Ele precisava descobrir se Régis e Guenhwy var haviam escapado.
***
Vitória.
Pareceu um pequeno consolo a Cássio, Kemp e Jensin Brent quando
eles passaram os olhos pelo campo marcado por cicatrizes e viram a carnificina
a seu redor. Eram os únicos representantes a ter sobrevivido ao conflito; sete
outros haviam sido abatidos.
— Vencemos — declarou Cássio sombriamente.
Ele assistiu, impotente, à morte de mais soldados, homens que haviam
sofrido ferimentos fatais durante a batalha, mas recusaram-se a tombar e morrer
antes do fim. Mais da metade de todos os homens de Dez-Burgos jazia morta, e
muitos mais morreriam posteriormente, pois quase a metade dos ainda vivos
havia se ferido gravemente. Quatro vilas haviam sido reduzidas a cinzas e uma
outra fora saqueada e destruída pelos ocupantes goblins.
Eles pagaram um preço terrível pela vitória.
Os bárbaros também haviam sido dizimados. Jovens e inexperientes
em sua maioria, eles lutaram com a tenacidade de sua raça e morreram
aceitando seu destino como um final glorioso para a história de suas vidas.
Apenas os anões, disciplinados por muitas batalhas, haviam saído
relativamente incólumes. Vários haviam sido mortos, alguns outros feridos, mas
a maioria estava pronta para retomar a luta novamente se pudessem apenas
encontrar mais goblins para despedaçar! Seu único grande lamento, porém, era
que Bruenor estava desaparecido.
— Vão vocês até sua gente — Cássio disse aos colegas representantes.
— Depois, retornem esta noite para o conselho. Kemp deve falar por todas as
pessoas das quatro vilas do Maer Dualdon e Jensin Brent pela gente dos outros
lagos.
— Temos muito a decidir e pouco tempo para fazê-lo — disse Jensin
Brent. — O inverno está chegando rápido.
— Sobreviveremos! — declarou Kemp com sua característica
rebeldia. Mas ele percebeu os olhares taciturnos que seus pares lhe lançavam e
cedeu um pouco ao realismo dos mesmos. — Mas será uma luta encarniçada.
— Assim será para meu povo — disse uma outra voz. Os três
representantes se voltaram para ver o gigante Wulfgar aparecer pomposamente,
tendo ao fundo a cena poeirenta e surreal da carnificina. O bárbaro estava
coberto de terra e salpicado com o sangue de seus inimigos, mas parecia um rei
nobre em todos os pormenores. — Solicito um convite para seu conselho, Cássio.
Nossos povos muito podem oferecer um ao outro nesta hora soturna.
Kemp grunhiu.
— Se precisarmos de burros de carga, compraremos bois.
Cássio lançou uma olhar perigoso para Kemp e voltou-se para seu
inesperado aliado.
— Você pode, de fato, juntar-se ao conselho, Wulfgar, filho de
Beornegar. Por seu auxílio neste dia, meu povo deve muito ao seu. Mais uma vez
eu pergunto: por que vocês vieram?
Pela segunda vez naquele dia, Wulfgar ignorou os insultos de Kemp.
— Para saldar uma dívida — ele respondeu a Cássio. — E talvez para
melhorar as vidas de nossos dois povos.
— Matando goblins? — perguntou Jensin Brent, pois desconfiava que o
bárbaro tinha algo mais em mente.
— É um começo — respondeu Wulfgar. — No entanto, há muito
mais coisas que podemos realizar. Meu povo conhece a tundra melhor até
mesmo que os yetis. Entendemos as peculiaridades desta terra e sabemos como
sobreviver. Seu povo se beneficiaria com nossa amizade, principalmente nos
tempos difíceis que estão por vir.
— Ora! — bufou Kemp, mas Cássio o silenciou. O representante de
Brin Shander estava intrigado com as possibilidades.
— E o que seu povo ganharia com essa união?
— Uma conexão — respondeu Wulfgar. — Um elo com um mundo
de comodidades que jamais conhecemos. As tribos têm em suas mãos o tesouro
de um dragão, mas ouro e jóias não proporcionam calor numa noite de inverno,
nem comida quando a caça é parca. Seu povo também tem muito a reconstruir.
Meu povo tem o dinheiro para ajudar na tarefa. Em troca, Dez-Burgos
proporcionará a meu povo uma vida melhor.
Cássio e Jensin Brent aprovavam com gestos de cabeça enquanto
Wulfgar apresentava seu plano.
— Finalmente, e talvez o mais importante — concluiu o bárbaro —, é
fato que precisamos uns dos outros, ao menos por enquanto. Nossos dois povos
foram enfraquecidos e estamos vulneráveis aos perigos desta terra. Juntos, a
força que nos resta nos ajudará a vencer as dificuldades do inverno.
— Você me intriga e me surpreende — disse Cássio. — Venha ao
conselho, então. Garanto pessoalmente que você será bem-vindo e vamos
colocar em andamento um plano que beneficiará todos os que sobreviveram ao
confronto com Akar Kessell!
Tão logo Cássio se virou, Wulfgar agarrou a camisa de Kemp com
uma de suas mãos descomunais e, com facilidade, ergueu no ar o representante
de Targos. Kemp esmurrou o antebraço musculoso, mas percebeu que não tinha
a menor chance de romper o abraço de ferro do bárbaro.
Wulfgar lançou-lhe um olhar feroz e perigoso.
— Por enquanto — disse ele —, sou responsável por todo o meu povo.
Portanto, desconsiderei seus insultos. Mas, quando chegar o dia em que eu não
for mais rei, seria aconselhável que você não cruzasse mais meu caminho!
Com um movimento rápido do pulso, ele atirou o representante ao
chão.
Kemp, intimidado demais no momento para se enfurecer ou ficar
constrangido, permaneceu sentado onde caiu e não respondeu. Cássio e Brent
cutucaram um ao outro e riram baixinho, cúmplices.
O divertimento só durou até verem a moça que se aproximava com o
braço enfiado numa tipóia ensangüentada e o rosto e os cabelos castanho-
avermelhados empastados com camadas de pó. Wulfgar também a viu e a visão
dos ferimentos dela afligiu-o mais do que os seus próprios.
— Cattiebrie! — ele gritou e correu até ela. Ela o acalmou com uma
palma estendida.
— Não estou muito ferida — ela estoicamente tranqüilizou Wulfgar,
mas era evidente para o bárbaro que ela havia sido ferida gravemente. — Mas
não quero nem pensar no que poderia ter me acontecido se Bruenor não tivesse
aparecido!
— Você viu Bruenor?
— Nos túneis — Cattiebrie explicou. — Alguns ores descobriram
como entrar. Talvez eu devesse ter desmoronado o túnel. Mas não eram muitos e
dava para ouvir que os anões estavam se saindo bem no campo lá em cima.
Bruenor desceu nesse momento, mas havia mais ores atrás dele. Uma viga de
sustentação desabou; acho que Bruenor a cortou e havia muito pó e confusão.
— E Bruenor? — Wulfgar perguntou ansiosamente. Cattiebrie olhou
para trás, para o outro lado do campo.
— Lá fora. Ele mandou chamar você.
***
Quando Drizzt finalmente chegou aos escombros de Crishal-Tirith, a
batalha terminara. As imagens e os sons das horríveis seqüelas faziam vista em
torno dele, mas seu objetivo continuava o mesmo. Ele subiu pelo lado da pilha de
pedras fragmentadas.
Na verdade, o drow se achava um idiota por perseguir uma causa tão
inútil. Mesmo se Régis e Guenhwy var não tivessem deixado a torre, que
esperança havia de encontrá-los?
Ele insistiu teimosamente, recusando-se a ceder à lógica inescapável
que o censurava. Nesse ponto é que ele diferia de sua gente, isso é o que o
expulsara, enfim, da escuridão ininterrupta de suas vastas cidades. Drizzt
Do'Urden permitia-se sentir compaixão.
Ele subiu pelo lado do monte de escombros e começou a cavar em
volta dos destroços com as mãos nuas. Os blocos maiores o impediram de se
aprofundar mais na pilha, mas ele não se entregou, chegando a enfiar-se em
fendas precariamente apertadas e instáveis. Usava pouco a mão esquerda
queimada e logo a direita sangrava com as esfoladuras. Mas ele continuou,
movendo-se primeiro ao redor da pilha, depois escalando-a.
Foi recompensado pela persistência e por suas emoções. Quando
atingiu o topo das ruínas, ele sentiu uma aura familiar de poder mágico. Isso o
guiou até uma pequena fenda entre duas pedras. Enfiou um braço por ela,
tentativamente, esperando encontrar o objeto intacto, e tirou lá de dentro a
pequena estatueta em forma de felino. Seus dedos tremiam ao examiná-la, em
busca de danos. Mas nada encontrou: a magia no interior do objeto resistira ao
peso das pedras.
Entretanto, os sentimentos do drow diante do achado eram confusos.
Apesar de aliviado por Guenhwy var ter aparentemente sobrevivido, a presença
da estatueta revelava-lhe que Régis provavelmente não havia escapado para o
campo. Seu coração esmoreceu. E esmoreceu ainda mais quando uma cintilação
no interior daquela mesma fenda chamou-lhe a atenção. Enfiou ali o braço e
tirou lá de dentro a corrente de ouro com o pingente de rubi, e seus temores se
c onfirm a ra m .
— Um túmulo apropriado para você, meu corajoso amiguinho — ele
disse melancolicamente, e decidiu naquele instante chamar a pilha de escombros
de o Sepulcro de Régis. Não conseguia entender, porém, o que acontecera para
separar o halfling de seu colar, pois não havia sangue nem qualquer outra coisa
na corrente que indicasse que Régis o estivesse usando ao morrer.
— Guenhwy var — chamou ele. — Venha até mim, minha sombra.
— Ele sentiu as sensações familiares na estatueta ao colocá-la no chão. Em
seguida, a névoa negra apareceu e transformou-se no grande felino, são e salvo
e, de algum modo, recuperado pelas poucas horas que passara em seu próprio
plano.
Drizzt moveu-se rapidamente em direção a sua companheira felina,
mas deteve-se quando uma segunda névoa apareceu a uma pequena distância
dali e começou a se solidificar.
Régis.
O halfling estava sentado, com os olhos fechados e a boca bem
aberta, como se estivesse prestes a dar de uma enorme mordida em alguma
iguaria invisível. Uma de suas mãos estava cerrada ao lado de suas bochechas
ávidas e a outra aberta diante dele.
Quando ele abocanhou o ar, seus olhos abriram-se subitamente,
surpresos.
— Drizzt! — gemeu ele. — Francamente, você devia avisar antes de
me seqüestrar! Este gato perfeitamente maravilhoso conseguiu-me a mais
suculenta das refeições!
Drizzt chacoalhou a cabeça e sorriu com um misto de alívio e
incredulidade.
— Ah, esplêndido — gritou Régis. — Você encontrou minha jóia. Eu
achei que a tivesse perdido. Por alguma razão ela não fez a travessia comigo e
com o gato.
Drizzt devolveu-lhe o rubi. O gato era capaz de levar alguém em suas
viagens através dos planos? Drizzt decidiu explorar essa faceta do poder de
Guenhwy var mais tarde.
Ele afagou o pescoço do gato, depois liberou-o para voltar a seu
próprio mundo, onde o animal poderia se recuperar um pouco mais.
— Venha, Régis — disse ele sombriamente. — Vejamos onde
podemos ser de alguma ajuda.
Regis deu de ombros, resignado, e levantou-se para seguir o drow.
Quando galgaram o topo das ruínas e viram a carnificina espalhada diante deles,
o halfling deu-se conta da enormidade da destruição. Suas pernas quase lhe
faltaram, mas ele conseguiu, com alguma ajuda de seu ágil amigo, empreender
a descida.
— Nós vencemos? — ele perguntou a Drizzt quando se aproximaram
do nível do campo, sem saber com certeza se o povo de Dez-Burgos havia
denominado o que via diante dele de vitória ou derrota.
— Nós sobrevivemos — corrigiu Drizzt.
Um grito elevou-se subitamente quando um grupo de pescadores,
vendo os dois companheiros, precipitou-se aos berros na direção deles.
— Assassino do mago e destruidor da torre! — gritaram eles. Drizzt,
sempre humilde, baixou os olhos.
— Salve Régis — continuaram os homens —, o herói de Dez-Burgos!
Drizzt lançou um olhar surpreso, mas divertido para o amigo. Régis
simplesmente deu de ombros, impotente, como se ele fosse vítima do erro tanto
quanto Drizzt.
Os homens pegaram o halfling e ergueram-no nos ombros.
— Carregaremos você com toda a glória até o conselho que está
reunido na cidade! — alguém proclamou. — Você, acima de todos os outros,
deve opinar quanto às decisões a serem tomadas! — Quase como uma reflexão
tardia, o homem disse para Drizzt. — Você pode vir também, drow.
Drizzt declinou.
— Salve Régis — disse ele, com um sorriso espalhado no rosto. — Ah,
amiguinho, você sempre tem a sorte de encontrar ouro na lama onde outros
c ha furda m !
Ele deu um tapinha nas costas do halfling e colocou-se de lado para
deixar passar a procissão.
Régis olhou por sobre o ombro e girou os olhos nas órbitas como se
estivesse meramente aproveitando a carona.
Mas Drizzt sabia que não era bem assim.
O divertimento do drow durou pouco.
***
Antes que tivesse sequer se afastado do ponto onde estava, dois anões
o saudaram.
— Que bom que te encontramos, amigo elfo — disse um deles. O
drow compreendeu imediatamente que eles traziam más novas.
— Bruenor? — ele perguntou. Os anões assentiram.
— Está à beira da morte, e mesmo agora pode ser que tenha morrido.
Ele mandou te chamar.
Sem mais uma palavra, os anões conduziram Drizzt através do campo
até uma pequena tenda que haviam armado perto das saídas de seus túneis e
escoltaram-no ao entrar.
Lá dentro, as velas bruxuleavam suavemente. Além do único catre,
encostado à parede em frente à entrada, encontravam-se Wulfgar e Cattiebrie,
com as cabeças reverentemente abaixadas.
Bruenor jazia sobre o catre e tinha a cabeça e o peito envoltos em
ataduras manchadas de sangue. Sua respiração era ruidosa e pouco profunda,
como se cada alento fosse o último. Drizzt colocou-se solenemente ao lado dele,
estoicamente determinado a conter as lágrimas atípicas que lhe marejavam os
olhos cor de lavanda. Bruenor preferiria que ele se mostrasse forte.
— É... o elfo? — disse Bruenor, com voz entrecortada, quando viu a
forma escura sobre ele.
— Estou aqui, meu mais caro amigo — respondeu Drizzt.
— Pra... me ver partir?
Drizzt não conseguiria sinceramente responder a uma pergunta tão
franca.
— Partir? — Ele forçou o riso a sair da garganta apertada. — Você já
passou por coisa pior! Não quero ouvir falar de morte. Quem, então, encontraria
o Salão de Mitral?
— Ah, meu lar... — Bruenor voltou a se acalmar com a menção do
nome e pareceu relaxar, quase como se sentisse que seus sonhos o ajudariam a
completar a sombria jornada a sua frente. — 'cê vem comigo, então?
— É claro — concordou Drizzt. Ele olhou para Wulfgar e Cattiebrie
em busca de apoio mas, perdidos em seu próprio pesar, eles ainda desviavam os
olhos.
— Mas não agora, não, não — explicou Bruenor. — Não com o
inverno tão próximo! —Tossiu. — Na primavera. Sim, na primavera.
Sua voz foi morrendo e os olhos se fecharam.
— Sim, meu amigo. — concordou Drizzt. — Na primavera. Levarei
você para casa na primavera!
Os olhos de Bruenor reabriram-se de repente, e a turvação da morte
foi removida por um resquício do antigo brilho. Um sorriso de contentamento
espalhou-se pelo rosto do anão e Drizzt ficou feliz por ter sido capaz de consolar
seu amigo agonizante.
O drow voltou a olhar para Wulfgar e Cattiebrie, e eles também
sorriam. Um para o outro, Drizzt notou, curioso.
De repente, para surpresa e horror de Drizzt, Bruenor sentou-se e
arrancou as ataduras.
— Aí está! — berrou ele, para divertimento dos demais na tenda. —
'cê prometeu e eu tenho testemunhas!
Drizzt, depois de quase cair com o choque inicial, lançou um olhar
irritado para Wulfgar. O bárbaro e Cattiebrie esforçaram-se para reprimir o riso.
Wulfgar deu de ombros e deixou escapar uma risadinha.
— Bruenor disse que me cortaria até chegar à altura de um anão se
eu dissesse uma palavra!
— E ele teria feito isso mesmo! — acrescentou Cattiebrie. Os dois
saíram apressadamente.
— Um conselho em Brin Shander — explicou Wulfgar
precipitadamente. Fora da tenda, o riso dos dois irrompeu sem reservas.
— Maldito seja, Bruenor Martelo de Batalha! — disse o drow,
carrancudo. Depois, incapaz de se conter, atirou os braços em volta do corpo
atarracado do anão e o abraçou.
— Acabe logo com isso — gemeu Bruenor, aceitando o abraço. —
Mas seja rápido. A gente tem um monte de trabalho pra fazer o inverno todo! A
primavera vai chegar mais cedo do que 'cê tá pensando e no primeiro dia quente
a gente sai pra procurar o Salão de Mitral!
— Onde quer que esteja — riu Drizzt, aliviado demais para se
enfurecer com o truque.
— A gente consegue, drow! — gritou Bruenor. — A gente sempre
consegue!
Epílogo
O povo de Dez-Burgos e seus aliados bárbaros acharam difícil o
inverno que se seguiu à batalha mas, ao dividirem talentos e recursos,
conseguiram sobreviver. Muitos conselhos foram realizados em todos aqueles
longos meses, com Cássio, Jensin Brent e Kemp representando o povo de Dez-
Burgos, e Wulfgar e Revjak falando pelas tribos bárbaras. A primeira tarefa era
reconhecer oficialmente e justificar a aliança dos dois povos, apesar da oposição
veemente de muita gente de ambos os lados.
As cidades intocadas pelo exército de Akar Kessell abarrotaram-se
com refugiados durante o inverno brutal. A reconstrução começou com os
primeiros sinais da primavera. Quando a recuperação da região já estava bem
encaminhada — e depois do retorno da expedição bárbara que, seguindo as
orientações de Wulfgar, trouxe o tesouro do dragão —, realizaram-se conselhos
para dividir as vilas entre os sobreviventes. As relações entre os dois povos quase
sucumbiu várias vezes e foram mantidas apenas pela presença imperiosa de
Wulfgar e a calma constante de Cássio.
Quando tudo finalmente estava acertado, os bárbaros receberam as
cidades de Bremen e Caer-Konig para reerguer, os desabrigados de Caer-Konig
foram transferidos para a cidade reconstruída de Caer-Dineval e aos refugiados
de Bremen que não desejavam viver entre os homens das tribos ofereceram-se
casas na cidade recém-construída de Targos.
Foi uma situação difícil, na qual os inimigos tradicionais foram
forçados a deixar de lado suas diferenças e viver lado a lado. Apesar de
vitoriosos na batalha, os aldeões não podiam se considerar vencedores. Todos
haviam sofrido perdas terríveis; ninguém havia saído daquilo tudo em melhores
condições para a luta seguinte.
Exceto Régis.
O halfling oportunista foi premiado com o título de Primeiro Cidadão
e a melhor casa de toda a Dez-Burgos por seu papel na batalha. Cássio
prontamente entregou seu palácio ao "destruidor da torre". Régis aceitou a oferta
do representante e todos os outros numerosos presentes que afluíram de cada
parte, pois, embora não tivesse realmente merecido as honras a ele conferidas,
justificava sua boa sorte considerando-se um parceiro do modesto drow. E já que
Drizzt Do'Urden não tinha a menor vontade de vir a Brin Shander e receber os
prêmios, Régis imaginou que era seu dever fazê-lo.
Esse era o mimado estilo de vida que o halfling havia sempre
desejado. Ele realmente apreciava a riqueza excessiva e o luxo, embora mais
tarde viesse a aprender que havia de fato um preço elevado a se pagar pela
fama.
***
Drizzt e Bruenor haviam passado o inverno fazendo preparativos para
sua busca pelo Salão de Mitral. O drow tinha a intenção de honrar sua palavra,
apesar de ter sido enganado, porque a vida não mudara muito para ele após a
batalha. Mesmo sendo, na verdade, o herói do conflito, ele ainda se via mal e mal
tolerado entre a gente de Dez-Burgos. E os bárbaros, com a exceção de Wulfgar
e Revjak, o evitavam abertamente e murmuravam orações de proteção para
seus deuses toda vez que inadvertidamente cruzavam-lhe o caminho.
Mas o drow aceitava o isolamento com seu característico estoicismo.
***
— Na cidade, diz-se a meia-voz que você cedeu a Revjak seu lugar no
conselho — disse Cattiebrie a Wulfgar numa de suas muitas visitas a Brin
Shander.
Wulfgar assentiu.
— Ele é mais velho e mais sábio em muitos aspectos.
Cattiebrie prendeu Wulfgar sob o desconfortável escrutínio de seus
olhos escuros. Ela sabia que havia outras razões para Wulfgar renunciar à coroa.
— Você quer ir com eles — ela declarou categoricamente.
— Devo isso ao drow — foi a única explicação de Wulfgar ao dar-lhe
as costas, sem disposição para discutir com a moça irascível.
— Mais uma vez você se esquiva da pergunta — riu Cattiebrie. —
Você não vai saldar dívida nenhuma! Você vai porque a estrada é sua escolha!
— O que é que você sabe dessa estrada? — grunhiu Wulfgar,
contendo-se em virtude da observação dolorosamente precisa da moça. — O que
é que você sabe sobre aventuras?
Os olhos de Cattiebrie cintilaram, e desarmaram Wulfgar.
— Eu sei — ela declarou categoricamente. — Qualquer dia em
qualquer lugar é uma aventura. Isso você ainda não aprendeu. E, por isso, você
persegue as estradas distantes, esperando satisfazer o desejo de emoção que arde
em seu coração. Então vá, Wulfgar do Vale do Vento Gélido. Siga a senda de
coração e seja feliz! Talvez, ao retornar, você entenda a emoção de
simplesmente estar vivo.
Ela o beijou no rosto e saltitou em direção à porta. Wulfgar,
agradavelmente surpreso com o beijo, gritou-lhe:
— Talvez, então, nossas discussões sejam mais aprazíveis!
— Mas não tão interessantes — foi a última resposta dela.
***
Numa bela manhã de início de primavera, a hora de partir chegou
enfim para Drizzt e Bruenor. Cattiebrie ajudou-os a preparar suas mochilas
abarrotadas.
— Quando a gente tiver limpado o lugar, eu te levo lá! — Bruenor
disse à moça novamente. — Por certo que seus olhos vão brilhar quando 'cê ver
os rios de prata do Salão de Mitral!
Cattiebrie sorriu, indulgente.
— Tem certeza que 'cê vai ficar bem? — perguntou Bruenor, agora
mais sério. Sabia que ela ficaria bem, mas seu coração transbordava de
preocupação paternal.
O sorriso de Cattiebrie alargou-se. Eles já tinham discutido aquilo
centenas de vezes ao longo do inverno. Cattiebrie estava feliz com a partida do
anão, mesmo sabendo que sentiria imensa saudade dele, pois estava claro que
Bruenor nunca ficaria realmente contente até que tivesse ao menos tentado
encontrar seu antigo lar.
E ela sabia, melhor que ninguém, que o anão estaria bem
a c om pa nha do.
Bruenor ficou satisfeito. Chegara a hora de partir.
Os companheiros disseram adeus aos anões e partiram para Brin
Shander a fim de se despedirem de seus dois amigos mais chegados.
Chegaram à casa de Régis pouco depois, naquela mesma manhã, e
encontraram Wulfgar sentado nos degraus esperando por eles, tendo Garra de
Palas e a mochila a seu lado.
Drizzt olhou com desconfiança os pertences do bárbaro enquanto se
aproximavam, meio que adivinhando as intenções de Wulfgar.
— Bons olhos o vejam, Rei Wulfgar — disse ele. — Está de partida
para Brenen, ou talvez Caer-Konig, para supervisionar o trabalho de sua gente?
Wulfgar chacoalhou a cabeça.
— Não sou rei — ele respondeu. — É melhor deixar os conselhos e os
discursos para os mais velhos; já tive mais do que podia tolerar. Revjak fala pelos
homens da tundra agora.
— E, então, o que 'cê vai fazer? — perguntou Bruenor.
— Vou com vocês — replicou Wulfgar. — Para saldar minha última
dívida.
— 'cê não me deve nada! — declarou Bruenor.
— A você já paguei — concordou Wulfgar. — E paguei tudo o que
devo a Dez-Burgos e também a meu próprio povo. Mas há uma dívida de que
ainda não me livrei. — Ele se virou para encarar Drizzt diretamente. — A você,
meu amigo elfo.
Drizzt não sabia o que responder. Ele deu um tapinha no ombro do
homem descomunal e sorriu afetuosamente.
***
— Vem com a gente, Ronca-bucho — disse Bruenor, depois de
terminado um excelente almoço no palácio. — Quatro aventureiros na vasta
planície. Vai te fazer algum bem e tirar um pouco dessa sua barriga!
Régis levou ambas as mãos ao ventre amplo e o sacudiu.
— Eu gosto de minha barriga e tenho a intenção de mantê-la,
obrigado. Posso até mesmo aumentá-la um pouquinho! De qualquer maneira, eu
não consigo entender por que vocês insistem em partir nessa busca — disse ele,
agora com mais seriedade. Ele passara muitas horas durante o inverno tentando
convencer Bruenor e Drizzt a desistir daquilo. — Temos uma vida fácil aqui; por
que vocês iam querer partir?
— Há mais coisas na vida do que boa comida e almofadas macias,
amiguinho — disse Wulfgar. — O desejo pela aventura arde em nosso sangue.
Com paz na região, Dez-Burgos não pode oferecer a emoção do perigo ou a
satisfação da vitória.
Drizzt e Bruenor assentiram com a cabeça, embora Régis
chacoalhasse a sua.
— E 'cê chama este lugar deplorável de rico? — riu Bruenor,
estalando os dedos hirsutos. — Quando eu voltar do Salão de Mitral, vou te
construir uma casa duas vezes maior e debruada de pedras preciosas como 'cê
nunca viu antes!
Mas Régis estava certo de que havia testemunhado sua última
aventura. Terminada a refeição, ele acompanhou seus amigos até a porta.
— Se vocês conseguirem voltar...
— Sua casa será nossa primeira parada — assegurou Drizzt.
Encontraram Kemp de Targos ao sair. Ele estava do outro lado da rua, bem em
frente à soleira de Régis, aparentemente à procura deles.
— Ele está me esperando — explicou Wulfgar, sorrindo diante da
idéia de que Kemp não pouparia esforços para se livrar dele.
— Adeus, meu bom representante — gritou Wulfgar, com uma
reverência. Pyayne de crabug ahm rinedere be-yogt iglo kes gron.
Kemp lançou um gesto obsceno para o bárbaro e foi embora,
indignado. Régis quase se dobrou de tanto rir.
Drizzt reconheceu as palavras, mas ficou confuso com o motivo pelo
qual Wulfgar as dissera para Kemp.
— Uma vez você me disse que essas palavras eram um antigo grito
de guerra da tundra — ele comentou com o bárbaro. — Por que você as
ofereceria ao homem que mais despreza?
Wulfgar tartamudeou, em busca de uma explicação que o tirasse
daquele aperto, mas Régis respondeu por ele.
— Grito de guerra? — exclamou o halfling — Isso é uma antiga
maldição das matronas bárbaras, geralmente reservada aos velhos maridos
adúlteros. — Os olhos cor de lavanda do drow estreitaram-se, concentrados no
bárbaro, enquanto Régis prosseguia. — Significa: "Que as pulgas de mil renas se
aninhem em sua genitália."
Bruenor disparou a rir, logo acompanhado por Wulfgar. Drizzt não
pôde evitar fazer o mesmo.
— Vamos, o dia é longo — disse o drow. — Vamos dar início a esta
aventura. Vai ser interessante!
— Aonde vocês vão? — Régis perguntou, tristonho. Uma pequena
parte do halfling, na verdade, invejava os amigos; ele tinha de admitir que
sentiria a falta deles.
— Para Bremen, primeiro — replicou Drizzt. — Vamos completar lá
nossas provisões e partir para sudoeste.
— Luskan?
— Talvez, se os fados assim o quiserem.
— Boa viagem — ofereceu Régis assim que os três companheiros
puseram-se a caminho sem mais delongas.
Régis observou-os desaparecer, imaginando como ele viera a
escolher amigos tão tolos. Desfez-se da idéia com um encolher de ombros e
voltou a seu palácio: sobrara bastante comida do almoço.
Foi detido antes que atravessasse a porta.
— Primeiro Cidadão! — veio um grito da rua. A voz pertencia a um
dono de armazém da seção sul da cidade, onde as caravanas de mercadores
carregavam e descarregavam. Régis esperou que ele se aproximasse.
— Um homem, Primeiro Cidadão — disse o dono do armazém,
curvando-se como quem se desculpa por perturbar uma pessoa tão importante.
— Perguntando pelo senhor. Ele alega ser um representante da Sociedade dos
Heróis de Luskan, enviado para solicitar sua presença na próxima reunião.
Ele disse que pagaria bem.
— O nome dele?
— Ele não disse, só me deu isto! — O dono do armazém abriu uma
pequena bolsa de ouro.
Era tudo o que Régis precisava ver. Partiu imediatamente para
encontrar o homem de Luskan.
Mais uma vez, foi pura sorte o que salvou a vida do halfling, pois ele
viu o estranho antes que este o visse. Apesar de já não ver aquele homem havia
anos, Régis o reconheceu imediatamente pelo cabo do punhal incrustado com
uma esmeralda que se projetava da bainha em seu quadril. Régis muitas vezes
cogitara roubar aquela bela arma, mas mesmo sua imprudência tinha limites. O
punhal pertencia a Artemis Entreri.
O principal assassino do Paxá Pük.
***
Os três companheiros deixaram Bremen antes do amanhecer do dia
seguinte. Ansiosos para dar início à aventura, eles se apressaram e já estavam
bem longe na tundra quando os primeiros raios do sol espiaram por sobre o
horizonte oriental, logo atrás deles.
Ainda assim, Bruenor não ficou surpreso ao notar Régis, que se
esforçava para alcançá-los através da planície desabitada.
— Se meteu em encrenca de novo ou então eu sou um gnomo de
barba — o anão, rindo, comentou com Wulfgar e Drizzt.
— Bons olhos o vejam — disse Drizzt. — Mas nós já não nos
de spe dim os?
— Decidi que não podia deixar Bruenor se meter em encrenca sem
que eu estivesse por perto para salvá-lo — bufou Régis, tentando recuperar o
fôlego.
— 'cê vem com a gente? — grunhiu Bruenor. — 'cê não trouxe
provisões, seu halfling estúpido!
— Eu não como muito — protestou Régis, e um quê de desespero
insinuava-se em sua voz.
— Ora! 'cê come mais que nós três juntos! Mas tudo bem, a gente te
deixa vir junto de qualquer jeito.
O rosto do halfling iluminou-se visivelmente, e Drizzt desconfiou que o
palpite do anão sobre a tal encrenca não estava muito longe da verdade.
— Nós quatro, então! — proclamou Wulfgar. — Um para representar
cada uma das quatro raças comuns: Bruenor pelos anões, Régis pelos halflings,
Drizzt Do'Urden pelos elfos e eu pelos humanos. Uma trupe apropriada!
— Duvido muito que os elfos escolheriam um drow para representá-
los — observou Drizzt.
Bruenor bufou: — 'cê acha que os halflings iam escolher Ronca-
bucho como o campeão deles?
— Você é louco, anão — retorquiu Régis.
Bruenor deixou cair o escudo, contornou Wulfgar com um salto e
colocou-se em guarda diante de Régis. Seu rosto contorceu-se num arremedo de
fúria ao agarrar Régis pelos ombros e erguê-lo em pleno ar.
— 'ce tá certo, Ronca-bucho! — Bruenor gritou desvairadamente. —
Sou louco mesmo! E nunca contrarie alguém mais louco que você!
Drizzt e Wulfgar olharam um para o outro e trocaram sorrisos
conhecedores.
Seria realmente uma aventura interessante.
E, com o sol nascente em suas costas e as sombras alongando-se
diante deles, seguiram seu caminho.
Para encontrar o Salão de Mitral.
MAPAS
Sobre o autor
Bob Salvatore nasceu em 1959, cresceu e ainda vive no centro de
Massachussetts. Seu amor pela fantasia e pela literatura em geral começou
quando estava na faculdade e ganhou de Natal uma cópia do clássico de J.R.R
Tolkien, O Senhor dos Anéis. Ele imediatamente mudou seu curso de Ciências da
Computação para Jornalismo.
Recebeu o bacharelado em Ciência da Comunicação em 1981 e,
posteriormente, em Artes em Inglês, área que tanto adorava.
Salvatore começou a escrever profissionalmente em 1982. Seu
trabalho inicial foi o manuscrito de Echoes of the Fourth Magic.
Desde então, Salvatore escreveu uma série de romances — o
primeiro a ser publicado foi A Estilha de Cristal (The Cry stal Shard) publicado
pela TSR em 1988.
Entre seus sucessos estão The Halfling Gem, Sojourn e The Legacy,
eleitos bestsellers pelo The New York Times.
Talvez sua maior conquista e um dos motivos pelo qual é tão famoso
tenha sido a criação do personagem Drizzt, um dos mais amados do gênero de
fantasia, com mais de três milhões de cópias vendidas em vários idiomas.
Desde 1990, Bob vem se dedicando exclusivamente a escrever seus
romances. Seus sucessos anteriores são: O Vale do Vento Gélido (The Icewind
Dale Trilogy ), The Dark Elf Trilogy e The Cleric Quintet, assim como The
Legacy , Starless Night, Siege of Darkness e Passage to Dawn.
Salvatore declarou que gosta muito de retribuir a atenção de seus fãs,
seja através de seu site, que reserva um espaço para responder dúvidas
pessoalmente, ou durante os eventos de lançamentos de seus livros, quando
procura dar atenção a todos. "Este trabalho é muito solitário. Passo horas sozinho
escrevendo em frente à tela de um computador", declara Bob.
Atualmente, Bob está imerso no próximo livro de Drizzt, seu
personagem mais famoso.