias, próprias de vários domínios do Ou seja, nem os seres humanos são puros seres ra-
conhecimento, inclusivé o religioso, nenhum esca- cionais e nem os animais são seres ‘irracionais’. Mas
pa à Filosofia. Deste modo, todos somos um pouco isto é outra conversa. Tema para todos nós (conti-
‘filósofos’, até sem termos alguma vez estudado Fi- nuarmos) a refletir.
losofia. Uma criança é Por fim, a Filosofia tem uma última (?) e derradeira
muitas vezes um “pré- mensagem a transmitir. Mal vai aquele que não tem
-filósofo”, pois tantas uma filosofia (consciente) de vida. Porque se não a
são as perguntas que tem (consciente), tem-na na prática e poderá não
faz aos pais e educa- ser das melhores. Mas se tiver uma filosofia de vida
dores e que muitas nobre, útil ao seu semelhante em sintonia com os
vezes estes últimos se mais altos valores humanos, então ele é o que Kant
veem aflitos para ‘ex- chama ‘pessoa’ às … pessoas. Uma vez mais, para
plicar’ ou explicitar as o filósofo alemão, só somos ‘pessoas’ se a nossa
respostas às interro- ‘disposição para a personalidade’ predominar sobre
gações supostamen- a (igual) nossa disposição (co existente no ser hu-
te “infantis”. Não por mano enquanto ser vivo) para a … animalidade. Eu
acaso há teóricos do adoro animais mas também adoro pessoas. Tudo
ensino (ou filósofos do isto é Filosofia.
ensino) que advogam
que devia haver Filo-
sofia para as crianças
para que nunca dei-
xemos de ser curiosos
ou para que nunca
sejamos presunçosos
a ponto de pensar que tudo poderemos saber. Um
exemplo de como todo o cidadão comum sabe (algo)
de Filosofia é se perguntarmos a qualquer pessoa o
que distingue os homens dos outros animais, todos
responderão de imediato que os homens são ‘seres
racionais’ e que os (outros) animais são ‘seres irra-
cionais’. Uma ideia fantástica que perdura até hoje.
Qual o “pai” da ideia? Descartes, o filósofo francês
que a concebeu no século XVII (há mais de 300
anos) mas que é repetida à exaustão até hoje. Mas,
imagine-se, é uma ideia que está certa e … errada,
sabe-se hoje. António Damásio, na sua obra famosa
‘O erro de Descartes’ no-lo explica de forma magis-
tral. Um médico português, hoje investigador numa

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LANTERNAS NOS OLHOS
A ORIGEM E A IMPORTÂNCIA DA PALAVRA

MARIA JOÃO CARVALHO – PROFESSORA DE PORTUGUÊS

Usar palavras para comunicar é tentar recriar linguística, com um significado, que pertence a uma
a perfeição do que se apreende com os sen- classe gramatical e corresponde na fala a um som
tidos, em que, ao mesmo tempo, e numa ou conjunto de sons e na escrita a um sinal ou con-
relação de interdependência, estes são agu- junto de sinais gráficos”.
çados pelo processo da leitura e da comunicação
verbal. Muitos desconhecem que existe um alfabeto fonéti-
co internacional (AFI), criado no final do século XIX,
Já ler é, em termos metafóricos e tecnológicos, o tendo passado por algumas revisões e expansões, e
meio para instalar software no cérebro; é um ipad que é um sistema de notação fonética baseado no
feito de papel. Os livros podem e são, muitas vezes, alfabeto latino, como forma de representação pa-
terapeutas: curam a alma, dotam- -na de resiliência dronizada dos sons dos idiomas falados. O que este
através das histórias exemplares que nos contam. E alfabeto faz é fornecer um símbolo para cada som ou
usam-se de palavras que são a forma escrita que o segmento de fala distinto. Podemos dar como exem-
Homem criou para presentificar conceitos. plo a palavra “fonética” que, em alfabeto fonético, se
representa: [fo´nƐtikɐ].
Daqui, decorre a importância de destrinçar “signi-
ficante” e “significado” de uma palavra. Se o signi- Também podemos referir a universalização da lin-
ficante é a “forma” que se vê ou que se ouve – da guagem informática, que serve para, de forma
palavra –, o significado corresponde ao conteúdo, ao prática, dar instruções a um computador, isto é, as
que o conjunto de sons/letras que constituem essa ações que um computador deve executar e que são
palavra representa. Um materializa o outro. Assim, programadas pelo ser humano. Assim, na realidade,
o conceito corresponde ao significado, e a imagem será sempre o Homem que domina a máquina e não
acústica e visual, ao significante. É exemplo saber-se a máquina que o domina a ele.
que o som “cadeira” corresponde ao que eu entendo
por “cadeira”, ou seja, o seu significado: objeto que Existem também outras linguagens como a cripto-
serve para me sentar. No entanto, os conceitos não grafia (kryptós, “escondido”, e gráphein, “escrita”) e
são formados pela nossa imaginação, mas porque a esteganografia (do grego “escrita escondida”). A
já apreendemos o que é uma “cadeira” e tudo o que primeira, sendo um ramo da Matemática, é uma for-
se assemelhe a um objeto com a sua funcionalidade ma de, através de técnicas e princípios, transformar
designar-se-á como “cadeira”. a mensagem inicial numa outra ilegível que é apenas
conhecida pelo destinatário, que terá a chave para
De forma a fixar a palavra, os bibliotecários andam a a sua decifração (antigamente, era utilizada na tro-
trabalhar desde 2600 a.C., sendo que Nínive, a cidade ca de mensagens, sobretudo em assuntos ligados à
mais importante da Assíria (Iraque), recebeu a pri- guerra, com o intuito de o inimigo não descobrir a
meira biblioteca mandada construir pelo Rei Assur- estratégia do emissor da mensagem, caso se apo-
banipal II, por volta de 7 a. C, contendo milhares de derasse dela; ou ao amor, para que os segredos
tábuas escritas com carateres cuneiformes, a mais amorosos não fossem descobertos pelos familia-
antiga forma de escrita que se conhece. res). O primeiro uso documentado da criptografia foi
COLÉGIO MANUEL BERNADES em torno de 1900 a.C., no Egito, quando um escriba
Originária do grego “parabolé-és” e transitada para usou hieróglifos fora do padrão numa inscrição. Já a
o latim “parabola-ae”, este substantivo feminino “Cifra de César” apresentava uma das técnicas mais
significa “narração alegórica que envolve algum clássicas de criptografia: a substituição das letras do
preceito moral, alguma verdade importante”, trans- alfabeto avançando três casas. O autor da cifragem
formando-se posteriormente, por via de fenómenos trocava cada letra por outra situada a três posições
fonéticos e semânticos, em “palavra”, uma “unidade à frente no alfabeto. A segunda, a esteganografia, é

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o estudo das técnicas de ocultação de mensagens
dentro de outras mensagens (são exemplos as tin-
tas invisíveis, as assinaturas digitais e a impressão
bicolor e microscópica das notas de euro).

No entanto, se a linguagem pode ser vista como uma Ilustração: Pedro César Teles
sucessão de sons, de fonemas (os sons, a unidade
sonora) e grafemas (as letras, a representação grá-
fica) que formam palavras, estas contêm em si toda
uma cultura, um conjunto de tradições, de avanços e
recuos de povos, de civilizações que transportam, até
aos dias de hoje, o filme que muitos intentam fazer
e que pode estar na forma como olhamos para cada
palavra que utilizamos. Explicar a linguagem através
da linguagem (a função metalinguística) é ter uma
capacidade avassaladora de domínio vocabular e,
por extensão, semântico, conseguindo transmitir e
explicar o que se esconde por detrás de cada discur-
so, de cada mensagem, de cada texto, que forma em
si uma unidade de sentido.

Podemos igualmente considerar a palavra do ponto curiosidade, de indagação e problematização do real. COLÉGIO MANUEL BERNADES
de vista religioso. Padre António Vieira, no seu céle- Não devemos é deixar de parte, nunca, a beleza da
bre “Sermão da Sexagésima”, guiou o raciocínio so- linguagem poética, a linguagem dos deuses que a
bre a arte de bem pregar a partir do conceito predi- transportam para os homens, construindo verdadei-
cável “Semen est verbum Dei” (A semente é a palavra ras e eternas obras de arte, que têm o dom de serem
de Deus) (S. Lucas, VIII,2). Neste versículo, podemos revisitadas, lidas e relidas, comparadas.
observar, traduzindo à letra, que a palavra de Deus Ler é uma constante aprendizagem, já que, mes-
é, ao mesmo tempo e metaforicamente, a semente, mo que leiamos os mesmos enunciados vezes sem
que, deitada à terra, germinará e trará vida. Assim conta, poderemos continuar a encontrar outras in-
é a palavra de Deus que, deitada ao Homem, será terpretações. A poesia é, por isso, uma fonte inesgo-
espalhada e amplificada. Do que Vieira se lamenta tável de sabedoria, de aprendizagem, de iluminação
é que, sendo a palavra de Deus tão poderosa e tão e de espanto. O emblemático verso de Ricardo Reis
eficaz, como tem ela dado tão pouco fruto? Obser- “Para ser grande, sê inteiro” poderia ser, assim, per-
va-se assim a crítica à ignorância humana, à incapa- feitamente adaptado, lendo-se “para ser grande, lê”.
cidade de receber e interpretar a palavra como Deus Desta sorte, a ausência da leitura e da interpretação
queria, aos pregadores seus contemporâneos que, textual, por isso, será em parte responsável pela ex-
servindo-se a si e aos seus interesses, deturpavam a tinção da humanidade.
mensagem de igualdade entre todos.
Essa igualdade entre todos pode ser a ponte, tam-
bém, para a necessidade de alfabetizar o mundo,
permitir que todos possam, tendo “lanternas nos
olhos”, aceder a patamares mais elevados de conhe-
cimento, do desenvolvimento de uma consciência
crítica, porque, se não conhecermos as palavras, se
não tivermos a capacidade de as interpretar, tam-
bém não dinamizaremos o nosso, inato, espírito de

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O CONHECIMENTO DO PASSADO COMO
CONDIÇÃO DE UM FUTURO MELHOR

PATRÍCIA ALVES - PROFESSORA DE HISTÓRIA

Hoje, a nossa escolaridade é de ocorridas no tempo. Contudo, as informações re-
amnésia planificada» colhidas no passado não servirão ao presente se
não forem recriadas, questionadas, compreendidas
Ao longo do meu percurso como professora e interpretadas. Conhecer o passado não significa
da disciplina de História, tem surgido com apenas a simples repetição dos conhecimentos acu-
alguma frequência a questão: Para que serve mulados. O conhecimento do passado é uma condi-
a História? ção para a construção de um futuro melhor e para a
busca de uma sociedade mais justa.
O património histórico-cultural de um povo é consti-
tuído por todos aqueles bens materiais e imateriais
que ele possui e que são importantes para a sua cul-
tura e história. O património histórico é o lugar em
que se faz a memória nacional. Assim, a conservação
deste é um dever de todos, preservando as carac-
terísticas de uma sociedade e garantindo a sobrevi-
vência da respetiva identidade cultural.

Sejam alunos, pais ou mesmo colegas professores Preservar significa livrar de algum mal, manter livre
de outras áreas científicas, o questionar sobre a uti- de corrupção, perigo ou dano, conservar e defender.
lidade da aprendizagem do Passado para as vidas Tudo isso é preservar. Sabemos que essa atitude tem
futuras tem sido uma constante. muitas implicações e é uma tarefa que uma pessoa
só não é capaz de fazer. Esse é o dever de toda a
Afinal, será que conhecer o Passado da Humanidade, sociedade, preservar os seus bens. Todos nós so-
seja a curto, médio ou longo prazo, pode ter alguma mos produto e produtores desse Passado que urge
implicação no modo como encaramos/preparamos conhecer.
o nosso futuro, o futuro dos nossos filhos, o futuro
das próximas gerações? Penso que sim. E qual o papel que cabe ao historiador? O trabalho do
historiador é aquele que nos transmite esse conhe-
A História ou o conhecimento do passado, mais do cimento dos atos passados. A sua função primordial
que uma disciplina, é uma ciência que estuda a evo- é interpretar os fatos históricos ou as experiências
lução da vida humana através do tempo e da sua humanas com a ajuda dos registros e vestígios que
interação com o que a rodeia. Ela investiga o que os foram deixados por um povo em um determinado lo-
Homens fizeram, pensaram e sentiram enquanto se- cal e tempo (a curta, média ou longa duração).
res sociais. Nesse sentido, o conhecimento histórico
do Passado pode ajudar na compreensão do Homem O trabalho do historiador é um desafio constan-
enquanto ser que constrói seu tempo, o seu cami- te, ao lidar com temas e assuntos relacionados a
nho, e serve de alerta à condição humana, enquanto acontecimentos que, na sua maioria, não são seus
COLÉGIO MANUEL BERNADES agente transformadora do mundo. contemporâneos, e compete-lhe a si compreender
as causas e efeitos desses mesmos acontecimentos
Mas, a História é igualmente a ciência do presente, históricos, bem como relacioná-los com as ações do
uma vez que o conhecimento do passado nos ajuda presente.
à compreensão do presente, através da “recriação”
(quanto possível) desse momentos-chave desse Considerando os acontecimentos como “produtos”
Passado, levando em consideração as mudanças sociais “fabricados” por seres humanos que sonha-

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ram, pensaram e agiram, é função do historiador sociedade contemporânea.
analisar parte desses “produtos sociais” e cons- Na escola e fora dela, os indivíduos de hoje e do
truir a sua interpretação do momento histórico em amanhã, têm imperiosamente que compreender as
pesquisa. diferentes representações históricas, expandindo o
Não sendo possível avaliar, discutir, compreender e seu conhecimento do passado e desenvolvendo a
explicar todos os acontecimentos, sentimentos e sua capacidade de examinar criticamente a relação
pensamentos que contribuíram para que determina- entre o Presente e o Passado, de forma flexível e útil,
do evento acontecesse, a reflexão sobre os aconte- de modo a preparar conscientemente as atuações
cimentos demonstra sempre, de uma maneira ou de futuras.
outra, a opinião, o pensamento e até os interesses Em última instância, caberá às próximas gerações
daquele que fez anotações sobre o que viu, viveu ou apresentar uma abordagem que reconheça a impor-
ouviu.
tância do conhecimento do passado, a uti-
lidade social da consciência e da memória
histórica na formação das novas gerações.

A forma como isso tem sido entendido
varia com os contextos culturais de cada
período e, em parte, com os valores ideo-
lógicos dominantes nos diferentes regimes
políticos. A eficácia com que esse objetivo
é atingido depende, essencialmente, do
tipo de História que se ensina e dos mé-
todos pedagógicos, ou seja, como se dá a
conhecer esse passado comum.
Fotografia: Tiago Pereira
COLÉGIO MANUEL BERNADESComo nos refere Maria Isabel João,

Para compreender e explicar esses acontecimentos «a memória histórica que seria desejá-
de forma imparcial, cabe ao historiador (e a nós) vel construir não é um mero repositório de datas e
desconstruir e reconstruir a História partindo de no- nomes a memorizar, mas um conjunto de conheci-
vos conhecimentos e perspetivas: mentos, representações e imagens que formem um
« (...) como não há uma única forma de enxergar e saber com sentido e com instrumentos operatórios
escrever a história, cada olhar possível valorizará para poder refletir» (JOÃO; 2014; p.12).
aspetos explicativos diferentes, que considerarão No tempo atual, nesta Sociedade Global em que nos
importantes e válidos, para entender o passado de encontramos, onde tudo parece padronizado, urge
acordo com as teorias, as metodologias, as ideolo- a necessidade de construir uma consciência e uma
gias e os conceitos deles decorrentes construídos e memória históricas mais humanistas, preocupadas
aplicados nas pesquisas.» (FILIPAK; SANTOS; RIBEI- com realidades mais próximas, locais, nacionais e
RO: 2009, p. 72) europeias, com as quais nos identificamos, para a
Em lugar de ignorar as razões porque se deve apren- compreensão da diversidade humana e das diferen-
der a conhecer o Passado, a História da Humanidade, ças culturais.
cada indivíduo deveria envolver-se no debate acerca Em suma, o conhecimento do passado pode ser uma
do papel importante que a História desempenha na condição essencial para a construção da futura iden-
tidade humana, enquanto ser globalmente social.

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«SÓ ALGUNS A DESEJAM HABITAR»

PEDRO CÉSAR TELES – PROFESSOR DE EMRC

COLÉGIO MANUEL BERNADESObelo nem sem- humana no decurso
Ilustração: Pedro César Telespre é belo. Osdos séculos. E, por mais
sentidos o ates- alheia que nos possa
tam. A variedade parecer a ideia, a gran-
e a diversidade de sen- diosidade humana tam-
sibilidades sustentam bém muito se fez e ain-
essa mesma constata- da se faz por intermédio
ção. A noção de beleza das inúmeras incursões
não se circunscreve a artísticas.
uma única e derradeira
visão da realidade. Há mesmo quem considere que Ausentar o universo artístico da formação e da vivên-
alguma coisa designará ou potenciará “o belo” se cia humanas corresponderia a coartar a possibilida-
efetivamente se distanciar do conceito comumen- de de outros poderem conhecer e vivenciar outras
te reconhecido como tal. Ignorar isto poderá gerar e diferentes sensibilidades, muitas vezes indizíveis
constrangimentos incontornáveis, na medida em pela mera linguagem verbal, percursoras de um tipo
que os observadores não leem todos com os mes- de mentalidade mais aberta, ponderada e humana. A
mos olhos, não se posicionam todos da mesma obra de arte ajuda a contrariar essas insuficiências,
perspetiva e, consequentemente, não subscrevem a bem como se assume como um excelente recurso
mesma linha de interpretação. E é neste âmbito que no combate à indiferença e ao empobrecimento cul-
regularmente se coloca a questão sobre o(s) propó- turais. E sem ser necessária uma relação direta com
sito(s) e o(s) significado(s) da arte. quaisquer correntes ou movimentos artísticos, dado
que a arte não se deve sacrificar à exclusividade de
Olhar a arte implica percorrer a História da huma- ninguém...
nidade nas suas mais diversas existências. Desde
que o Homem se reconheceu como tal que, na e pela Tal como o belo, que nem sempre é belo, também
arte, encontrou um inequívoco auxílio na comunhão nem toda a arte produzida é reconhecida como tal.
com o mundo habitado. Ainda hoje assim é! Con- Umas vezes prazerosa, “horrenda” noutras ocasiões,
tagiado emocionalmente pelo vivido, o ser humano na maior parte das vezes desconhecida. Consoante
aprendeu a descobrir-se enquanto um ser distinto os sentidos de quem com ela contacta, a adjetivação
dos elementos que o rodeavam, vitais ou inanima- da obra chega a alcançar registos paradoxalmente
dos, narrando por intermédio de traços, de formas distantes e, até mesmo, opostos. Talvez seja nestas
e de cores, determinados episódios experimentados mesmas contemplações e considerações que reside
e múltiplos sentimentos emergentes da sua cons- uma parte do rosto da humanidade, que a arte tem o
ciência humana. Motivos de caça, de combates, de privilégio de canalizar e conservar em si.
conquistas, de medos, de crenças, de interrogações,
de êxtases, de paixões, entre muitos outros… ilus- Advoga-se, assim, o contacto com a arte, nas suas
tram essa mesma tendência. Por essa razão, a arte múltiplas manifestações. É esse apelo: há que dar aso
assume um papel inequívoco no registo de circuns- e continuidade ao primeiro passo. Uma travessia des-
tâncias vitais e na tradução de sensibilidades que, te género permitirá derrubar inverdades (como a que
no processo evolutivo, foram influenciadas pelos perpassa na vil afirmação “a arte é incompreensível
períodos que as antecederam e, simultaneamente, para as grandes massas”) e, simultaneamente, pro-
contagiaram os percursos seguintes. mover a ideia de que pela arte o ser humano tende a
compreender-se e a tornar-se mais humano. E isto é,
Chegados a este ponto, importa reconhecer que a de facto, uma tarefa hercúlea, talvez a obra mais ina-
falta de reconhecimento pelo tal impulso artístico cabada e mais verdadeira de sempre, dado que todos
original equivaleria à supressão da distinta marca a podem visitar, embora só alguns a desejem habitar!

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O QUE É A MATÉRIA?

RAFAEL FERNANDES - PROFESSOR DE FÍSICA E QUÍMICA

Fotografia: Tiago Pereira

Acompreensão do mundo material terá sido Leucipo acreditava que, se dividisse um objeto até o COLÉGIO MANUEL BERNADES
desde sempre uma das interrogações do ser tornar em pó, e continuasse a dividi-lo iria obter uma
humano. Seria o fogo a origem de toda a ma- partícula que não seria possível dividir; seria obtida
téria? Qual a constituição de uma pequena assim a partícula mais pequena que formaria a ma-
gota de água? Como poderia ser explicada a diversi- téria. Atribui a essa partícula a designação de átomo,
dade de materiais existentes? palavra que, na sua origem, significa “indivisível”.
As primeiras reflexões conhecidas sobre estas ques- Terá sido com Leucipo, e com o seu discípulo De-
tões consideravam que era possível explicar a exis- mócrito, que nasceu a doutrina do atomismo como
tência de toda a matéria e sua diversidade a partir explicação da constituição da matéria.
de um conjunto de “elementos”, inicialmente só o O atomismo não foi prontamente aceite e, apesar
fogo, ao qual se juntaram o ar, a água e a terra. Na de terem existido alguns filósofos na Grécia Antiga e
Grécia Antiga, a Teoria dos Quatro Elementos era cientistas a defenderem o atomismo, foi apenas com
amplamente aceite, sendo que a formação de todos John Dalton, passados dois mil e quatrocentos anos,
os materiais era explicada com a combinação em que o atomismo foi aceite pela generalidade da co-
diferente proporção destes elementos, dependendo munidade científica. Apesar de terem passado vários
das características do material final. Contudo, um séculos para o atomismo ser adotado como a dou-
filósofo de nome Leucipo colocou em causa essa ex- trina predominante, em poucos anos novas desco-
plicação propondo uma nova conceção de matéria. bertas revelaram que o átomo era, na realidade, uma

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REVISTA PHILOSOPHIA

em poucos anos novas descobertas revelaram que o
átomo era, na realidade, uma partícula constituída por
subpartículas – o neutrão, o protão e o eletrão. O átomo

deixaria assim de ser indivisível.

partícula constituída por subpartículas – o neutrão, remoção de eletrões de um metal com luz suficien-
o protão e o eletrão. O átomo deixaria assim de ser temente energética; ou o efeito de Compton, no qual
indivisível. Posteriormente, foi ainda descoberto que se verifica que uma fração de um feixe de raios X,
os próprios protões e neutrões são a combinação de ao incidir num bloco de grafite, sofre uma dispersão
partículas mais pequenas, os quarks, partículas que em todas as direções o que é apenas explicado se
foram unicamente detetadas em conjuntos de três e considerar-se que a luz é constituída por partículas.
nunca isoladamente. A luz apresenta assim um comportamento dual de
partícula-onda.
As descobertas sobre estas partículas não coloca-
ram, porém, em causa a conceção de matéria, que, A natureza dupla da luz foi generalizada para outras
até finais do século XX, era descrita como sendo partículas de massa muito pequena como o eletrão
constituída por partículas que seriam perfeitamente podendo, assim, estas partículas apresentar uma
localizáveis e que poderiam ser caracterizadas pela natureza ondulatória. As descobertas relacionadas
energia e pela sua massa e velocidade. Foi a desco- com a luz permitiram compreender os fenómenos
berta e o estudo de fenómenos que envolviam par- de interação da radiação com a matéria, nomeada-
tículas cada vez mais pequenas que colocaram em mente a possibilidade da materialização da energia.
causa a definição de matéria admitida até então. A produção de pares consiste na transformação de
um fotão de elevada energia que, ao atravessar um
Os estudos sobre a luz, considerada, como um claro campo elétrico intenso, é convertido num eletrão e
exemplo de algo imaterial, levantaram questões so- num positrão (partícula com características idênti-
bre a ideia de matéria que os cientistas na sua ge- cas ao eletrão mas de carga contrária). A produção
neralidade defendiam. Um conjunto de experiências de pares é uma manifestação da mais reconhecida
realizadas por diferentes cientistas revelava que a equação de Einstein (E= mc2).
luz apresentava características de fenómeno ondu-
latório, sustentando assim a teoria da luz como algo A explicação da matéria e da sua formação não fi-
imaterial. Uma das experiências mais relevantes foi a cou, porém, completa com as partículas já referidas.
experiência de Young, na qual um feixe de luz incidia Outras partículas como o neutrino, cuja existência
sobre uma superfície que apresentava duas ranhu- foi prevista para “salvar as leis da conservação”
ras muito próximas uma da outra; ao analisar a luz aquando do estudo do decaimento radioativo, ou o
que passou pelas fendas, o físico verificou que a luz bosão de Higgs, cujo estudo se considera poder ser
proveniente das fendas não originava apenas uma a chave para compreender como a materialização de
zona de sobreposição, como seria de esperar se a energia pode ocorrer de um modo mais estável, têm
luz fosse constituída por partículas, mas existia uma um papel muito importante para a conceção atual
série de bandas (zonas mais escuras que resultavam de matéria.
da sobreposição da luz proveniente das duas fendas
e zonas mais claras que resultavam do cancelamen- O avanço do conhecimento sobre a constituição da
COLÉGIO MANUEL BERNADES to da luz). Tal fenómeno só poderia ser explicado matéria permitiu esclarecer algumas questões: os
considerando que a luz possuía um comportamen- diferentes materiais resultam de conjuntos de áto-
to de onda. Todavia, outros estudos colocavam em mos que apresentam número de protões, neutrões e
causa estas explicações e levavam à conclusão que eletrões diferentes; uma gota de água possui aproxi-
a luz seria constituída por partículas, que seriam de- madamente 1 x 1024 átomos. O átomo considerado,
signadas de fotões. Refira-se como exemplo o efeito há dois mil e quatrocentos anos, por Leucipo será
fotoelétrico, explicado por Einstein, e que consiste na atualmente o quark.

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REVISTA PHILOSOPHIA

ENTREVISTA A ENTRE VISTAS
PEDRO MACOR

AUTOR (TEXTO) a falta das aulas de Filosofia, que tinham termina-
do no 11º ano. Fui falar com o Professor Luís Lóia
acerca disto, e pedi-lhe que me recomendasse livros
que me colocassem novamente nesse mundo, nessa
conversa que Sócrates iniciou. Começámos com “O
mundo de Sofia”, de Jostein Gaarder, passámos de
seguida à “Utopia”, de Tomás Morus e terminámos
com a obra-prima de Platão, “A República”. Percebi
então o que queria fazer, estudar as bases da ação
e do pensamento humano. As bases da arte (Estéti-
ca), as bases da argumentação (Lógica), as bases da
sociedade e do Estado de Direito (Filosofia Política),
as bases do conhecimento (Epistemologia), entre
tantas outras.

Pedro Manuel Mereces Macor de Brito fez todo o seu Filosofia é o único curso universitário que me permite COLÉGIO MANUEL BERNADES
percurso escolar, até ao 12.º ano, no Colégio Manuel mergulhar nas questões mais fundamentais e basi-
Bernardes. Encontra-se presentemente a frequentar lares acerca do Homem, não aceitar imediatamente
o 3.º ano da Licenciatura em Filosofia da Faculdade afirmações como “ A democracia é a melhor forma
de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de organização social”, mas antes perguntar “Que
de Lisboa. Recebeu o prémio de melhor aluno do pri- outras formas de organização social há? Porque é a
meiro ano da Licenciatura em Filosofia e atualmente democracia melhor que elas? Qual o critério racional
mantém uma média de 16 valores. que se deve usar para comparar formas de organi-
Que memórias mais agradáveis guarda do Colégio zação social? Porque é que o Homem tem sequer
Manuel Bernardes? que viver em sociedade?”. Tendo tudo isto e mais em
É difícil descrever em texto os primeiros 18 anos da mente, não poderia ter escolhido outro percurso.
nossa vida, mas de facto penso que a experiência A Licenciatura corresponde às suas expectativas?
que tive no Colégio pode ser resumida da seguinte Sim, todas as áreas e abordagens filosóficas, des-
maneira: felicidade e liberdade como só uma crian- de as mais continentais (Antropologia Filosófica,
ça e um adolescente podem sentir. Desde as lon- Estética, Filosofia da História, entre outras), até às
gas tardes solarengas passadas a jogar futebol na mais analíticas (Lógica, Epistemologia, Filosofia da
Quinta, passando pelos castigos até às 19 horas da Linguagem), são abordadas no curso. Mesmo áreas
noite, até à imensa quantidade de conhecimento que emergentes da Filosofia, como a Bioética e a Ética
os professores nos transmitem, são demasiadas as Aplicada, estão disponíveis no percurso curricular da
memórias felizes que tenho do meu tempo passado Licenciatura. Assim, sinto que a Licenciatura cobre
no Colégio para as enunciar ou selecionar aqui. todas as grandes áreas da Filosofia, e que possibilita
O que o levou a escolher a Licenciatura em Filo- o seguimento no Mestrado de qualquer temática que
sofia para prosseguir os seus estudos no Ensino mais seduza o meu interesse.
Superior? O ensino da Filosofia é bastante diferente entre
No começo do meu 12.º ano não tinha a menor ideia aquilo que aprendeu no Colégio e o que aprendeu
acerca daquilo que queria estudar na Universidade. na Universidade?
No entanto, sentia em mim um desconforto inte- A única diferença a salientar seria a mais óbvia: a
lectual, como que uma falha. Esse desconforto era profundidade. Como se dispõe de mais tempo e re-
cursos na Universidade, e como se trata de um nível

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REVISTA PHILOSOPHIA

superior do caminho pedagógico de uma pessoa, ensinar-me a questionar. Questionar a organização
os temas são abordados de uma forma mais pro- política, questionar os deveres das pessoas para
longada, com mais tempo para a leitura na íntegra com as outras pessoas, questionar o estatuto do
dos textos originais, discussão e debate na sala de saber científico. Isto muda a vida tanto numa ver-
aula, interdisciplinaridade entre os vários autores e tente quotidiana, ao saber criticar uma notícia de
as várias temáticas filosóficas. De resto, o rigor, a jornal ou a compreender as várias posições à volta
análise, a atenção ao detalhe, o desenvolvimento do de uma discussão como a da legalização do abor-
pensamento crítico, assemelham-se ao que me foi to, como na vida num plano mais macro, ajudando a
ensinado no Colégio. perceber qual a minha obrigação para com os meus
Que áreas, temas ou disciplinas filosóficas o agra- iguais, qual a maneira correta de decidir como agir
dam mais? Porquê? numa situação, o que devo fazer para ter uma boa
existência.

COLÉGIO MANUEL BERNADES A área que mais me agrada na Filosofia é a Filoso- Se pudesse alterar alguma coisa no ensino em Por-
fia da Linguagem. Tentar perceber como é que sons tugal no que se refere à Filosofia, o que alteraria?
e imagens simbólicas conseguem transmitir ideias A nível de ensino secundário, acabaria com o ensino
abstratas, concretas, experiências pessoais, sen- manualístico da Filosofia. Devem-se ler os autores
timentos, problemas, entre tantas outras coisas. nos seus próprios textos, não através de manuais
Como é que as quatro letras “amor”, podem exprimir compilados, e acima de tudo interpretados, por ou-
o que sinto por uma pessoa amada? Como é que sei tras pessoas. Da mesma forma, o currículo deveria
que a outra pessoa sente amor da mesma forma que ser mais flexível, dar mais liberdade ao Professor
eu, não poderemos usar a mesma palavra para sen- para decidir o que ensinar e como. Na Universidade,
sações interiores diferentes? Se digo a alguém que deveriam ser criadas condições para uma interdis-
amo a minha mãe, como posso ter a certeza que a ciplinaridade maior entre a Filosofia e outras áreas.
outra pessoa sabe o que é que significa “sentir amor A pessoa que quer aprofundar a Lógica, precisa de
por uma mãe”, ou como sei se ela sente amor pela conhecimentos de Matemática. A que quer de facto
mãe como eu sinto? Será de facto possível alguém aprofundar a Bioética, precisa de conhecimentos de
compreender o que eu digo quando pronuncio a fra- Direito e de Biologia, entre outros exemplos.
se “Tenho uma dor de dentes.”? Como sei que a outra O filósofo Descartes afirmou: «Viver sem filosofar
pessoa sente dor da mesma forma que eu? Como sei é na verdade ter os olhos fechados, sem nunca se
que ela internaliza a palavra “dor” como eu interna- esforçar por os abrir». Concorda com a afirmação?
lizo? Como é que a palavra “cadeira” pode significar Porquê?
o mesmo para mim, que não percebo nada de cadei- Concordo completamente com a afirmação, por vá-
ras, e para um marceneiro que dedicou os últimos rios motivos que já declarei nesta entrevista. A Filo-
25 anos da sua vida a construir cadeiras? Como é sofia ensina-nos a questionar o que muitas pessoas
possível que o mesmo suporte, a linguagem, sirva aceitam como verdade absoluta, desde a forma de
para ações tão diferentes como a poesia, o discurso organizarmos o nosso sistema político, até às ações
político, o discurso científico, a prosa jornalística? que devemos tomar no plano ético e moral. Viver sem
Estas e outras questões referentes à linguagem e filosofar será de certo modo viver como uma ovelha
à forma como os seres humanos transmitem o que de rebanho, que segue o grupo sem saber para onde
lhes vai na consciência para as consciências alheias, vai, porque é que tem que ir para ai, e que outros
são as que mais me entusiasmam de momento no caminhos existem para lá desse. Pode de facto ser
estudo da Filosofia. mais fácil viver de olhos fechados, mas são muitas
O que é que a Filosofia tem contribuído para o seu as cores que nunca iremos ver, nem os quadros que
crescimento pessoal e para a sua visão do mundo? essas cores podem pintar.
Acima de tudo, a Filosofia mudou a minha vida ao

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