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Published by nanci.maziero, 2019-05-22 21:13:03

pequenoscontos

pequenoscontos

1

Descobertas

Rua calma e tranquila, de paralelepípedo, ouvia-se o
barulho dos saltos tic-taqueando pelas pedras que seguiam rua
abaixo, ora enroscando aqui, ora ali. O andar parecia
apressado, as largas passadas se apressavam sob as grossas
gotas de chuva que caiam.

Escorregadias, as pedras do caminho que ela seguia só,
ao romper da aurora. Os primeiros raios de sol iluminavam a
rua e as lágrimas que escorriam por seu lindo rosto. A pressa
tinha lugar: a vida esperava em vastos aprendizados à sua
frente. Tudo que ficara para trás já não era parte de sua vida.

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Longos anos de luta e sofrimento por um sentimento que
reconhecera frágil como asas de borboletas. Lembrava-se. Seu
coração palpitava de amor no altar dos sonhos ocos que
contruíra. Branco, flores, lua de mel, seus sonhos eram tantos
e tão tolos. A cegueira do pseudo amor permitira que se
enganasse inteiramente sobre ele e, pior, sobre si mesma.

Primeiros dias e semanas, paz e sorrisos e até certa
ternura. Até que o alcool trouxe a noite, a violência e o
desgaste. Horas esperando que ele voltasse para casa. Um
filho, dois, cansaço. Desprezo, desrespeito e a violência
imperavam na embriaguez cada vez mais frequente.

Reconstruir-se após ser despedaçada pela realidade
parecia coisa dura e difícil. Até que a mão levantada para o
filho fê-la despertar finalmente do pesadelo. Afastou-se dali,
do relacionamento descompensado e opressivo como quem se
afasta do fogo. Noites de apreensão e medo, achando que ele
voltaria com exigências incabíveis.

Ele veio uma, duas, três vezes. Mas não encontrando eco
em suas ações, entregou todo o fardo e culpa à pequena família
que enxotara de sua vida e virou-lhes as costas para sempre.

Foi-se ele, ficou a solidão embriagada pela ideia de sua
própria fraqueza. Falsa sensação. Olhar os dois coraçõezinhos
unidos e esperançosos fez nascer dentro de si a força que
pensara não existir e perseverou. Um ano, dois, dez. Construir

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para si uma nova estrada florida que era a representação
positiva so seu melhor eu. Seguiu. Venceu.

Anos depois, agora, descendo a rua calçada sob forte
chuva, de volta a sua casa, chorava a morte precoce do
companheiro que pensara ser seu para sempre. Apesar do
alcool, era boa pessoa e não precisava ter o fim que escolheu
para si.

Sentiu. Sentiu pelos filhos já crescidos, sentiu pela família
e pela mãe. Sentiu compaixão. Mas suas lágrimas eram uma
expressão de alegria por si mesma, por ter tido a força
necessária para caminhar. Enchia-se seu coração de gratidão
pela vida. Enxugou as lágrimas sob a chuva que caia, ergueu a
cabeça e seguiu.

O belo sol que despontava entre os pingos da chuva
saudava seu presente e seu futuro, lavando de sua alma
qualquer resquício do passado.

Sentia-se limpa.

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Último Alento

Foto: Ana Rebeschini

As luzes da cidade apareciam ao longe à medida em que
meus pés descalços se aproximavam do caminho estreito que
descia até o sopé da montanha. Mata fechada me rodeava e
ladeava o caminho até ali. A cidade se extendia ainda a alguns
quilômetros à frente, após o descampado.

Era arriscado atravessar dali em diante, à luz do dia, sem
a proteção das árvores. Minhas roupas estavam puidas e rotas.
Comigo só uma pequena mochila onde poucos pertences havia.
Monge desertor de meu lugar. Baixo, poucos cabelos, mãos
longas e sujas, olhos castanhos, pés descalços. Pusera-me em
caminhada por desespero, solidão e angústia.

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Parei, então, em uma pequena clareira, sem fogueira para
não chamar a atenção. Frio, dormir na solidão. Fome, e aquele
pequeno pedaço de pão. Me encolho sob os arbustos
espinhentos, arranho o rosto, mãos e braços. Dormir é só o que
peço naquele momento, mesmo que a dor em meu peito seja
ainda grande.

Poucas horas depois a noite tomba escura sobre o lugar,
lua cheia no céu iluminava o caminho e ponho-me novamente a
andar. Ao firmar os pés na relva fria, fito as estrelas no céu
infinito e uma fagulha de contentamento parece nascer dentro
de mim, arrisco-me a um breve sorriso, uma sombra de um
sorriso sobre minha máscara de angústia e respiro. Talvez pela
primeira vez em anos, respiro.

O orvalho cai e vai umedecendo o pouco que ainda me
resta. Sem pressa. Sentindo, mais do que vendo o caminho, me
apresento então às portas da grande cidade. Guardas atentos
berram para que fique estanque. Olho para cima aliviado ao
ouvir vozes humanas, mesmo que vociferassem comigo, não
importa: Vozes humanas! que alegria!

Identificando a minha procedência pelos farrapos que
ainda adornavam o meu corpo, esquálido e fatigado. Os portões
se abrem lentamente e penso: Um passo, vamos! Dê o passo
definitivo que falta, mova-se!

A emoção é tão intensa naquele instante que meu coração
pára de repente.

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Caminho pela entrada, mas estanco ao ouvir gritos e
ordens. Viro-me para ver o que queriam os guardas e, um
passo antes de cruzar o grande portão de madeira, jaz um
amontoado de farrapos. Surpreso, identifico meu corpo inerte
caído às portas da cidade. Falecera! Caíra como um saco vazio,
amontoado de mim mesmo ali no chão. Minhas vestes humanas
jaziam caídas a um passo de alcançar o destino tão desejado.

Sinto lágrimas caírem em honra a mim mesmo, chegar até
ali mas não completar a jornada em vida. Aproximei-me e vi
que, mesmo ali caído como roupa que se despe, eu sorria.
Meus lábios em um ricto fino, alongavam-se em um sorriso de
paz! Diriam depois que morri sorrindo. Olho-me caído e
abençoo meu corpo sentindo-me elevar em uma brisa suave.

Elevo-me dali e minha alma alça o vôo derradeiro ao meu
verdadeiro lar.

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Dna Doninha

O casal descia apressado pelas ruas pouco calçadas da
cidade em direção à casa da parteira. Em estágio adiantado de
gravidez, a jovem senhora se apavorava pelo momento que
havia chegado. Dores cruciantes pareciam rasgar-lhe as
entranhas em uma agonia não prevista e não ensinada pelas
gerações precedentes.

O diagnóstico foi rápido e preocupante, o feto virara sem
motivo aparente e dificultava o trabalho de parto. Cidade
pequena, casa pobre, poucos recursos. O catre com colchão de

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palha acomodava mãe e filho em agonia. Lençóis rotos e
amarelados pelo tempo na casa de dona Doninha.

O pai, agoniado, retorcia as mãos e tremia enquanto
enrolava nos dedos mais um cigarro de palha. Cabisbaixo, o
chapéu caia-lhe sobre a testa enrugada de preocupação, era
jovem, recém casado. Casa pequena, sem forro, de todos os
poucos cômodos se ouvia o grito que ele levaria cravado na
alma atormentada de dor.

Como recurso final, a parteira tentaria virar o bebê que
agonizava tentanto ver a luz do mundo. A dor foi tamanha que a
jovem senhora não viu mais nada e quedou-se desmaiada no
leito. Doninha enxugou o suor e sentiu-se satisfeita porque
tinha alcançado seu intento, o feto virara e parecia ainda vivo.

Descansem os dois, mãe e filho, pensou. Ocupou-se
concentrada em esquentar a água no velho fogão de lenha na
pequena cozinha. Acocorou-se na soleira da porta com o velho
cachimbo e esperou. A fumaça do cachimbo movia-se em
lentas espirais em direção a um céu profundamente estrelado,
de azul quase negro.

Só a lamparina iluminava o pequeno espaço. Doninha se
levantou para acordar a jovem senhora na esperança de
continuar o trabalho de trazer a criança ao mundo.

A mãe jazia inerte e branca como cera no pequeno leito
envelhecido. Sua alma aguardava ao lado do leito entristecida,
o bebê foi-lhe entregue nos braços em alguns segundos. A

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alma da jovem senhora olhou Doninha com gratidão e ternura
por tudo o que ela se esforçara em fazer. Sorriu triste e com o
filho nos braços, mãe e filho desapareceram. Apenas o tremular
da lamparina com a breve brisa que se fez sentir.

Doninha pensou em como dizer ao jovem pai que o parto
fora difícil e levara para longe dois seres amados. Doninha,
mais uma vez, tinha visto ser dada luz à alma e não ao corpo.
Vida dura essa! Sina doída essa sua! Dar conta de partos do
corpo e da alma.

Doninha orou a Deus pelas duas almas que partiram
unidas pelo amor. Lágrimas corriam pelo seu rosto envelhecido
pelo tempo e pelo sofrimento.

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O vazio

Foto: Gisele Fernandes

Os negócios iam tão mal que o desespero já batera à sua
porta sem misericórdia. Credores, fornecedores, amigos e
inimigos, não sabia mais para onde correr.

Sempre fora forte, lutara com tudo o que tinha de melhor
para progredir. Lugar pobre, simples, onde nascera em meio a
dificuldades e desafios sociais de todos os tipos.

Crescera na rua, perdido junto a balas perdidas e pés
descalços. Drogas, refinadas drogas que tornavam a vida
assustadiça e receosa de acontecer. Violência sem fim.

Em meio a tudo isso um oásis de paz era representado pel
ong que o acolhera. Lá encontrava amigos, paz, equilíbrio e,
sobretudo, vontade de buscar um caminho diferente, melhor.

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Estudara o que lhe fora possível entre uma entrega e
outra. Não era um gênio mas sabia ser aplicado e o fora.
Cresceu, diploma, sair dali era sua meta prioritária.

Malas prontas, pouca grana, estrada, se mandou em uma
manhã ensolarada e quente. O mar ainda quebrava com o
mesmo som doce que sempre lhe encantara. Partiu.

Primeiro emprego, dedicação, estudo. Sem tempo para
nada além de trabalhar estudar, nem para a amada que lhe
solicitava o coração e a atenção. Foco, só assim para despir-se
do lodo pegajoso onde nascera e que parecia grudar seus
passos no chão.

Anos. Dedicação. Canudo. Portão. Primeiro negócio e, a
partir daí, o crescimento. Orgulhava-se de si mesmo porque,
na real, não tinha mais ninguém que o fizesse. Seguiu lutando
pela vida afora.

O caminho lhe fez forte, mas o coração ainda batia
solitário dentro de si. A desconfiança o isolava do mundo e os
dias começaram a pesar em sua estrada sem fim.

Viajou, cresceu, amou, amadureceu e construiu coisas que
nunca pensara em ter. Esqueceu-se de SER, e acabou sendo
tão só que não sabia mais se isso era sorte ou não.

Uma dificuldade aqui, outra ali. Os problemas financeiros
pipocavam ao seu redor rapidamente. Sentia-se mergulhar em
um mar de dificuldades onde era impossível sair nadando.

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Tudo começou a se fechar sobre si mesmo de uma forma
quase insuportável. Queria jogar mas perdera a aposta.

Pegou a trilha escura, o caminho ziguezagueava solitário
como sempre foram os seus passos. Um passo a mais o teria
levado a voar mais alto do que jamais sonhara, errara. Agora,
um passo a mais o levaria mais alto no céu deixando que seu
corpo caísse no vazio.

Vazio era sua vida pequena e miserável. Construíra tudo
menos algo que o sustentasse em momentos como esse. Era
execrável, toda espécie de pensamentos ruins povoavam o ar à
sua volta como moscas em torno da carne quase morta.

Sentia-se morto estando ainda vivo, chegara ao fundo de
um poço cavado por si mesmo na rocha dura de seu coração.
Existência tão cheia de lutas e vitórias que não lhe trouxera a
vitória sobre si mesmo. Fracassara em ser melhor.

Olhos o vazio à sua frente, a angústia era como asas que
impulsionavam seus pés para o nada. Resignou-se ao fracasso
do dinheiro e social. Sem tudo o que tinha, nada mais tinha,
porque não acreditava mais em si mesmo.

Não conseguia mais nem sentir tristeza por si mesmo. Era
uma zona morta onde só a dor do orgulho ferido sobrevivia e
se sobressaía sobre o amor que um dia pudera ter por si
mesmo.

Vôou. Por segundos pensou arrepender-se, mas já era
tarde para este homem solitário que se perdera nas veredas da

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vida. Alçou vôo e despencou vazio abaixo ao encontro da
escuridão.

Não havia ninguém para chorar sua morte.

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Desígnios

Foto: Ana Clara Trevisan

Respiração ofegante, pés descalços pisando as folhas
secas do chão. “Corre, corre, pensava”. A mata fechada abria-
se a cada passada, galhos estrelavam sob os pés, descendo em
desabalada carreira. Desce a montanha até o sopé onde o
gramado se estende por vários quilômetros.

A corrida descontrolava seu coração já agitado pela
emoção. Os galhos e folhas machucavam seus pés e

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arranhavam seus membros e rosto suado. Medo. Um medo
surdo tapava seus ouvidos naqueles momentos de agonia.

“Corre. Corre”
Ao pé do morro a ânsia em cruzar o descampado e atirar-
se nas águas frias do rio que cruzava o lugar. Um minuto! Um
minuto para tomar fôlego e o tiro passa zunindo por sua orelha
direita! Volta a correr sem parada, cego pelo terror se atira
sem pensar sobre o barranco e mergulha nas águas barrentas o
rio.
O medo da correnteza é menor do que o medo da
perseguição. A muito custo vem à tona, se deixa arrastar,
entregue, rio abaixo. Flutua e segue a correnteza.
Metros…quilômetros, muitos quilômetros rio abaixo ele se
permite buscar uma reentrância para se ancorar na areia
grossa que cobre o chão e se arrasta para a margem do rio.
Seu corpo nu se estende sob o sol. Ar! Respirar! Que
alegria estar vivo. Sono! Muito sono.
Quando acorda já segue noite alta e a lua brilha no céu,
nada a fazer agora. Banhar-se para espantar o cansaço e a
fome. Estira-se de novo no pequeno trecho de areia e olha o
céu.
Que estrelas tão lindas observam de longe tantas lutas
humanas, perdera tudo, casa, terra, família. Tudo porque a
tribo sofrera uma invasão. Anos e anos vividos em paz e
harmonia destruído em poucas horas de invasão. Armas, tiros,

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fogo, gritos. Aqueles gritos ecoariam para sempre em sua
alma, estava só, os poucos que restaram ficaram presos. Fugira
apavorado!

Sono! Muito sono.
Amanhecia o dia, atirou-se novamente no rio como quem
se entrega ao sabor da vida e foi levado. Assim fez durante
dias, seguia flutuando o curso das águas e de quando em
quando ia para a margem para descançar e tentar comer.
Perdeu as contas de quantos dias se passaram. “Um
pouco mais” pensou. Desta vez não teve forças para se
levantar e voltar a flutuar e lá ficou estendido mesmo depois
que o sol se levantou.
Foi encontrado, nu, por crianças ribeirinhas. Acolhido, foi
levado aos pequenos casebres que formavam a pequena vila.
Foi recebido, alimentado e tratado. Foi acolhido.
Fortaleceu-se e por lá ficou. Uma pesca aqui outra acolá,
foi ficando entregue aos desígnios de cada dia, carregando em
si a dor de quem perdeu tudo que amava mas tinha a vida que
Deus lhe dera para viver. Ficou lá por anos.
Casou-se novamente, teve filhos, foi feliz como foi
possível, mas a profunda cicatriz do massacre, a família e os
filhos que perdera, isso carregava consigo e o brilho em seus
olhos era sempre triste. Seu olhar, agachado no alpendre com
seu cigarro de palha no canto da boca, era sempre de profunda
dor.

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Um dia foi-se deitar nas redes para olhar as estrelas do
céu. Acomodou seu corpo envelhecido e sofrido. Seu neto mais
querido acomodou-se ao seu lado e dormiu.

Neste breve aconchego de amor, sua alma libertou-se da
vida e seguiu feliz, ladeada pela tribo, esposa e filhos. Seu
corpo permaneceu ali em repouso, quieto, sofrido, enlaçado
pelo amor que reencontrara, apesar de tudo, até que a aurora
veio despertar uma existência que não era mais a sua.

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Caminhos

As decisões não são fáceis de serem tomadas. Por mais
certos que estejamos do que queremos, temos a ligeira
tendência de querer conciliar tudo e, claro, nem sempre é
possível.

A estrada de ferro estendia-se por quilômetros à frente e
nenhum som se ouvia além do cantar do galo. A plataforma
docemente interiorana era iluminada pelo sol que despontava
no horizonte. Mala pequena porque poucos eram os pertences
relevantes naquele momento. Chinelo havaianas, vestido roto e
muito usado, cabelos presos em um rabo de cavalo mal
amarrado.

Ao longe o apito do trem avisa que a decisão vai se
concretizar em segundos. Vejo onde a vista alcança a maria

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fumaça cruzando o ar com sua pressa bem conduzida. As
lágrimas misturam-se ao pó e à fumaça quando, na plataforma,
o primeiro passo ao infinito se desenha tão difícil e dolorido de
ser dado. Portas abrem. Portas fecham.

O trem se despede do cenário de infância e tudo o que era
vai ficando para tráz, menos a dor que carrego, que segue
comigo trilhos afora, mais uma bagagem que segue firme
grudada em meu peito.

Cidade grande surge ao longe, vida nova, euforia,
correria, foco. Vamos centrar o pensamento agitado com as
mudanças. Beira mar, beira rio, sol, e toda uma vida para viver.
Descalça na areia molho os pés no mar na expectativa de
refrescar a cabeça e aplacar o medo que ameaça crescer e me
engolir.

Escola, estudo, roupas longas, escuras e disciplina. Coca-
cola, cigarro e meia fina, o máximo da rebeldia a que me
permiti aqueles dias. Letras, aulas, ensino, magistério. Andar
de bonde e de bondinho na Cidade Maravilhosa. Rádio,
radionovela, revistas de fofocas e fotonovelas. Cheiro de
coisas antigas e guardadas que me fazem lembrar coisas
vividas. Fim de ciclo, estudo concluído.

Retornar para a mesma e antiga estação de trem ou ficar?
As cartas que vem e não carregam a saudade do coração que
ficou e do que vai. Telefonar de vez em quando, telegrama
apressado me encontra na soleira da porta antes do baile em

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uma noite estrelada. Ela se foi, minha querida mãezinha se foi,
a decisão tomada aperta a minha garganta como uma corda.

Parti e deixei-a tão só, entregue às suas próprias
escolhas. Ela se foi. Frente ao mar minha dor se mistura à
agitação cosmopolita que segue sem perceber os corações
aflitos que se agitam na noite iniciante. Voltar, que que me
adianta se já fostes para longe sem esperar que eu voltasse?
Fico, fico onde meus pés me levaram e dou-te a vitória que
busco nesta vida como presente e pedido de perdão, por ter
ido assim embora, buscando chão.

Hoje mesmo, já senhora, é na tardezinha que mais moram
as minhas lembranças de então, o telegrama na mão apertada
contra o peito e a dor que me rasgava o coração. Ela se fora,
ela se foi há mas de trinta anos e sinto ainda o toque de sua
mão e a maciez dos seus cabelos.

Trajetória longa esta minha. Estudo, trabalho, casamento,
filhos. A Cidade Maravilhosa que acolheu aquela que afastou-
se das serras de Minas para o encanto do mar. Casa grande,
filhos crescidos e o cheiro do café no bule que insistem em
impregnar meu olfato mais do que a poluição dos carros que
circulam apressados pela Avenida Brasil.

Viuvês recente, lembranças presentes, lá vou eu de novo
em viagem a duras penas decidida. Troco o trem pelo avião,
que me assombra, mala pequena com pouca coisa a carregar.
Bagagem maior é a que segue comigo, dentro de mim. A jovem

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menina parece ainda olhar triste a pequena estação se
afastando e ainda ouço o canto do galo daquela manhã.

Senhora agora levo comigo toda a história que escolhi
viver. O assento macio do avião nada mais é do que o mesmo
velho trem que para longe me levou. Retorno novamente só,
pelos trilhos da minha memória e da vida, como quem retorna
ao ninho depois da grande aventura vivida.

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Caminho do coração

Na sacristia tudo corria como de costume, todos os
auxiliares e ministros estavam calejados nos rituais que
ocorriam sempre da mesma forma. Vestimenta, água e outros
apetrechos compunham a cerimônia. Seria sua primeira missa
depois de nomeado padre, seu coração palpitava de
expectativa, um suor frio escorria por suas costas ante a
iminência de dar este passo tão fundamental. Era só ansiedade
e alegria.

Vestiu-se, prostrou-se em oração pedindo a benção de
sair-se bem na incumbência. Ajeitou-se mais uma vez e, ao
sinal, posicionou-se no altar de frente para a assembleia
lotada. Respirou fundo e lembrou-se:

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Pequeno, no interior de São Paulo, gostava de ir à missa
com os pais pelos carrinhos de pipoca e doces que ficavam à
porta da Igreja. Pouquíssimo entendia do que ocorria e a
primeira comunhão ocorreu em meio a choro e chantagens
maternas.

Foi em uma bela manhã de outono, caminhando entre
árvores quando voltava da escola que o vira pela primeira vez.
O sol brilhava forte, mas o brilho entre as árvores foi maior e
chamou sua atenção. Estava só.

Dirigiu-se ao que parecia ser a fonte do brilho e nada viu,
continuou a caminhar. Na manhã seguinte o mesmo brilho, no
mesmo lugar, ao se aproximar viu um pequeno e delicado
pássaro pousado sobre o galho de uma árvore diferente, que
nunca havia notado.

No terceiro dia, de longe parecia ver uma pessoa a
acenar e caminhar para dentro da mata, no mesmo lugar de
sempre, ao chegar perto, o mesmo pássaro e a mesma árvore
estavam ali. Foram sete dias desta estranha experiência,
contava então com catorze anos e era um moleque como outro
qualquer, curioso sobre o que estava acontecendo.

Passaram-se dois anos até que o visse novamente, desta
vez, reuniam-se amigos e parentes em uma festa, sábado à
noite, afastou-se por sentir-se incomodado com toda a
balbúrdia. Deitado no gramado, olhava o céu quando viu uma
luz à sua direita. Sentado no gramado, um pouco distante, um

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homem de tez morena e cabelos pelos ombros sorriu e acenou
para ele. A luz que emanava dele era suave mas nítida.
Desapareceu.

Intrigado com tudo, ninguém vira nada naquela noite. No
dia seguinte, na missa com os seus pais, para onde fora
novamente obrigado, descobriu quem era aquele homem que
lhe acenara na noite de sábado. Num pequeno afresco à
esquerda do altar, lá estava ele. O home que vira na floresta e
depois no gramado.

Claro que não acreditou de pronto que pudesse ser
verdade a visão que tivera, pensou ter sido sonho. Seguiu em
frente e, crescido, foi estudar engenharia como o pai tanto
desejava. Chegou a cursar até o terceiro ano antes de ter a
coragem de dizer que não queria aquilo e que, para ele, não
fazia o menor sentido.

No trem, de volta para casa para falar com o pai sobre
desistir do curso, vi novamente aquele homem sorrindo
suavemente para ele, estava na plataforma do outro lado, em
frente ás ruínas de uma pequena e antiga igreja na cidade onde
nasceu. Seu coração pareceu parar por alguns segundos,
depois, incrédulo, encheu-se de alegria. Finalmente
compreendera qual deveria ser o seu caminho, quase
instantaneamente percebeu que o vazio que sempre sentira
dentro de si parecia não existir mais.

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Vencida a resistência paterna ao ver que seu primogênito
preferia o seminário ao curso de engenharia, trancou a
matrícula na faculdade de engenharia e entrou para o
seminário. Ao longo dos anos estudando, a presença amorosa
de seu mestre o fazia sentir que havia tomado a decisão certa.
Sentia-o em seu coração. Sua querida mãe não teve o gosto de
vê-lo ordenado. Foi-se em uma manhã fria de abril, com as
feições tranquilas, parecia inundada de paz.

Sentia-se feliz em estudar, ler, aprender e queria,
arduamente, ser um propagador do amor cristão que crescera
tão forte dentro de si. Cedo começou a atuar com jovens e
crianças que tanto amava.

Sentindo o suor frio a escorrer-lhe pelas costas,
despertou de suas lembranças, dezenas de rostos olhavam
ansiosos o novo sacerdote, paralisou por alguns segundos ante
a responsabilidade que se apresentava. Disse as palavras que
inciavam a celebração com a garganta seca. Genuflexão,
respiração ofegante, levanta-se e sente as mãos tremerem.
Respira.

Ao virar-se novamente para a assembleia, O vê ali, entre
a multidão, sorrindo como sempre, iluminado. A alegria que vê
em seus olhos é de aprovação e felicidade. Seu coração se
alegra e olha o rosto Dele cheio de paz.

Sentiu-se totalmente em casa!

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Memórias afetivas

Árvores frondosas se abriam à minha frente com sombras
magníficas, que lugar gostoso onde moram as lembranças de
uma infância distante! Verão, terra vermelha, lá íamos todos
nós numa emoção tão antiga gravada em nossa memória.

Os pés descalços no chão vermelho do terreno, casa de
madeira esquecida pelo tempo, as mães se viam em um
trabalho de limpeza urgente, preparando a velha casa para uma
semana das férias tão desejadas. Balde aqui, pano ali, janelas
amplas que, ao se abrir, deixavam entrar o cheiro de mato e

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terra. Cheiro de casa limpa, fogão a lenha e poeira daquele
pedaço abençoado de chão.

Tijolos se estendiam pelo chão rústico ao longo da velha
cozinha, ao redor do fogão a lenha, onde uma saudosa avó fazia
crepitar um fogo que aquecia mais do que a água para o banho,
aquecia nossos corações.

Todos juntos em uma semana que parecia curta demais
para tanta brincadeira, a mangueira com suas mangas
amarelas, saborosas, se alternavam em tempo com as mixiricas
pocã. Dezembro e julho, época de descanso e aventuras.

Pescaria de pequenos lambaris, garapa direto do
alambique, guerra de mamona com estilingue, correr atrás dos
pequenos porquinhos rosados por um punhado de moedas de
cruzeiros novos.

Ainda vejo na minha memória o fim de tarde, a grama
dourada pelos raios de sol e o canavial assoprado pelo vento
fresco, o cheiro do banho na nascente depois de uma guerra de
goiaba ficou na memória afetiva junto com a risada e a
travessura dos primos, em momentos que parecem compor
decisivamente quem eu fui um dia.

Aqueles pais que caçavam passarinho às cinco da manhã,
ou a avó que se esmerava no feijão, as tias e tios, todos juntos
em um momento raro de união, que ficou ali, parado num
tempo, num momento eterno e ao mesmo tempo, tão fugidio e
tão distante.

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A carroça do leiteiro, o queijo, o banho de bacia, a cobra
que insistiu em dormir entre os lençóis macios até que foi
descoberta e expulsa. Noites de estrelas abundantes no céu,
vento fresco e a geada do inverno interiorano. Tudo ficou e
ainda é um espaço de memória viva que pulsa dentro de mim.

A memória impulsiona uma constante reconstrução de si
mesmo, pelas sensações que se esmeram em perpetuar
eternamente momentos que vivemos, bons ou maus. É como
um revisitar eterno mas, nunca idêntico de pedaços de nossa
existência. Na memória, o tempo não existe. Ainda vejo seus
rostos meninos a correr descalços por um espaço sem fim que
construí em algum lugar dentro de mim.

Ainda sinto o prazer de caminharmos juntos em uma
liberdade tão poucas vezes sentida.

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33

Pai

Foto: Renato C. Poltronieri

A lua despontava no céu marcando, com sua fraca luz,
trechos do caminho que percorríamos. Éramos quatro: eu,
minha irmã, meu pai e mãe. O caminho subia íngreme em
direção ao topo da montanha, a mata atlântica fechada nos
cercava em uma deliciosamente fria manhã de outono.

Tantas vezes seguimos assim as loucuras de meu pai.
Homem nascido na cidade mas com alma de caçador, de gente
rude e da terra. Espingarda nas costas, cartuchos no cinturão,
facão enfiado na bainha de couro, botas e muita determinação.
Não havia nada além desta figura para aquelas que eram as
mulheres de sua vida. Era assim que ele gostava, de ser o
homem da casa, sem sombra de dúvida.

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Nos colocamos à caminhar apressados pelo adiantado do
dia que amanhecia. Crianças, eu e minha irmã, íamos firmes
atrás dele, embevecidas, resolutas, corajosas, sendo tudo o que
ele desejava, sugando dele toda gota de conhecimento
possível: aqui – palmito, acolá – samambaia, e lá – coração de
bananeira, tudo se come se feito do jeito certo. E nosso
coração ia alegre e orgulhoso em seu encalço.

A trilha na Serra do Mar cruzava um fresco riacho que
corria límpido, equilibrando-me por sobre as pedras, íamos de
mãos dadas, ajudadas pelas mãos fortes e que julgávamos
seguras. O objetivo era buscar palmito nativo, o que era
permitido na época, foram horas de caminhada em meio a
lugares tão lindos que ficaram absurdamente marcados em
minha memória infantil.

E que desejo intenso sentíamos, presente desde sempre,
de corresponder ás expectativas daquele homem. Íamos
alegres, prestando tanta atenção quanto podíamos, dando o
máximo de nossos jovens pés a cada passo, nós três, orbitando
ao seu redor.

Mais à frente uma velha barragem e um lindo campo
florido. São lembranças que se vão longínquas de alguém que
foi porto seguro durante tantos anos. Naquela tarde, cansaço e
pés doídos não se comparavam com a satisfação de ter seguido
seus passos em seu habitat tão adorado, nos seus delírios.

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E foi assim que durante muito tempo de minha infância te
segui os passos, enlevada em sua sabedoria orgulhosa. Queria
te provar a cada segundo que aquela menina magrela de
cabelos curtinhos era uma opção muito melhor do que qualquer
menino. Joelho esfolado, cheirando à fumaça das suas
fogueiras, subir em toda a árvore e fazer pipas. Não importava
o que fosse, queria apenas fazê-lo orgulhar-se de mim.

Queria ser tanto para você, ser sua amiga e companheira
de aventuras e traquinagens. Longe se vai a memória de uma
pequena menina que se embrenhava na mata e provava seus
quitutes malucos: omelete de broto de samambaia, coração de
bananeira, casca de banana refogada, gambá, tatu e cotia feitos
com esmero de chef. Saúva torrada de entrada e sopa de
banana no final.

Em cada colherada, em cada passo, havia apenas dois
joelhos esfolados e dez unhas roídas que desejavam sua
atenção e aprovação. O tempo passou e hoje, eu admito, aquela
menina me espreita de um canto da minha memória e fica ali,
acabrunhada e tímida, olhando para mim e me dizendo que
ainda espera dele o contentamento.

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Amor sem fim

Uma luz se acende no infinito do céu nesta escuridão em
que me encontro. Creio, em minha ignorância, que os anjos
atenderam minhas loucas preces, proferidas nos momentos de
mais amargo desespero.

Luiza, minha doce Luiza, que fim te levaram os seus pés.
Eu aqui sofro tua ausência sentida enquanto tu a gozar a vida.
Noite certeira aquela em que me perdi entre sonhos e
realidades diversas. Tua beleza brilhante me acenava um
caminho que não era o meu. Sob a luz das tochas e do luar, teu
sorriso a brilhar amortecendo meus sentidos.

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Doce Luiza, cabelos negros e longos, escoaçavam ao seu
redor feito véu a flutuar. Teus olhos, ah! Teus olhos! Que
brilho doce a me encantar, lábios doces a me chamar. Eu,
jovem soldado perdido e saudoso de uma casa que nem tenho
mais certeza que um dia existiu de verdade. O frio, a fogueira
tua presença faceira que me clamava ao coração.

Mas eis que o desejo forte cegou meus olhos, a paixão
demandava o toque e a satisfação. A mente escureceu qualquer
clareza que pudesse existir e o desejo engolfou a razão em seu
manto escuro.

Porque, ó doce Luiza, meus olhos cobiçaram de forma
intensa o que viam? Nada além enxergava na noite fria em que
nos encontramos. A dureza dos campos amaldiçoou meu
coração e enterrou fundo em minha alma qualquer resquício de
humanidade.

O não, doce no rosto amado, despertou o gigante orgulho
que me acorrenta o coração neste mundo. O não determinado
aguçou meus sentidos, tornou a satisfação mais premente e te
quis! Ah! Mais forte e intensamente te quis. A cegueira da
paixão transformou o moço em leão e te persegui. Presa
desejada e amada na torpe certeza de que não podias rechaçar
meus esforços apaixonados e, no ápice do amor-desejo, cego
de orgulho, te feri. Não, não era isso que eu queria, amada
minha! Não era isso que eu desejava.

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A morte chegou de mansinho e colocou suas mãos sobre
as minhas. Sussurrou em meus ouvidos a derradeira frase final,
interrompeu meus passos e beijou teus lábios. Tomando-a em
seus braços, arrebatou-a de mim, e disse adeus com um
sorriso que não pude decifrar. Se foi, levando consigo tua alma
tão querida.

O monte fraco de teu ser mortal que jaz a meus pés, o
sangue frio em minhas mãos congelou a torpe certeza de que
eu pusera fim à sua vida. Luiza querida! O grito estridente e
louco da certeza que cresce, encheu minha garganta e a noite
escura e fria. Gritei! Como se acordasse de um sono
desmesuradamente longo de esquecimento.

Nada mais restou, nada mais além do surdo desespero e
do sangue em minhas mãos. Passos trôpegos arrastaram meu
ser para algum lugar, qualquer lugar, sob a luz de um fraco
luar, busquei a coragem de encerrar aquela existência doentia
e vazia.

De joelhos, rezei aos céus pelo perdão que demora a
chegar, a arma escondida minhas mãos foram buscar e, no final
do rio, antes de alcançar o mar, juntei-me a ti nos braços da
doce morte querida que pedi para me levar.

Infelizmente, em minha surda ignorância, não sabia atinar
com a real importância da vida. Vago aqui neste lugar sombrio,
desejando eternamente te encontrar e, de joelhos, teu perdão

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implorar. Sigo cego e infeliz. Perdão minha doce Luiza, perdão!
Duras penas o esclarecimento, duras penas a razão.

Aqui me despeço companheiros, a quem minha história
servir. Abram seus corações e mentes e vejam que a vida vai
além. Todas as torpes ações que praticares, seguem contigo,
porém. A escolha deve ser da clareza, do amor e do bem, para
todos aqueles que desejam boa vida no além.

Despeço-me amigos orando, pedindo que a paz seja a
semente que brota, em cada coração nesta rota de desafios
inimagináveis que é a vida. Toma rumo companheiro, toma
rumo. Porque o mal parece atraente, fácil, ligeiro, mas só o
bem carece exercer para a alma não se perder, e construir
então abençoado ninho, onde um dia, pleno de carinho, seja
capaz de tua alma aquescer.

Tome rumo, tome sorte, sorte de um coração abençoado,
que no amor tem resguardado o teu direito de viver.

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Ciúmes

Há cerca de dez anos eu me vi em um caminho sem volta.
Era madrugada então, e eu sofria intensa dor no coração,
ciúmes é um sentimento profundo, uma dor traiçoeira que fere
a alma da gente. Todo ser que se envolve e busca para si o
amor exclusivo de outrem, corre sempre o risco de sucumbir
aos desmedidos da paixão.

Sou moça simples e jovem mas, aprendi desde cedo que o
mundo girava ao meu redor, com certeza, cada laço de fita,
brinquedo ou pessoas, obedeciam à minha vontade suprema.
Filha única de casal abastado, cresci com tudo de melhor que
havia, e tudo o mais que eu podia exigir, aprendi que sempre
obtia.

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Tempo passou e cresci formosa e faceira, tinha alegria no
sorriso, bons modos ao sabor da época, correta no falar, fineza
no andar, e muitas prendas: bordar, coser, cozinhar,
apresentava-me perfeita para o lar que, um dia, sonhava criar.
Mas meus pais, amorosos, não me ensinaram que a vida diz não
e, encantada eu estava com tantos interessados em minha mão.
Claro que eu não enxergava a verdade dos corações e nem
aquela que no meu morava.

Havia um amigo doce e querido, com quem convivia
constantemente em minha casa, ao lado de meu pai, era seu
braço direito, correto e trabalhador, embora jovem. Meu
coração a ele se inclinava e, eu sabia, paixão sincera a mim
devotava mas, mimada como era, tinha a certeza de que aquele
humilde ser, tão cheio de luz, não era meu ideal companheiro.

Certa tarde de inverno, quando a luz era suave e singela,
entrou em minha vida aquele que eu sonhava: forte, vistoso e
muito bem colocado na vida. Família importante, em tudo fazia
a vista das jovens mulheres de minha época. Disputado,
desejado, orgulhosamente foi a mim que seu olhar procurava.
Juntos, as aparências diziam, éramos feito um para o outro. Não
tardou o matrimônio cheio de pompas, realização das famílias,
ofuscadas como eu, pela ilusão daquilo que acreditávamos ser
felicidade.

Os primeiros meses juntos foram o céu na terra, meus
desejos realizados constantemente, eu tinha tudo: casa

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elegante, tudo de melhor, viagens, aparente felicidade. Poucos
meses foram suficientes para nos cansarmos de nossos vazios
mútuos e nada sustentava a relação além da aparência. No
começo, pequenas ausências, depois, dias de abandono e
solidão.

Sem perceber minha própria responsabilidade, meu corpo
foi tomado pelo ciúme e infelicidade. Quanto mais eu exigia,
mais ele se afastava e, de discussões pequenas, brigas sérias
aconteciam diariamente. O relacionamento de aparência
continuou mas, entre nós se instalou o desgaste, a
desconfiança e, depois, a violência. Eu permanecia no lar,
resguardada, como uma vitrine de família feliz, enquanto a rua
era o lar dele. Não sei por onde andava ou com quem estava.

Solidão, orgulho, vaidade ferida, as exigências nos
empurraram para um caminho sem saída. Por um lado eu
abusava de sua paciência exigindo atenção, por outro ele
buscava saídas de uma relação cada vez pior. Estávamos
errados desde o princípio.

Uma ocasião, tarde da noite, eu o ouvi chegar, meu
coração batia descompassado, envolvido por mágoa, ódio e
ressentimento. Ambos éramos responsáveis por nossas ilusões
e pela miséria que no infligimos. Exigindo sua atenção, parti
para ele em estado alterado, querendo arrancar dele as
palavras silenciadas. Nossos olhos se cruzaram em lampejos

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de dor e rancor, nos rebelávamos, feito crianças, porque a vida
não nos dera o que não fomos capazes de conquistar.

Tenho vergonha de admitir, o estado a que chegamos, do
nível de agressão que aceitamos entre nós naquela noite.
Cegos em nossas dores, descontávamos nossas mazelas em
trocar inúteis de acusações fúteis. Como lares que existiram
em tempos passados, onde aceitava-se armas de defesa e
caça, em meu ódio ignorante, alcancei a cartucheira e
desfechei tiro certeiro naquele que havia sido companheiro das
loucuras desta vida.

Fui covarde em grande medida, e sem admitir a loucura,
sofrendo pelo ato incorrido, me vi tomada pelo desespero e a
tempo fui socorrida. Com o marido morto em discussão
acalorada, perdendo a razão completamente, uma vida
desperdicei, trancada e demente. Quando ao final da história
cheguei, só e abandonada por mim mesma, doeu mais
amargamente a oportunidade de vida desperdiçada

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Autora: Nanci Maziero Trevisan
Contato: [email protected]

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